A Grécia na vanguarda global

15 de junho 2012 - 16:12

O povo grego recusa-se a aceitar o desmantelamento imposto à sua infra-estrutura social e económica, o empobrecimento relâmpago, o aniquilamento do futuro da próxima geração e a degradação de todo o modo de vida. Mais: a sociedade grega mostrou que não aceitará ser usada como cobaia da economia neoliberal global. Por Stathis Gourgouris

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É encorajador ver as fileiras da Syriza a organizar discussões abertas e públicas sobre a questão “o que é um governo de esquerda?”. Foto de left.gr

Ao escrever poucos dias antes das eleições de 6 de maio na Grécia, afirmei que estas eleições eram as mais importantes da história recente do país e que, na sua resposta às principais estruturas do capital global, a sociedade grega encontra-se na vanguarda global. Ambas afirmações mantêm validade, exceto que as próximas eleições de 17 de junho serão ainda mais importantes que as de maio.

Os resultados eleitorais de 6 de maio demonstraram que a maioria do povo grego recusa-se a aceitar o desmantelamento imposto à sua infra-estrutura social e económica, o empobrecimento relâmpago de amplos extratos da sociedade, o aniquilamento do futuro da próxima geração e a degradação de todo o modo de vida. Ainda mais importante, a sociedade grega mostrou que não aceitará ser usada como cobaia da economia neoliberal global. Como foi dito num recente artigo do The Wall Street Journal, não se trata apenas de uma experiência económica. A chanceler alemã Angela Merkel é citada a admitir que, ao impor medidas de austeridade tão dolorosas, a troika quis transformar a Grécia num exemplo de punição dirigida a qualquer outra sociedade europeia que pudesse considerar a hipótese de resistir às suas ordens.

Nada nos surpreende, muito menos o cinismo do poder financeiro global e dos média mainstream ao seu serviço. De muitas maneiras, trata-se de uma velha história. Não é a primeira vez na história que o destino de sociedades inteiras fica nas mãos de banqueiros, apesar de poder ser duvidoso para nós recordar que quando isto é levado ao extremo, as sociedades destroem-se numa violência extraordinária e na guerra internacional. Dado que a União Europeia, como ideal político, foi constituída para evitar situações como essa, é notável que a sua liderança política e económica seja a principal responsável por prosseguir neste curso catastrófico contra todo o sentido de prudência e medida.

Há dimensões gerais e particulares desta situação que têm de ser reiteradas.

Particularidades gregas

De acordo com o que mostrou a vontade política popular, a Grécia está diante da perspetiva de um governo de esquerda sem paralelo na sua história democrática. Não só os resultados eleitorais de 6 de maio, como as subsequentes sondagens mostram que a Coligação da Esquerda Radical (SYRIZA) está a tornar-se o veículo preferido da voz do povo farto deste empobrecimento imposto. Mas é também – e isto é frequentemente minimizado nas reportagens internacionais – uma declaração da oposição do povo a um sistema político corrupto e clientelista. Enquanto que nos anos anteriores um voto na Syriza pode ter sido o luxo de uns poucos que votavam na oposição (além dos que pertenciam ideologicamente a este espaço político), hoje é um voto de urgência com reivindicações inteiramente práticas e consequências reais. A Syriza já não é a coligação dos intelectuais de esquerda e da juventude rebelde. Tornou-se um ponto de encontro político para as pessoas que podem nem ser aderentes ideológicos dos princípios da Syriza em sentido estrito, mas que veem nela a perspetiva de uma alternativa – realmente, a necessidade de uma alternativa.

Os gregos não são os corruptos beneficiários de um sistema de subsídios e subornos, como tem dito a representação orientalista dominante nos média mainstream internacionais. É claro que houve uma elite política corrupta que governou com impunidade durante os últimos quase 30 anos. É claro que houve uma extensa fuga aos impostos – extensa mas não espalhada indiscriminadamente pelas fileiras de uma população inteira. É claro que existiu corrupção no sistema judiciário e no setor público ao serviço de um estado clientelista. Mas muito deste fenómeno político e social, em vários graus e combinações, existiu (e continua a existir) em todos os países que se sustentam em qualquer grau de relações económicas capitalistas, incluindo as mais avançadas, mais “racionalizadas” e mais “modernizadas” economias. Nenhum analista sério iria querer descontar a culpa grega sobre a situação atual. Mas, igualmente, nenhum analista sério deveria ignorar o facto de que: 1) esta culpa não é um fenómeno especificamente grego; 2) no problema especificamente grego há muita responsabilidade dos financeiros internacionais que fazem negócios com a Grécia nos últimos 30 anos e das políticas gerais na União Europeia, tanto económicas quanto políticas.

A maioria dos gregos está consciente dos problemas endémicos da sua sociedade. Foi precisamente por isso que puniram nas urnas a 6 de maio os dois partidos que governaram antes o país, e é por isso que se inclinam a apoiar a Syriza como uma perspetiva de alternativa. É bem claro que, com a exceção de uma pequena minoria de nacionalistas tanto da esquerda quanto da direita, o povo grego está comprometido com o projeto europeu. Mas não querem perder a sua soberania por decisões políticas extra-territoriais em nome do projeto europeu, nem querem ser pilhados pelos mercados globais em nome das políticas monetárias da União Europeia. E por que deveriam sê-lo? Que outra sociedade europeia gostaria de o ser? Esta questão nunca é colocada.

Uma das muitas vilezas propagandísticas nos média mainstream é de apresentar a Syriza como se defendesse uma plataforma antieuropeísta. Nada mais distante da verdade. Mais do que qualquer outro partido político grego, a Syriza está comprometida com uma mudança total do corrupto e clientelista sistema do estado político grego, incluindo medidas fortes para derrubar inúmeros privilégios da elite política que os usou para governar impunemente durante décadas. Mas a Syriza não pode apoiar uma austeridade imposta e administrada do exterior que determina o estrangulamento de todas as capacidades económicas e políticas do povo grego – um programa de austeridade que foi criticado e rejeitado pelos mais mais importantes economistas do mundo, independentes dos interesses financeiros globais (o mais importante deles é Paul Krugman), que repetidamente advertiram para as consequências catastróficas em termos da economia real. A Syriza não pode apoiar um status quo que rouba um povo da sua soberania e degrada a sua existência; não pode comprometer-se a atuar como um governo de criados, criados dos banqueiros, dos financeiros e das elites políticas estrangeiras. Foi por isso que o povo grego pôs a sua vontade política por trás dela, independentemente da posição ideológica.

O resultado eleitoral parece demasiado apertado, já que a neoliberal Nova Democracia está a consolidar o flanco direito, no desespero de perder os seus privilégios e em total desrespeito das salvaguardas da soberania do país. Mas a tarefa que espera a Syriza já está determinada e tem uma real gravidade. É encorajador ver as fileiras da Syriza a organizar discussões abertas e públicas sobre a questão “o que é um governo de esquerda?”. Ao emergir como real opção de governo, a Syriza está a assumir uma enorme responsabilidade diante do povo grego, o primeiro passo da qual é ultrapassar o tabu geral sobre assumir o governo. Fora de situações revolucionárias – na verdade, devido ao seu legado revolucionário – a esquerda mundial desenvolveu-se no papel de mera oposição aos partidos do governo no Parlamento. Pode-se dizer que o apego da esquerda à oposição foi tão grande que qualquer discurso acerca de assumir a responsabilidade do governo era considerado automaticamente como um compromisso ou mesmo uma traição de princípios. O facto de esta atitude ter enfraquecido a capacidade política de a esquerda exprimir a vontade popular não mereceu a devida atenção entre as suas fileiras.

Assim, a Syriza encontra-se na encruzilhada de uma extraordinária decisão, que tem repercussões para além da Grécia, como afirmo abaixo. Está a ser chamada a restaurar a dignidade perdida através da luta por retomar a soberania perdida do país contra, por um lado, forças externas brutais e, por outro lado, contra tendências internas que apontam quer para uma estúpida desconfiança nacionalista ou para uma capitulação ao sistema estabelecido que espera manter os seus privilégios catastróficos. A Syriza não pode seguir por este difícil caminho atuando da mesma forma de sempre: na oposição. Precisa de governar – o que, acima de tudo, significa restabelecer e decretar um código de justiça numa sociedade que foi deixada virtualmente em total anomia, uma sociedade sem leis que foi deliberadamente cultivada pelo partidos que governaram antes, para o seu exclusivo benefício financeiro e político. Como governo que legisla e protege a legalidade do povo, uma das primeiras medidas da Syriza terá de ser a de purgar a polícia grega dos bem conhecidos elementos fascistas, rejeitar leis que protegem os deputados dos processos judiciais e restaurar a credibilidade do falido sistema judiciário.

Os especialistas dos média mainstream estão obcecados com o que a Syriza vai fazer ao Memorando e se vai implementar as reformas económicas, quando de facto o apelo da Syriza para implementar as reformas políticas e sociais de cima abaixo é precisamente o que é necessário à sociedade grega para restaurar a sua credibilidade financeira e a sua capacidade para o desenvolvimento económico, que é ao mesmo tempo real e responsável do ponto de vista fiscal e ambiental. Banqueiros e financeiros em todo o mundo, com o apoio dos média servis, estabeleceram a linguagem dos números como a única linguagem da verdade, ao mesmo tempo que a sua irresponsável manipulação dos números mandou para a ruína populações inteiras, homens, mulheres e crianças reais. Mas a batalha contra a corrupção da sociedade (que incluiria as fileiras destas elites financeiras) não pode ser calculada e conduzida na linguagem dos números; tem de ocorrer na esfera da luta social e depende da capacidade política de um povo para determinar (e alterar) os seus próprios caminhos.

Significado global

Argumentou-se ampla e convincentemente que o estabelecimento da chamada globalização andava de mãos dadas com o enfraquecimento e declínio do estado soberano. Vemos um amplo fenómeno de governos eleitos que ou são incapazes de combater as invasões dos mercados (frequentemente à mercê das agências de rating, como se nações fossem empresas) ou são controlados por poderosos conglomerados financeiros (a escandalosa lei dos Cidadãos Unidos instituída pelo Supremo Tribunal dos EUA é a mais penosa realização deste fenómeno). Sem dúvida que a capitulação destes governos contou com o consentimento tácito da maioria da população, que se vendeu (em mais do que uma forma) ao sonho da prosperidade económica e ao conforto do consumismo.

Mas à medida que banqueiros e financeiros se lançavam numa incansável corrida pela ganância da acumulação de capital, a riqueza real saiu dos lares, perderam-se casas, poupanças e contas de poupança-reforma minguaram, e a dívida impagável tornou-se a nova economia. Ao mesmo tempo, os conglomerados globais continuam a obter lucros recorde e os principais executivos dos bancos e das empresas continuaram a premiar-se a si mesmos com bónus ainda mais altos, como principais negociantes da dívida. É neste sentido que o investimento bancário se torna um roubo e não se pode deixar de recordar o poema brilhante de Bertolt Brecht, na boca de Mac Navalha na Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado com fundar um banco!” As irónicas declarações de Mac exemplificam o princípio essencial do capitalismo financeiro: os bancos podem jogar livremente com os depósitos e as poupanças das pessoas, ou com as propriedades hipotecadas, mas enquanto guardam milhares de milhões para eles, impõem às pessoas milhares de milhões de perdas devido às suas apostas imprudentes. Os programas de austeridade não passam assim de formas de ganhar dinheiro com estas perdas, ao mesmo tempo que países inteiros são escravizados pelos juros das dívidas pagos a taxas de tubarão.

A Grécia é um país pequeno e uma economia pequena. Por isso foi escolhida como cobaia para estas manobras punitivas neoliberais; a confiabilidade, em termos económicos, é correspondentemente pequena. Mas os povos da Europa particularmente – junto com os povos do mundo que estão a observar – precisam de compreender que a resistência grega, que não quer ser a tal cobaia, tem vastas consequências porque afeta o futuro de todos. Se a Grécia cair e for acorrentada com sucesso pelas ordens do capital global, terá aparecido no interior da União Europeia um precedente que desmantela a própria soberania da UE como um projeto político. Seja como for que aconteça, seja por capitulação total ou por expulsão, a morte da Grécia é o suicídio da União Europeia. E pode acontecer que os interesses financeiros globais não se importem (de facto, à luz dos últimos acontecimentos, não têm mostrado qualquer preocupação), mas as populações reais preocupam-se certamente com o quê e quem determina o seu futuro, especialmente quando este parece estar em perigo. O recente fenómeno das assembleias de movimentos em espaços públicos ocupados, apesar dos seus defeitos, sugere que, na esteira da crise nos centros do capitalismo financeiro, as pessoas estão a sair da sua inércia consumista e ganhando consciência de que a sua relativa prosperidade é inteiramente fabricada fora do seu domínio de controlo e, assim, pode ser – com incomensurável velocidade e a uma escala sem precedentes – revogada quase instantaneamente.

Este doloroso despertar inclui a compreensão de que os mecanismos estatais ficaram amplamente comprometidos, à medida em que as elites governantes trocaram a soberania do seu país por uma pequena fatia da torta financeira. Assim, a política está a dar uma volta interessante em direção aos seus aspetos elementares: ação cidadã de massas, antes de tudo nas ruas, que se tornou na única opção disponível que não envolve compromissos, mas também nas eleições, onde os cidadãos revogam o seu consentimento às relações clientelistas que antes ajudaram a criar. Sem dúvida que à medida que o político é violentamente tomado pelo económico no próprio terreno do governo – literalmente, porque banqueiros e tecnocratas financeiros são nomeados para gerir os assuntos do estado (Grécia e Itália são os exemplos mais recentes) – o único espaço para reivindicar o político é ocupar os espaços públicos em números maciços. Chegámos a um ponto em que a própria linguagem dos números que desacredita a existência do individual social real só pode ser conduzida por grande número de indivíduos reais que querem obter de volta a sua autodeterminação contra a capitulação da linguagem dos números.

Na era da desterritorialização globalizada pelo que chamamos de “a política da finança”, cumprimos a mais elementar política de todas: a política das pessoas reais produzindo um novo público democrático que reivindica o território da sociedade. Não se trata de defender alguma noção ancestral de nação: trata-se de restabelecer o território da autodeterminação, o terreno essencial para qualquer democracia. Apesar de os crescentes fenómenos do nacionalismo fanático (mesmo fascismo) na Europa serem também consequência da enfraquecedora desterritorialização da economia globalizada, estes precisam de ser combatidos com a mesma força, porque significam um modo de capitulação (económica) por outra (política). Os movimentos radicais democráticos são de facto indicativos do redesenho das fronteiras da autodeterminação de sociedades específicas e do redesenho da capacidade de uma nova internacional, uma solidariedade entre povos em sociedades diferentes que se juntam precisamente na co-incidência da resistência à incapacitação globalizada.

A este respeito, apesar de pequena, em números, pelos padrões globais, a resistência grega continua a estar na vanguarda, especialmente para o povo das sociedades europeias que enfrentam agora a mais difícil decisão desde foi consolidado o projeto da União Europeia: que esta União seja, afinal, nada mais que uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado global, com grande desprezo ao destino dos seus habitantes, ou uma coligação de povos que tomam as suas próprias decisões políticas sobre a salvaguarda conjunta do seu futuro.

10 de junho de 2012

*Stathis Gourgouris é Diretor do Instituto para a Literatura Comparada e Sociedade da Universidade de Colúmbia.

Publicado em Greek Left Review

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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