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O grande desperdício: A crise bancária em Espanha

A crise bancária emergiu da mistura dos erros de gestão dos diretores bancários, juntamente com os interesses mútuos de enriquecimento não sustentável desses diretores e dos empresários tóxicos (não são os ativos que são tóxicos, mas sim os empresários e os banqueiros), mas, posteriormente, as denominadas políticas de austeridade agravaram a crise bancária inicial e tornam-na irresolúvel. Declaração de econoNuestra
Encerramento de contas no banco Bankia, pelo movimento Indignados, 15 de maio de 2012 - Foto de thefreeonline.wordpress.com

A nacionalização parcial do Bankia, levada a cabo pelo governo do Partido Popular, é um marco, e não será o último, no desenrolar da grave crise instalada no sistema bancário.

A forma como a intervenção foi feita é tanto um reflexo das contradições que atravessam o PP, como da falta de profissionalismo dos seus dirigentes, num tema em que deveriam ter interesse em aparecer como pessoas capazes. Um acontecimento tão relevante como a nacionalização de uma entidade sistémica, assinalada publicamente como tal pelo FMI, foi executada com improvisação, fugas de informação e hesitações. Podia facilmente ter provocado o pânico nos depositantes, o que levaria a algum tipo de “corralito”1.

As contradições do PP podem resumir-se ao seguinte: “As contas não batem certas”. Os resgates, este e os próximos, desmentem as mais otimistas previsões sobre o cumprimento dos objetivos do défice público. Os números que estão em jogo superam, em magnitude, os brutais cortes anunciados e aprovados. Por muito que se empenhem a repetir que isto não vai custar nada, as contas não batem certas. A economia espanhola está imersa num ciclo contractivo de grande magnitude, que ultrapassa constantemente qualquer estimativa sobre o volume das perdas das entidades financeiras. O volume dos ativos que nos bancos não geram rendimentos, total ou parcialmente, vai continuar a crescer, porque o efeito contrativo dos cortes ainda só se manifestou de forma incipiente. Isto é, a necessidade de provisões e o reconhecimento de perdas vão continuar.

A crise bancária emergiu da mistura dos erros de gestão dos diretores bancários, juntamente com os interesses mútuos de enriquecimento não sustentável desses diretores e dos empresários tóxicos (não são os ativos que são tóxicos, mas sim os empresários e os banqueiros), mas, posteriormente, as denominadas políticas de austeridade agravaram a crise bancária inicial e tornam-na irresolúvel. A crise do subprime nos Estados Unidos acelerou o rebentamento da bolha financeira em Espanha, porque os bancos e as caixas de aforro financiavam-se através da titularização dos empréstimos hipotecários, titularizações que colocavam na Europa, e pelo financiamento interbancário em bancos não espanhóis. Ambas as vias de financiamento colapsaram em agosto de 2007, pelo que os bancos e caixas adotaram duras restrições à concessão de crédito, e a atividade económica paralisou bruscamente com a imediata subida do desemprego. Nesse momento, algumas caixas de aforro tinham já uma situação patrimonial próxima da necessidade de intervenção. Era o caso, em especial, de Caja Madrid, Bancaja e CAM2. Mas a falta de uma política de forte estímulo da economia, por parte dos governos europeus e, posteriormente, as políticas neoliberais de cortes brutais, exacerbou a crise económica, convertendo-a em grande recessão, o que amplificou e estendeu a crise bancária ao conjunto do setor. Por outro lado, a denominada crise da dívida soberana foi a consequência da crise económica, que provocou a enorme queda das receitas fiscais e a deterioração dos bancos e caixas, dado que o Estado acabou por resgatar as entidades com problemas.

1. - A formação da bolha

Desde o início do euro, o crédito concedido em Espanha, pelos bancos e pelas caixas de aforro, passou de cerca de 88% do PIB, no ano 2000, para 171% no ano 2008. Além disso, a carteira que mais cresceu foi a da construção e da habitação. O parque de casas novas, no ano 2000, ascendeu a 334.000 unidades, enquanto que em 2007 alcançou as 734.000 unidades. O preço médio das casas duplicou no mesmo período. Além disso, o início do crescimento da construção de casas começou uns anos antes da criação do euro como divisa.

O resultado destes números é que em 2007 a exposição ao risco de incumprimento de promotores e compradores de casa era descomunal. O crédito também foi dirigido para grandes e médias empresas industriais e de serviços, mas existem diferenças significativas em relação ao risco imobiliário.

A maioria dos promotores imobiliários arriscou muito pouco capital nos seus negócios. A prática habitual, consentida pelos bancos e caixas de aforro, é a concessão de uma elevada percentagem de financiamento sobre o total do projeto, com o argumento de que habitualmente esses empréstimos serão substituídos pelos dos compradores finais das casas. Mas há outras razões, especialmente nas caixas de aforro, são os vínculos políticos e económicos que se estabelecem entre o núcleo diretivo, o conselho de administração, formado por políticos, e os empresários, promotores imobiliários.

No caso de a promoção fracassar, total ou parcialmente, é praticamente impossível recuperar o investimento, em qualquer caso, as perdas serão substanciais. Além disso, as entidades financeiras financiaram a compra de terrenos, inclusive não urbanizados, baseando-se em preços determinados pelos preços dos imóveis, que em muitos casos não chegaram a ser construídos.

Os produtos que não se vendem não são exportáveis e só podem deteriorar-se. O parque atual de casas na posse das caixas de aforro e dos bancos converteu-os nas maiores empresas imobiliárias. Mas com a particularidade que são ativos que só geram custos.

A formação da bolha já era bastante evidente em 2002. O Banco de Espanha, com Caruana3 nomeado pelo PP como governador, não realizou nenhum trabalho preventivo e a supervisão prudencial primou pela ausência, Miguel Angel Fernández Ordoñez (MAFO), nomeado pelo PSOE, também se absteve de intervir e a bolha rebentou.

Era possível ter abortado a bolha imobiliária? Greenspan declarou que não era possível utilizando as taxas de juro, e esse argumento foi repetido no nosso país, tendo em conta, além disso, que o Banco de Espanha já não tinha o controlo das taxas de juro. No entanto, a forma de impedir a formação da bolha, ou de a travar no início, teria sido mediante a exigência de provisões específicas adicionais, tanto em relação ao aumento da carteira de promotores, como ao excesso de concentração do crédito promotor. Impor essas medidas estava ao alcance do Banco de Espanha, mas não o fez. A provisão estatística ou anticíclica, tinha em conta o crescimento do crédito, mas era muito favorável ao crédito hipotecário, devido às garantias. Em resumo, o Banco de Espanha falhou na regulação prudencial, tanto por razões de falta de vontade política, responsabilizando-se por abortar o crescimento, como por incompreensão da situação, ou por ambas.

2. - A crise do Bankia

Na crise do Bankia confluem duas caixas de aforro, Caja de Madrid e Bancaja, mas na análise também podemos incluir a CAM, cuja crise eclodiu antes. Entre as três acumularam um volume assustador de créditos ligados ao negócio imobiliário. Compartilham algumas caraterísticas comuns, o que lhes confere alguma singularidade dentro do sistema bancário espanhol. Estas três caixas foram governadas pelo Partido Popular no período em que a bolha imobiliária foi incubada. A carteira de empréstimos das três entidades acumulou uma grande concentração de empréstimos a promotores imobiliários, com os quais os membros dos conselhos de administração tinham fortes vínculos ou que até se chegavam a sentar nos conselhos como empresários independentes. No caso da Comunidade Valenciana, a Bancaja e a CAM financiaram todo o tipo de projetos faraónicos, que se tornaram, em grande parte, investimentos falidos. As três caixas tomaram grandes participações industriais, com o objetivo de sentar nos conselhos de administração das grandes empresas espanholas os presidentes e outros destacados membros das caixas. O principal mérito de Miguel Blesa, presidente da Caja Madrid durante quatorze anos, foi ser amigo de Aznar, e no caso de José Luis Oliva, o facto de ter sido presidente da Generalitat Valenciana convertia-o num reputado banqueiro. Os vencimentos conhecidos dos presidentes das caixas foram igualados aos dos bancos privados, ao mesmo tempo que as remunerações dos administradores também atingiam números escandalosos. Conseguia-se assim o governo corporativo “perfeito”, no qual os interesses dos administradores estavam adequadamente alinhados com os interesses dos presidentes: enriquecerem todos. O núcleo diretivo não podia ficar à margem do boom e, além de retribuições e fundos de pensões milionários, eram premiados com postos em conselhos de administração de empresas participadas, muitos deles compartilhadas com promotores imobiliários. Assim, foram cozinhadas as condições ideais para a tempestade perfeita. Todos os implicados tinham interesse no negócio e este estava baseado no aumento do balanço, em gerar lucros a curto prazo, porque se a situação mudasse, já tinham cláusulas de proteção, na forma de fundos de pensões e saída da entidade com indemnizações milionárias.

3. - O Banco de Espanha

O Banco de Espanha não teve vontade de pôr fim à bolha imobiliária e, uma vez desencadeada a crise financeira, atuou com critérios nacionalistas e corporativistas, defendendo as maravilhas da regulação anticíclica e a solvência das entidades espanholas. É certo que na Europa os bancos centrais atuaram com critérios semelhantes ao Banco de Espanha, o que deu lugar a um conjunto de provas de stress condicionadas pelos interesses de cada entidade reguladora e conseguindo mais desconfiança que qualquer outra coisa, quando uma vez passadas as provas continuavam a manifestar-se graves problemas de liquidez e de solvência, sem a necessidade das condições extremas colocadas nos testes de stress. Também é certo que a regulação anticíclica era uma medida positiva, mas muito parcial e incompleta e não o remédio adequado para uma crise sistémica. Com a chegada de MAFO4, o governador tentou dissimular a sua falta de conhecimento dos problemas da banca com os ataques quotidianos aos trabalhadores. Entretanto, o Banco de Espanha dedicou grandes recursos a validar e a revalidar modelos de risco de crédito construídos pelas entidades, no quadro de Basileia II5, para cumprir com as exigências de recursos próprios, modelos que foram varridos pela eclosão da crise bancária. É difícil encontrar uma prova empírica mais contundente para testemunhar o fracasso. Enquanto os técnicos do Banco de Espanha dedicaram enormes recursos públicos para comprovar a suposta validade das bases de dados, dos sistemas de rating e das estimativas de probabilidades de incumprimento; a solvência das entidades dissolvia-se como açúcar no café para todos de Basileia II. No entanto, não vimos qualquer reflexão crítica emanada do Banco de Espanha sobre as causas da crise bancária e o fracasso da regulação tecnocrática, favorável às entidades que ditam as regras de Basileia.

4. - O Banco Central Europeu

O BCE é um dos grandes problemas da crise. O poder político e económico, favorável aos interesses dos empresários e banqueiros, dotaram o BCE de um estatuto de independência dos governos, enquanto que os governos ficaram dependentes do BCE. Esta situação insólita, que vai contra os mais elementares princípios da democracia formal, converteu o BCE no tirano da Europa. Quebrar esta tirania é uma das principais questões para se poder avançar numa saída da crise. Draghi, tal como Trichet, impõe condições aos governos. Modula as injeções de liquidez para que o sistema não afunde, mas utiliza o seu imenso poder como arma de chantagem. As duas últimas injeções de mais de um bilião (milhão de milhão) de euros, não foram grátis. Sem essas injeções muitos bancos não podiam fazer frente às suas necessidades de liquidez face aos vencimentos de dívida emitida, nem tão pouco poderiam continuar a acudir aos leilões de dívida pública em Espanha e Itália. Mas o BCE impõe condições de forma autoritária e exige mais sacrifícios, mais cortes e mais austeridade. A sua ideologia fundamentalista, e o seu estatuto de independência, em linha com as forças conservadoras é um dos principais obstáculos para uma saída da crise.

5. - As nacionalizações para socializar perdas e privatizar lucros

Os governos de direita são inimigos do setor público, exceto quando têm que utilizar os recursos públicos a favor dos interesses privados. Isto volta-se a repetir com a nacionalização do Bankia e os apoios públicos já concedidos , mais os próximos que ainda estão para chegar. Por mais que o ministro Luis de Guindos repita que o que está a fazer é um magnífico negócio para os contribuintes, as terríveis consequências da crise e das políticas de cortes são irreversíveis6.

Com a criação dos “bancos maus”, o governo abriu outra via de necessidade de apoios de recursos públicos. Depois de tanto “esquema de proteção de ativos”, FROB7, CoCos8, o problema elementar é que as caixas e os bancos sofreram e vão sofrer enormes perdas e “alguém” tem que se encarregar delas. Há que repor capital nas entidades ou deixá-las cair e, em ambos os casos, as perdas socializam-se, porque o capital só provém dos recursos públicos, seja em forma de emissões de dívida pública, emissões do FROB, ou futuros resgates a partir de Bruxelas, que também terão de ser pagos. Mas isto são os custos diretos, porque os custos indiretos da estagnação e do retrocesso económico, durante muitos anos, são incomensuráveis.

6. - Perspetivas

Com a intervenção no Bankia deu-se uma escalada na evolução da crise bancária, que é acelerada continuamente. De todo o lado reclama-se saber qual é o “verdadeiro valor dos ativos tóxicos”, pelo que o governo exigiu a intervenção de uma comissão de peritos independentes que analisarão o valor não só das carteiras danificadas, mas também de todos os ativos bancários. A chamada de peritos independentes deixa de rastos o Banco de Espanha que é o responsável direto pela avaliação do estado das entidades bancárias. Mas, em qualquer caso, trata-se de um esforço inútil. O resultado do trabalho dos avaliadores independentes será mais aflição. É uma amostra de que os mais elementares princípios económicos não são tidos em conta. Realizarão estimativas que em poucos meses ficarão obsoletas, porque num cenário tão aberto como o atual as variáveis fundamentais estão na política. Só uma profunda mudança de rumo nas políticas de cortes pode salvar a situação. O efeito dos cortes anunciados pelo governo sobre o atraso nos pagamentos, devido ao aumento do desemprego e à deterioração do tecido empresarial, elevará os números dos atrasos nos pagamentos a níveis insustentáveis. A hipotética saída da Grécia do euro terá consequências e os custos da dívida pública podem alcançar níveis impossíveis de financiar. Valorizar os ativos bancários nestas circunstâncias é um exercício inútil. Os bancos só têm solução se for criado um cenário em que os créditos solventes cresçam mais depressa que o atraso nos pagamentos, porque nesse cenário muitos devedores recuperariam a capacidade de pagamento. Tudo o que não seja isto, é caminhar para o desastre.

Declaração de econoNuestra, publicada em econonuestra.org, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net


Notas do tradutor

1 “Corralito” - Restrição ao levantamento de dinheiro, perante uma corrida aos bancos. Foi imposto na Argentina em Dezembro de 2001 pelo governo de Fernando de La Rúa. Mais informação na wikipedia (NT - Nota do tradutor)

2 Caja de Ahorro del Mediterraneo

3 Jaime Caruana, governador do Banco de Espanha entre julho de 2000 e julho de 2006.

4 Miguel Angel Fernández Ordoñez, governador do Banco de Espanha desde 2006, nomeado pelo PSOE.

5 Basileia II, acordo estabelecido em 2004, no quadro do Banco de Compensações Internacionais (bis.org), organização internacional responsável pela supervisão bancária.

6 Ler: Los costes de la reforma financiera (Os custos da reforma financeira).

7 FROB - Fondo de Reestructuración Ordenada Bancaria (http://www.frob.es/).

8 CoCos - Títulos de dívida que se podem converter em ações.

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