Cabral ka muri/mori (“Cabral não morreu”)

20 de janeiro 2021 - 17:59

Amílcar Cabral foi assassinado faz hoje 48 anos, mas o tempo da luta é diferente do tempo da biologia e está sempre a trocar-lhe as voltas. Nada que não soubéssemos já: Cabral ka muri/mori (“Cabral não morreu”). Por Rita Lucas.

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Amílcar Cabral - Foto wikipedia.

Quando se foi deste mundo, há 48 anos, Amílcar Cabral deixava atrás de si um legado multifacetado que perduraria no tempo. Entre as suas ramificações, contam-se a admiração na Guiné e em Cabo Verde, cujos povos o elegeriam como herói maior da libertação nacional, e o papel que desempenhou na queda da ditadura que governava os destinos de Portugal desde 1926 (papel a que não soubemos ainda, volvidos quase 50 anos, dar o justo reconhecimento). Inclui-se também a sua celebração unânime no universo anti-colonial, no campo terceiro-mundista e em alguns dos chamados países ocidentais “progressistas”, onde logrou furar as divisões da Guerra Fria – na Suécia, para dar um exemplo, multiplicaram-se as manifestações na sequência do seu assassinato. Este legado compreende ainda os seus discursos e escritos, que deixou à mão de quem os quisesse ler. Foi assim que, para lá dos lugares-comuns que a memória pública guarda, cheguei a Amílcar Cabral.

Dos seminários de quadros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde, do qual era secretário-geral) aos palcos da ONU, da Tricontinental e de outros fóruns internacionais, estes discursos desdobram o pensamento de Amílcar Cabral e dão-nos a conhecer as suas diferentes vertentes e variações, ajustados aos públicos que têm diante. Há uma divisão clássica no estudo da história das ideias que divide os textos em dois tipos: os bons textos para pensar sobre e os bons textos para pensar com. Ora, o discurso de Amílcar Cabral opera um verdadeiro curto-circuito nesta dicotomia: se os seus textos condensam uma época - e que época! – e nesse sentido são textos para pensar sobre, enquanto artefactos históricos, a qualidade teórica das suas análises e a reflexão em torno de perguntas que conservam hoje a sua urgência fazem também deles textos para pensar com. Os paralelos com os nossos dias, dos mais óbvios aos mais inesperados, multiplicam-se, oferecem-nos outros ângulos, ajudam-nos a compreender o que está a acontecer e como nos podemos posicionar.

Num tempo em que a «identidade» se tornou numa das categorias-chave da política, e uma espécie de categoria «catch-all» com todos os equívocos e confusões que isso acarreta, dialogar com o pensamento de Amílcar Cabral e compreender como recusava qualquer mística à sua «africanidade» que não se fundasse na luta, ganha uma renovada pertinência. Perdi o rasto ao texto onde uma vez li que Cabral seria o “contraponto lusófono de Fanon” e, com efeito, eles convergem nesta defesa acérrima da política como lugar de transformação radical da vida e de si, negando qualquer veleidade essencialista (veleidades que, à época em que escreviam, não raras vezes andavam de mãos dadas com o neo-colonialismo). O povo, dizia-nos Cabral, forja-se na luta, da mesma forma que a luta se forja no povo. Não tanto a interseccionalidade de identidades, mas a interseccionalidade das lutas, diz-nos hoje Angela Davis (A Liberdade é uma Luta Constante: Ferguson, Palestina e as Bases de um Movimento, p. 173)

Sobre a interseccionalidade das lutas reflecte também Amílcar Cabral, ainda que à época não tivesse o termo à disposição. É disso que trata aquela que é provavelmente a minha passagem preferida dos seus discursos, em que nos fala da sua “tomada de posição firme contra o colonialismo português, e em consequência, contra todas as injustiças do mundo”. O fascínio pelo «em consequência» não diminuiu desde a primeira vez que o li. Antes pelo contrário, de cada vez que volto a esta passagem, me parece mais extraordinária a capacidade de condensar todo um programa político – e uma postura – em apenas duas palavras. A luta contra qualquer opressão só pode ser, em consequência, a luta contra todas as opressões, porque a pavimentá-la estão a empatia e a solidariedade, que não se fragmentam, não se atomizam, não se dão a conta-gotas. Foi assim que Amílcar Cabral e o PAIGC desenharam a sua luta: o combate ao racismo e ao colonialismo foi também o combate à exploração (a dos colonialistas, sobretudo, mas também a “da nossa gente pela nossa gente”), à opressão das mulheres e às outras formas de opressão que, no seu entender, obstruíam o caminho ao grande objectivo da luta anti-colonial: construir uma comunidade de iguais.

Como estes escassos exemplos, muitos outros podiam ser dados. Amílcar Cabral merece que celebremos os factos e os feitos da sua biografia, da mesma forma que merece todos os elogios que lhe são justamente atribuídos. Mas num mundo que continua a enfermar de quase todos os problemas e injustiças a cujo combate Cabral entregou a vida, a maior homenagem que lhe podemos fazer é o diálogo com as suas ideias, convertendo-as em ferramentas de transformação de futuro, como o faz hoje quotidiamente o movimento anti-racista e quem resiste aos avanços da extrema-direita. Amílcar Cabral foi assassinado faz hoje 48 anos, mas o tempo da luta é diferente do tempo da biologia e está sempre a trocar-lhe as voltas. Nada que não soubéssemos já: Cabral ka muri/mori (“Cabral não morreu”).