João Semedo: Rivoli a transbordar para a homenagem

Foi de casa cheia que o Rivoli homenageou João Semedo. Amigos, família, camaradas, centenas de pessoas juntaram-se ali para esta despedida em jeito de homenagem.

19 de julho 2018 - 23:54
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Centenas de pessoas encheram o Rivoli nesta homenagem póstuma a João Semedo.

O vídeo da sessão na íntegra pode ser visto no final do artigo ou aqui.

Uma entrevista inédita

A sessão em memória de João Semedo iniciou-se com um vídeo de seis minutos, uma entrevista durante uma visita ao hospital Joaquim Urbano e à Cooperativa Árvore, inédita até ao dia do seu falecimento, altura em que o Esquerda.net a publicou. Refere-se à sua intervenção cívica aquando do início das últimas autárquicas. Já de voz alterada, Semedo, anunciado como candidato, acabou por não poder sê-lo devido ao agravamento da sua doença. Terminado, ouviu-se um aplauso unânime, que precedeu a entrada do Coro de Alunos da Academia Contemporânea do Espectáculo, que cantou a “Queda do Império”.

José Manuel Pureza: “conhecer fascinada mente para mudar tenazmente - assim era o João”

José Manuel Pureza relembrou o amigo, as viagens que fizeram: “como me enternece e como me custa lembrar-me do João”. E assim se fez sentir quando partilhou a história da única zanga que tiveram: “Tratámo-nos como irmãos. Só por uma vez deixou de me falar por umas horas. Viajávamos juntos e eu gritei de alegria quando soube que a Académica tinha acabado de ganhar 2-1 ao Benfica na Luz. Foi a única coisa que o João nunca me perdoou.” A plateia riu, enternecida.

Pureza relembrou o percurso político de Semedo, o seu compromisso com a alteração da realidade: “conhecer fascinada mente para mudar tenazmente - assim era o João.”

“O que o João Semedo impunha a si próprio não era menos do que mudar as vidas desses a quem os direitos não são reconhecidos por causa da maneira como a sociedade está organizada e funciona”, afirmou, perante uma plateia silente e expectante.

“Foi incrível ter sido companheiro do João nesta viagem, ter ido ao seu lado nesta carrugam e ter partilhado com ele a escolha do destino”, terminou.

Henrique Barros: “um médico a lembrar o melhor do que os médicos têm, a capacidade de gostar das pessoas”

O médico Henrique Barros relembrou João Semedo enquanto profissional de saúde, ao fazer aquilo a que se referiu como um “exercício de amor à memória de uma pessoa que nos marcou a todos de forma muito diversas”. “Não é uma cerimónia de dizer adeus, é uma história de um começo, de um caminho outro que se fará com ele”, acrescentou.

Barros elogiou a forma de João Semedo estar tão bem na política: queria entender a realidade para alterá-la, queria “imaginar soluções com base no conhecimento”. Era a “escolha do lado da luz, do lado da claridade, do lado da inteligência”.

Sérgio Guri: “duas músicas do Chico Buarque para o João”

Acompanhado pela guitarra, Sérgio Guri cantou e tocou “O que será (à flor da pele)” e “Geni e o zepelim” do cantautor brasileiro.

Viriato Moura: “cultivava a convicção de que na política debater ainda não é lutar”.

Amigo de João Semedo e fotógrafo, Viriato Moura militou com ele no PCP e recordou “uma amizade subtil, alimentada pela mútua descoberta em dois temperamentos distintos”, “da convicção profunda da chegar a ideias novas”. Referiu-se àquilo que admirava no amigo: “a preservação de autonomia do pensamento” e a capacidade de “resistir a todo o momento ao mainstream dominante”.

“Sempre apreciei a resiliência do João, a sua capacidade de obstinação serena”, afirmou, acrescentando ainda que Semedo “cultivava a convicção de que na política debater ainda não é lutar”.

Rui Sarmento: “conquistou os funcionários, os enfermeiros e os médicos – e os doentes, sobretudo”
 
Rui Sarmento, ex-diretor do hospital Joaquim Urbano, recordou o percurso político e profissional de Semedo.
 
“Construímos uma amizade que só a morte destruiu”, começou por dizer, manifestando de seguida a sua admiração face ao percurso de Semedo enquanto médico: “No hospital, o João era o João que conhecemos, conquistou os funcionários, os enfermeiros e os médicos – e os doentes, sobretudo.” “Homem de iniciativas, o João modernizou as 17 unidades de trabalho do hospital, dando melhores condições de alojamento e atendimento aos doentes”, acrescentou.
 

Mário Moutinho: “Nunca deixava de ser médico enquanto político e nunca deixava de ser político enquanto médico”

Mário Moutinho, ator e autarca, leu um testemunho de João Fernandes (ex-diretor de Serralves) em que este recorda o passado em comum com João Semedo: as reuniões, as discussões à margem das ordens de trabalho, a forma como estas últimas eram, graceja, sempre ignoradas quando era Semedo a coordenar as reuniões.

“Nunca deixava de ser médico enquanto político e nunca deixava de ser político enquanto médico”, escreveu João Fernandes, dizendo ainda que sempre encontrou Semedo “íntegro, firme e otimista”.

“Obrigado por tudo o que vivemos juntos, tão pouco quando comparado com a imensidão que me transmitiste”, terminou.

Alda de Sousa: “amigo é alguém que nos faz melhor”

Alda de Sousa recordou alguns flashes: ouvir João Semedo a falar de Álvaro Cunhal, que a deixou fascinada; a primeira vez que falou com ele; Miguel Portas a dizer “ele há-de vir para o Bloco, temos é de lhe dar tempo”. “E acho que lhe demos”, acrescentou Alda de Sousa, enquanto a plateia ria.

“Vou ter saudades da inteligência, do sentido de bem comum e do trabalho coletivo, da perspicácia do João e da generosidade, daquele olhar maroto, das viagens de comboio com o João Semedo e o José Manuel Pureza”, disse, comovida. “Amigo é alguém que nos faz melhor”, concluiu.

José Soeiro: “olhou também por nós, preparou o que aí vinha, pensou connosco, abriu caminhos, semeou”

José Soeiro referiu-se à última campanha autárquica no Porto: “O João, que já estava de volta ao Porto por causa da doença, não hesitou em pensar connosco sobre o que fazer. Fizemos muitas conversas, trocámos muitas ideias, queríamos que houvesse uma candidatura ampla da Esquerda socialista. Numa dessas conversas, depois de puxarmos pela cabeça sobre quem poderia incorporar essa ideia, dar-lhe cara, começámos a olhar uns para os outros até que, a certa altura, estávamos todos a olhar para o João.” Parecia óbvio, mas também impossível: “Óbvio porque o João estava no Porto, conhecia a cidade como poucos, abriu caminhos na atividade cultural na cidade, fundou organizações sindicais, esteve na origem de projetos percursores na área da saúde pública, do apoio aos sem-abrigo, dirigiu um hospital que inovou e fez a diferença no tratamento da SIDA e da hepatite, tinha um longo e brilhante percurso no Parlamento, toda a gente o respeitava. O João era credível, sólido, solidário, envolvido, irradiava confiança.”

“Ouvi dizer várias vezes, nestes dias, que o João era uma pessoa de convicções muito fortes, mas muito aberto aos outros e capaz de dialogar com quem pensava diferente. Essa frase, para mim, não faz sentido, porque é disjuntiva. Não se trata de ter convicções fortes mas abertura aos outros. A abertura aos outros do João resultava dessas convicções fortes, não acontecia apesar delas. Era por causa da força daquilo em que acreditava que o João procurava aprender com os outros, que o João queria fazer acontecer, juntar mais gente, fazer pontes, comprometer-se e comprometer outras pessoas com o que lhe parecia justo”, acrescentou.

“O João sabia como estava – e nós sabíamos. E em vez de olhar apenas por si, no momento mais difícil e na altura de maior vulnerabilidade, o João olhou também por nós, preparou o que aí vinha, pensou connosco, abriu caminhos, semeou, semeou, semeou”, terminou Soeiro.

 

Manuel Loff: “frontalidade humana, coragem emocional e rigor moral e científico”

Manuel Loff recordou os anos em que conheceu João Semedo, nomeadamente o seu percurso no Movimento Direito a Morrer com Dignidade: “acompanhei a frontalidade humana, a coragem emocional e o rigor moral e científico do João contra a corporação médica no âmbito do debate sobre a eutanásia”, afirmou. “Poucos como ele souberam dizer que o direito a morrer com dignidade é o direito a viver com dignidade.”

 

António Capelo: “Os alicerces da vida”

António Capelo, ator, leu um poema de Ana Luísa Amaral intitulado “Os alicerces da vida”:

"Há os que fazem do mundo


um lugar mais gentil,

um país concebível de viver

e o deixam para nós em herança de luz:

uma promessa

 

Não precisam de ter sorrisos copiosos,

esses raros,

que a opulência deles: de uma outra raiz:

fazer do mundo um lugar

habitável

 

E o que deles fica é como a música

que existe aqui, à nossa volta, inteira,

mas cujos decibéis o ouvido filtra,

e só por um prodígio

de vez em quando um quase nada ínfimo

escutamos

 

E é quando as mãos

dos que ao trazerem junto ao coração

um mantimento antigo e doce

feito de fúria e o resto,

quando essas mãos conseguem dizer tudo

 

entre o punho fechado, feito farol erguido,

até aos dedos muito abertos, rasgando o ar,

atravessando mares de gente,

e de uma intransigente inteligência

contra a barbárie e a mais rasa

idiotia

 

A falta que eles fazem,

os que fizeram do mundo uma pátria mais gentil,

um território comum e habitável,

é uma falta sem fim, e o seu vazio parece

só com eles de novo poder voltar a ser

de novo coisa inteira

 

Mas alguns alicerces, fundações,

aquelas traves, vejam, deixadas

junto à casa inacabada,

encostadas ao sítio da memória,

podem ser reerguidas, usadas outra vez

por outras mãos,

 

e agora aqui, por cima das janelas,

e já longe do chão,

sustentar um telhado,

 

e agora a casa quase pronta

quase feita

e a fazer-se casa verdadeira

e num futuro raro,

 

mas possível –”

 

Mafalda Banquart: Sophia e Regina

Mafalda Banquart, atriz, leu “Forma Justa”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, e um poema de Regina Guimarães.

"Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre 
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia 
Cada dia a cada um a liberdade e o reino 
— Na concha na flor no homem e no fruto 
Se nada adoecer a própria forma é justa 
E no todo se integra como palavra em verso 
Sei que seria possível construir a forma justa 
De uma cidade humana que fosse 
Fiel à perfeição do universo 

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco 
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo"
 

"Hoje

um pouco antes do despertar

pensei em si 

e no seu nome João Sem Medo.

Lembrei-me dos primeiros momentos

em que, ainda criança, fui tomando consciência

do desconcerto do mundo, das injustiças a combater,

da fatalidade da infelicidade a recusar

com violência se preciso for.

Uma profunda fraternidade liga os descontentes

que não engolem o descontentamento como um veneno.

E sim, o maior medo é o mundo não mudar para mais mundo

e a humanidade para mais desejo de liberdade fraterna e fraternidade livre.

Desculpando-me pelo atrevimento

envio estas palavras pelo meu amigo José Soeiro

segura de que ele saberá colocar na voz

a intensidade destas horas

em que a sombra da ausência mais-que-presente

recorda e aviva a necessidade de sermos mais poética e politicamente reais

nos nossos lutos e nas nossas lutas."

Francisco Louçã: “Essa lei vai chamar-se lei João Semedo”

Louçã citou Semedo, dizendo “Tive a vida que escolhi, a vida que escolhi, não tive nada de que me arrependa". “A definição de liberdade é essa”, disse: “não fiz nada a que fosse obrigado, fiz o que quis fazer, com os outros, que somos todos”. E, nisto, o tempo será o norte: “Os encontros – escolher o tempo. Os amores – saber o tempo. Os estudos – querer o tempo. A política – fazer o tempo.”

Francisco Louça relembrou ainda o papel de Semedo na luta pela despenalização da morte assistida, da escolha da dignidade do seu fim, afirmando que a lei reprovada há pouco na Assembleia da República virá a ser aprovada: “Essa lei vai chamar-se lei João Semedo.”

Valter Hugo Mãe: “o Bloco é o partido mais urgente do país”

“Estou cá hoje pela honestidade dele", afirmou o escritor, recordando “o tempo do desastre que aconteceu ao Porto chamado Rui Rio” e as disputas em que esteve ao lado de Semedo. Valter Hugo Mãe recordou ainda a vez em que João Semedo o chamou “para ir defender o Palácio de Cristal onde queriam fazer um mamarracho para fazer congressos e até casamentos”.

“A política portuguesa perde um grande, grande homem. Espero que o Bloco mantenha a sua herança viva, herde tudo o que possa herdar do João Semedo. Estou convencido de que o Bloco é o partido mais urgente do país”, rematou.

Catarina Martins: “o nosso compromisso é continuar a fazer”

“O João nunca deixava ninguém de fora", começou Catarina Martins, relembrando o tempo em que foi candidata independente no círculo eleitoral do Porto, onde se candidatou com Semedo.

“O João construiu tantos direitos”, afirmou, recordando o papel de João Semedo na luta pelo SNS: “o que fez com o seu trabalho e o que nos deixou foi o caminho de acordar toda esta gente que sempre defendeu o SNS para a necessidade de se levantar agora, de ter voz agora, de não deixar que o negócio de uns poucos nos prive da saúde de todos”.

O João “nunca fez um discurso para se ouvir falar, para reafirmar princípios que já se sabia que eram dele, nunca teve palavras ocas”, disse. “Todos os momentos do João eram para construir alguma coisa” e essa é “das melhores coisas que nos deixou”. “Nunca deixar nada por discutir, por debater, mas sem nunca ser proclamatório. O João quis sempre fazer, fazer, fazer, construir, mudar gente”, rematou.

“Esse caminho, esse juntar gente, essa forma extraordinária que o João sempre teve de construir é o que temos aqui e o nosso compromisso é continuar a fazer. Não vai ser nada fácil, mas, como dizia o João, se pensarmos um bocado nisso, vamos de certeza encontrar uma solução”, terminou a coordenadora do Bloco.

"O povo é quem mais ordena"

No final da sessão, João Lóio fez uma performance musical, cantando e tocando "Amigo é quem vem" e "Ir e vir", da sua autoria.

Finalmente, em coro, cantou-se a Grândola.

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