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As Leis de Nuremberga e a legalização da barbárie

Em 15 de setembro de 1935, o Reichstag aprovou duas leis que viriam a ser os pilares normativos da perseguição e extermínio dos judeus – e também de ciganos e negros – na Alemanha de Hitler. Por José Manuel Pureza.
Quadro racial das leis de Nuremberg de 1935. Foto: Museu Memorial do Holocausto dos EUA.

Em 15 de setembro de 1935, o Reichstag – em sessão especial realizada em Nuremberga, onde decorria o congresso do Partido Nacional-Socialista – aprovou duas leis que viriam a ser os pilares normativos da perseguição e extermínio dos judeus – e também de ciganos e negros – na Alemanha de Hitler.

A Lei da Cidadania do Reich impôs como condição para se ser cidadão alemão ter-se “sangue alemão”. A definição do que isto pudesse ser foi feita pela negativa: pessoas com três avós nascidos na comunidade religiosa judaica eram considerados judeus e, como tal, afastados da cidadania e classificados como “súbditos do Estado”. Esta expressão crua de antissemitismo e de racismo afastou-se de conceções biológicas ou culturais de raça e pôs em lei a tese de raça hereditária, transmitida pela genealogia familiar. A lei era clara acerca do alcance desta definição: “o cidadão do Reich é uma pessoa que goza da proteção do Reich alemão (…) e o único portador de direitos políticos completos de acordo com a lei.” O direito a ter direitos era, pois, legalmente retirado a quem fosse descendente de judeus, sem mais.

Por sua vez, a Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemã prolongava esta orientação antissemita e racista ao proibir, com efeito retroativo, o casamento entre judeus e cidadãos do Reich e as relações extraconjugais entre tais pessoas. Pairava sobre estas interdições a noção nazi de “poluidor da raça” (Rassenschande) que justificava, na mesma lei, a proibição de judeus contratarem mulheres alemãs com idade inferior a 45 anos para suas empregadas, algo assente no pré-juízo de que elas seriam obrigadas a relações que poluiriam a pureza racial ariana.

Multidão reunida para participar da festa do Partido Nazi em Nuremberga, Alemanha, 1935. Foto: Museu Memorial do Holocausto dos EUA.

Em novembro de 1935, estas leis foram revistas e passaram a aplicar-se também a negros e a ciganos, privando-os de cidadania e considerando-os agentes de poluição racial, o que foi tido como legitimador da sua ulterior prisão em campos de concentração e da sua inclusão nas práticas de extermínio.

Por outro lado, as chamadas Leis de Nuremberga, sendo as expressões mais brutais, no plano legal, da perseguição racista contra estas pessoas, inscreveram-se numa arquitetura jurídica mais vasta, de cerca de dezena e meia de leis, que legalizaram a discriminação e a exclusão em diversos outros domínios, como, por exemplo, a lei para a restauração do serviço público profissional que interditava o acesso de não cidadãos do Reich ao funcionalismo público e às profissões da área da Justiça.

As Leis de Nuremberga legalizaram a barbárie. Com isso, elas constituíram o sinal mais forte de que tinha chegado ao fim o entendimento confiante (ingénuo?) da construção liberal da cidadania e dos direitos. Essa construção assentava na suposta virtude eterna do triângulo Estado-território-direitos: no território de cada país, o Estado era suposto ser o principal agente de proteção dos direitos de cada um. Era, manifestamente, uma construção distorcida. Primeiro, porque o elenco dos titulares de direitos, em todo o século XIX e na primeira metade do século XX, estava longe da universalidade. Depois, porque – como as Leis de Nuremberga mostraram – a promessa de um Estado protetor transformou-se na realidade do Estado perseguidor e carrasco, um Estado que excluía da cidadania mínima quem queria e que materializava essa exclusão em aniquilação, tortura e assassinato em massa.

A dualidade legalizada entre cidadãos e “pessoas supérfluas”, na expressão dura de Hannah Arendt – eis o que as Leis de Nuremberga, aprovadas há menos de noventa anos, significaram.

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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