A alta de preços da eletricidade ainda vai nos seus primeiros episódios, mas já colocou em xeque o modelo do chamado mercado elétrico. O Mibel é um lugar estranho, onde o preço pago pela eletricidade produzida numa central nova a estrear é o mesmo que é pago a outra que esteja totalmente amortizada pelos consumidores. Nesse “mercado”, uma barragem de fio de água, com custos de produção irrelevantes, cobrará o mesmo preço que é pago pela última unidade de energia adquirida às centrais com os maiores custos (as que produzem a gás). É precisamente a alta dos preços do gás e, sobretudo, das emissões de CO2, que têm feito disparar o preço cobrado pelas centrais térmicas - e, logo, por todo o “mercado”.
Esta alta do gás e das emissões de CO2 vai manter-se, pois é impulsionada por medidas necessárias no combate às alterações climáticas. Por isso, o governo deve atuar com urgência para que a alta do CO2 não implique uma escalada dos custos energéticos das pessoas em plena crise. Nessa perspetiva, o governo deveria deixar de recusar duas propostas do Bloco que teriam efeitos imediatos na contenção dos aumentos da fatura elétrica.
A primeira medida é eliminar, pelo menos em parte, os “lucros caídos do céu” auferidos pelas barragens (windfall profits). Basta a António Costa seguir o exemplo do governo socialista espanhol, que já avançou uma proposta de lei para cortar ganhos excessivos obtidos no mercado por centrais não-emissoras de CO2. De que se trata? Como vimos, quando a produção renovável não é suficiente e as centrais a gás são chamadas a produzir, estas marcam o preço do mercado: as barragens vendem a sua eletricidade no mercado ao mesmo preço que essas centrais. O que Pedro Sánchez pretende eliminar é o ganho das barragens equivalente ao custo das emissões, que é excessivo pois as barragens não são emissoras (seria justo cortar também o equivalente ao custo do próprio gás, pois é igualmente injustificado).
Em Portugal, este corte abrangeria duas dezenas de centrais da EDP, cujos investimentos, já remotos, não previam quaisquer ganhos resultantes da introdução do mercado de carbono. Depois do corte, essas centrais continuariam a ser mais competitivas que as de gás, pelo que a medida não representa qualquer estímulo negativo em termos ambientais.
A segunda medida disponível foi recomendada há mais de dois anos pela Comissão de Inquérito às Rendas Excessivas, com o voto favorável do PS, sendo depois recusada pelo governo: a revisão da remuneração das centrais eólicas. Em 2013, o governo de Passos Coelho mudou as regras do jogo a favor das empresas, oferecendo-lhes um período adicional de remuneração elevada e garantida a partir de 2021, em troca de uma modesta “contribuição” anual, paga entre 2013 e 2020. Essa lei danosa deve ser revogada, devolvendo-se às empresas a contribuição que pagaram, com os respetivos juros. Seria assim reposta a lei de 2005 que enquadrou os investimentos iniciais: estas eólicas, já amortizadas depois de década e meia de tarifa garantida, receberiam uma nova tarifa fixa (alheia às escaladas do mercado), igual à resultante dos leilões para novas centrais - muito mais baixa que a remuneração acrescentada por Passos e Portas (que acompanha o preço de mercado até estratosféricos 90 euros por megawatt-hora). Segundo os cálculos aprovados pela CPI, com esta reversão os consumidores poupariam entre 1.000 e 1.500 milhões de euros nos próximos anos.
A transição energética, por ser urgente, tem que ser justa: não pode tornar-se um fardo insuportável sobre a população e um jackpot para o oligopólio da energia.
Artigo originalmente publicado no Expresso, 20 de agosto de 2021