Está aqui

Cemitério de Lagos revela o passado da escravatura

Estudo científico da Universidade de Coimbra sobre cemitério de escravos do séc. XV, descoberto há 10 anos em Lagos, acrescenta novos dados para compreender uma página negra da história portuguesa e europeia.
Punições públicas na Praça Santa Ana, Brasil. Gravura de Johann Moritz Rugendas, 1827 a 1835. Coleção Itaú Cultural, São Paulo.
Punições públicas na Praça Santa Ana, Brasil. Gravura de Johann Moritz Rugendas, 1827 a 1835. Coleção Itaú Cultural, São Paulo.

Há uma década, escavadoras trabalhavam em Lagos na construção de um parque de estacionamento subterrâneo, numa zona perto das muralhas medievais conhecida como o Vale da Gafaria, quando descobriram ossadas humanas. O achado veio a revelar-se de grande relevância histórica: um enorme cemitério de escravos do século XV, com mais de 150 corpos, que lança luz sobre uma dimensão decisiva e controversa do colonialismo português e europeu.

Os achados foram sendo notícia ao longo dos anos. Em fevereiro, novos detalhes surgiram com a investigação realizada por uma equipa da Universidade de Coimbra, liderada pela antropóloga Maria Santos Ferreira, publicada num artigo na revista científica International Journal of Osteoarchaeology.

No século XV, Lagos era um importante porto no comércio negreiro. Os barcos portugueses navegavam até África e voltavam carregados de escravos e outras mercadorias. Segundo o artigo, os escravos provinham de razias empreendidas nas zonas costeiras de África ocidental, ou em alternativa eram comprados a comerciantes muçulmanos que os traziam do interior do continente. As análises aos esqueletos de Lagos revelou que a maioria era de origem bantu, um grupo etnolinguístico muito diverso que se espalha por grande parte da África subsariana ocidental e central.

A partir de 1444 há registos deste comércio negro na cidade algarvia, que durou até 1512, ano em que o rei D. Manuel I o concentrou em Lisboa. Mesmo sem o comércio, Lagos continuou a ser um porto de paragem para o tráfico negreiro a caminho de Lisboa. Entre 1441 e 1470, terão passado por ali mil escravos por ano; nas décadas seguintes, cerca de dois mil por ano. Em meados do século XVI estima-se que haveria no Algarve cerca de seis mil escravos, que seriam um décimo da população na altura.

Homens, mulheres e crianças, muitos dos escravos não resistiam às condições duríssimas da viagem, e acabavam por sucumbir. Naquela época, só quem era batizado podia ser enterrado na cidade. Como os escravos não eram batizados, foram enterrados entre o século XV e XVII numa zona fora das muralhas de Lagos, onde na altura havia uma leprosaria e uma lixeira, hoje o vale da Gafaria.

A grande maioria dos sepultados tinha até 40 anos de idade (32% tinha entre 20 e 30 anos, 40% 30 a 40 anos, 7% mais de 40). Os restantes 20% eram menores ou crianças, em cujos restos foi possível detetar atrasos de crescimento, falta de esmalte nos dentes, e estruturas ósseas débeis, resultado previsível de défices nutricionais e das "duras e curtas vidas" que lhes foram impostas. Muitos dos restos tinham marcas de traumatismos e lesões degenerativas. Quatro mulheres, um homem e um menor estavam atados quando faleceram, sintoma de como estes "indivíduos escravizados foram tratados, inclusive na morte".

No meio desta violência, os investigadores veem ainda assim sinais de alguma humanidade para com as crianças, que parecem ter sido enterradas com mais cuidado que os adultos. Entre os adultos, 80% não respeitava a orientação cristã daquele tempo, com a cabeça virada a oeste e os pés virados para leste.

Termos relacionados Ciência, Sociedade
Comentários (1)