Então na manhã de certo dia, ao abrir o Face na seção de lembranças, vi que em 28/07/2013 postei o texto Rap para um guerreiro, dedicado a nosso Mário Sapo. Coincidência que somente a arte pode trazer uma explicação. Na véspera, havia conversado com a sua viúva, e na manhã seguinte, sem esperar abri a página de homenagem e despedida ao companheiro. Estava lá:
“Quando eu lhe perguntei se depois de tanta luta, se alguma vez ele não pensara em desistir, ele, que eu sabia estar com problemas circulatórios, pressão alta, e que piorava todas as vezes em que se achava emocionado, ele me respondeu:
- Desistir? Nunca! Às vezes me dá uma preguiça. Mas dá e passa.
Então ele me conduziu, tateante, devagar, até o portão. Às vezes virava a cabeça de lado para ver o meu vulto, quem sabe, algum traço. Talvez não visse mais nem sequer a minha sombra. E não dizia. Mas entendo. Eu devia ser mais real que o seu sonho, que um dia ele escreveu num poema:
‘Vivo semeando o sonho
Do fim da pobreza
De todas as crianças terem o direito
De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho
Do nascer igual
Perante a natureza dos homens’.
Agora em 2017, na quinta-feira à noite, ele falece aos 74 anos de idade. Estava com a saúde ao fim em tudo. Infecção nos pulmões, nos rins, no coração. Quando eu o visitei na UTI, embora ele estivesse sem consciência, pelo que falavam, eu lhe disse na esperança de que me ouvisse:
– Você é meu irmão. Você sabe: não te faltei antes na ditadura, não vou te faltar agora.
Pois bem, porque agora vem o segredo de uma revelação: na quarta-feira, quando o ônibus parou próximo ao hospital onde ele estava internado, subiu um grupo de três jovens que, antes de começarem a pedir uma ajuda, começaram a cantar um rap. Um rap da liberdade.
Eu fiquei comovido até os olhos, porque pensava: o meu amigo no fim e estes jovens cantando a liberdade. Era como a encarnação viva do meu próximo romance. Eu me dizia: cantam para ele. E me vieram associadas as palavras de John Donne:
‘Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti’ ".
Então os jovens cantavam para Mário Sapo, eu os compreendia muito bem. Cantavam e tocavam pelos guerreiros. Então eu nunca tinha ouvido um rap tão emocionado. E volta agora a apresentação que José Carlos Ruy escreveu para o romance “A mais longa duração da juventude” no trecho:
‘O tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente… Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista’.
Aquele canto no ônibus, a sua associação ao amigo que padecia não era delírio. Era fato. Os jovens cantavam um rap que se unia ao amigo, na mais longa duração da juventude. Então eu aplaudi com entusiasmo, como quem grita: presente! um guerreiro cai, outro se levanta. Esses jovens com violão, percussão e canto levam adiante a resistência. Eles são inconformados como a maior razão de viver.
Agora, com o falecimento de José Amaro Correia vem um breve abatimento. Mas não temos esse direito. Não podemos cair e esmorecer. É levantar a cabeça e continuar a caminhada. Se possível, até o lado ensolarado da rua.