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“Istambul, Istambul”: mostrar o chão

“Istambul, Istambul” é a primeira obra de Burhan Sönmez publicada em Portugal. Esta janela para a Turquia de Erdogan, cujas limitações levaram ao exílio do autor no Reino Unido, já foi traduzida para 30 línguas, ganhou o prémio ERBD no Reino Unido e chegou agora a Portugal pelas mãos da D. Quixote. Por Ana Bárbara Pedrosa.

A fórmula é a seguinte: uma cela, quatro homens, dez dias. Na sequência de um golpe militar, um médico, um barbeiro, um estudante e um velho revolucionário dão por si encarcerados numa cela exígua e gelada nos subterrâneos de Istambul. A própria geografia desta cela acaba por ter um papel de relevo na narrativa, na medida que o autor faz contrastar o solo com o subsolo.

Neste panorama, enquanto esperam pela tortura e pela morte, desfiam-se histórias diferentes de cada um dos homens. O tempo está suspenso: não sabem se é dia ou noite, não sabem quando chegará o fim, cada minuto é o medo perpétuo dos interrogatórios, ou de mais.

Dificilmente Sönmez encontraria um cenário mais opressivo. Não apenas pelas condições físicas/geográficas em que as personagens se encontram, ou pela dor inerente ao frio, à tortura, ao desespero, à falta de escapatória e de noção, mas também porque nenhuma das personagens é criminosa ou perigosa, tendo todas sido presas por motivos políticos. O mais angustiante ainda é que não lhes é dito sequer o que fizeram mal, e portanto o que motiva tudo aquilo.

Estão ali torturados e desumanizados enquanto vítimas de um regime despótico, recebendo punição física como forma que permita aos interrogadores chegarem a qualquer coisa. Não têm, portanto, um fio de esperança e não está nas suas mãos reverterem a engrenagem dos seus destinos. Não tiveram, não têm nem terão um julgamento justo; ali, debaixo da terra, é como se já estivessem mortos; acima deles, Istambul continua viva e a vida segue em simultâneo impávida e vibrante.

As histórias que as personagens desfiam entre si são, afinal, um fio de vida no que parece um estígio lago. Entre os interrogatórios e as sessões de tortura, os quatro arrancam a vida aos recantos e, pela acção das narrativas, impulsionam o tempo suspenso. Estando presos num sítio, fogem-lhe pelo poder da evocação.

O que pode parecer lírico é, afinal, humano. Os quatro homens partilham histórias de humor e desafio, apresentam Istambul como ente vivo e vibrante, explanam as suas gentes e os seus declives e, daquela cela em pré-morte, mostram a vida da superfície, o chão pisado como palco de caos, o horror e a beleza entrelaçados, a pressa de criar e os contrastes, as contradições e os concomitantes antagónicos.

Serão quatro homens presos, pois, mas o romance é afinal sobre Istambul. As histórias aparecem nos intervalo da tortura, durante a qual se mantêm tão psicologicamente firmes quanto possível, escapando até ao nível que lhes é permitido pela plasticidade da mente humana.

Acompanhamos os caminhos dessa mente, seguimos o passado recente e terminámos todos naquela cela. Procurando a verdade universal, vendo em cada indivíduo o confluir de um processo histórico e político, mesmo estando na cela com os protagonistas, ascendemos ao chão, e de lá vemos o mundo e o caminho, uma espécie de destino em reverso.

Finalmente, e porque a tarefa é árdua e quase sempre ignorada, caberá uma nota sobre a tradução, que é o que já se espera de Tânia Ganho: competência, ritmo e elegância.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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