A violência faz o seu caminho, molda as gentes, perpetua-se. Crescer num ambiente assim parece caminho todo andado para se fazer crescer assim. Os ataques de fúria e o ódio irrompem sem controlo. Por vezes, parece que se odeia porque sim, mas Ventrella conduziu a mão criando um mundo que mostra o carácter vicioso da agressividade. Mais do que ataque, protecção. Mais do que o fulgor do homem que inspira o medo, o homem que está cheio de medo. E não será sempre assim?
Maria cresce em Bari com os dois irmãos mais velhos, a mãe passiva, o pai violento, que “cuspia as palavras envenenadas e depois voltava a engoli-las” (p. 11). Uma certa insolência apanhada na infância valeu-lhe a alcunha que a acompanharia a vida toda: Malacarne, má carne.
Cresce no meio do bullying, a família cria os seus inimigos, e dela se espera que os perpetue. Que veja no outro o outro, que crie uma barreira. Que não pense para além do apelido. Que odeie os Senzasagne porque toda a gente o faz, porque é aquela a gente mais decadente e animal. Mas Michele, o mais novo da família, é o seu melhor amigo, e nem a hostilidade rompe a relação fraternal que os une. É o sentimento fraterno que protegem para não serem carcomidos pelo cinismo da violência, pela fraqueza do rancor.
A realidade do sul de Itália aqui descrita aparece crua e bruta, não romantizando a fraternidade que apareça. Como em A Amiga Genial (Elena Ferrante) ou A Filha Devolvida (Donatella di Pietrantonio), o estudo é encarado como forma de ascenção social. Será este, aliás, o mote para que, nascida no lado pobre errado de Bari, Maria possa trocar a volta ao bairro.
O cliché da história do amor proibido, que poderia parecer o mote do romance, é, afinal, quase dispensável, e o cerne do livro ficaria sem ele intacto, e a vida caleidoscópica manteria o seu padrão. Servindo de pretexto para ligar os eixos da narrativa, confere-lhe um fundo de beleza que poderia existir fora do amor romântico.
História de Uma Família Decente ultrapassa a pequena história do amor de infância, do amor que não sai da pele. Começa na família patriarcal, imiscui-se nas clivagens do bairro, explora ódios e medos, endurecimento, crescimento.