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50 anos da morte de Jimi Hendrix, grande guru da guitarra

Viveu apenas 27 anos, mas os últimos quatro foram suficientes para produzir uma revolução a partir do instrumento e da intenção de fundir o rock e o blues mais sujos com o puro psicadelismo dos anos 1960. Artigo de Cristian Vitale.
Jimi Hendrix.
Jimi Hendrix. Foto publicada por Anton Johansson/Flickr

"Quero fazer música tão perfeita que se filtre através do corpo e seja capaz de curar qualquer doença"

Na verdade, para Jimi Hendrix o desejo não mudou. Depois de alinhavar tal frase durante uma das últimas entrevistas que deu, ele morreu. Era sexta-feira, 18 de Setembro de 1970.

A versão "oficial" é que se afogou no próprio vómito a caminho do hospital. Isto aconteceu devido à inexperiência dos enfermeiros que o puseram de costas na ambulância, depois de o encontrarem inconsciente no quarto de hotel, que partilhou com Monica Dannerman, a sua namorada, em Notting Hill. Ele tinha misturado barbitúricos com vinho em grandes quantidades. Uma hipótese mais recente, porém, fala em assassinato. James Wright afirma, no seu livro "Rock Roadie" (2009), que na verdade Michael Jeffery o matou. O alegado assassino era seu agente e, de acordo com o livro, pensava que Jimi estaria prestes a deixá-lo e não queria perder o seguro de vida multimilionário que tinha subscrito.  A versão não é descabida, dado que Wright era tão próximo de um como do outro, e afirma que Jeffery lhe confessou pessoalmente um ano após o facto. Mas duas pontas soltas turvam a possibilidade. Uma, é que o homem de negócios já não está vivo para ratificar as suas possíveis alegações: morreu em 1973. A outra, é que não se percebe porque é que Wright levou tanto tempo a tornar públicas essas notícias.

De qualquer modo, James Marshall Hendrix desapareceu. O infernal e poderoso deus da guitarra devorou-o nas suas mandíbulas há cinquenta anos. Tinha 27 anos, a mesma idade que Brian Jones, Janis Joplin, Jim Morrison e Kurt Cobain, quando morreram. Tal como este último, nasceu em Seattle, mas 25 anos antes, em 1942.

Desde o período do seu nascimento até 1966 - ano da sua chegada a Londres - destacam-se algumas sequências que reapareceriam de forma alegórica durante a sua curta, mas intensa vida. Diz-se que tinha sido expulso da escola secundária, porque o negro tentou “engatar” uma coleguinha branca. Pouco depois, em 1961, entrou para o exército como paraquedista - uma decisão relacionada com evitar uma condenação por conduzir carros roubados e nada a ver com espírito patriótico - até que uma grave entorse do tornozelo (outros afirmam que foi expulso por ser inútil) sofrida durante uma aterragem o atirou de volta. O terceiro marco do jovem Hendrix - e o mais relevante - é que ele fez as suas primeiras armas musicais ao lado de negros: o pioneiro da soul, Solomon Burke; o saxofonista King Curtis; Wilson Pickett; o cantor Curtis Knight, os "Isley Brothers" e os "Upsetters" de Little Richard, entre outros, até formar a sua própria banda - a "Jimmy James and the Blue Flames" - , que fez soar as primeiras versões de "Foxy Lady", "Like a Rolling Stone" ou "Summertime" no mítico "Café Wha?", em Greenwich Village.

Um paraquedista sobre Londres

O paraquedista Hendrix funciona como uma metáfora adequada para comparar a sua chegada a Londres. Absolutamente ninguém o conhecia quando aterrou em terras britânicas, precisamente como paraquedista que tentou ser no exército nos Estados Unidos. Chas Chandler, baixista dos "Animals", tinha-o ouvido tocar "Hey Joe" no "Cafe Wha?" de Village - era o que Bob Dylan, os Beatles e os Stones costumavam ir - e apostou tudo nele. Tanto que deixou a sua posição na banda de Eric Burdon e tornou-se representante, produtor, confidente, protetor e amigo desse herói de guitarra anónimo de 23 anos. Pagou os seus bilhetes de ida. Vestiu-o. Colocou-o no seu apartamento. E alimentou-o, ao ponto de o mundo dever a Chandler o facto deste génio ter saído da lâmpada. Também a Linda Keith, mulher de Keith Richards, que o apoiou depois de o ver tocar com os Squires, no The Cheetah Club. E depois a Noel Redding e Mitch Michell, que viriam a ser a base rítmica da banda "Jimi Hendrix Experience".

A estreia do trio fulminante foi, em meados de Outubro de 66, na Novelty de Evreux, em Paris, na abertura do cantor Johnnie Hallyday e foi bem recebida. Mas para garantir que a sorte de principiante não acabasse em Londres, os ingleses tiveram de ver Hendrix rodopiar com o seu som tempestuoso a cena do "Scotch of St. James" no concerto premonitório, em Dezembro de 1966. O rock and roll expansivo, forte e enfeitiçante do cherokee deslumbrou olhos, ouvidos e corpos. E já não havia maneira de parar o vulcão sonoro que fluía da sua guitarra da mão esquerda, aquela que faria perturbar a liderança do deus branco do blues, Eric Clapton, que o ”sofreu” na pele quando o viu tocar "Killing floor", durante um concerto dos Cream na University of Westminster.

No tempo que uma nuvem demora a passar, Hendrix tornou-se o rei negro do blues branco através de marcos que se foram ligando. Primeiro, em Novembro de 66, quando John Lennon, Jeff Beck, Pete Townshend e Kevin Ayers, entre outros, ficaram indiferentes aos seus truques inauditos no "Bag O'Nails", em Londres. Depois, no início do ano seguinte, quando o tipo pegou fogo à guitarra no Astoria, em Londres. Depois, é claro, aqueles dois registos seguidos (Are you Experienced and Axis: bold as love) que se tornariam decisivos para o acid rock selvagem, em quatro canais, que marcaram o ano de 67. O humor revolucionário de temas como o nostálgico "Spanish Castle Magic", a bela "Little Wing", "May this be love", ou aquela ode à dança indígena chamada "Castles made of sand" (alguns deles inspirados no que ouviam Hendrix e Chandler nas suas visitas diárias a pubs londrinos) foram centrais. Tanto que, de profeta pouco conhecido na sua terra natal, Jimi pôde regressar aos Estados Unidos como campeão. O festival Monterey Pop, no qual participou graças à tensão de Paul McCartney e Brian Jones com os organizadores, caiu aos seus pés quando, no final da sua parte, o guitarrista abismal e bizarro voltou a imolar a sua guitarra em chamas.

Amante negro, mulheres brancas

Essa coisa do amor de Hendrix pelas mulheres brancas não se ficou pelo episódio escolar. Na capa de "Electric Ladyland" (1968) há uma bela mulher negra ao fundo, mas as que ocupam quase todo o foco central da imagem são as louras, nuas, que Jimi provavelmente tratava como a sua guitarra... como um pêndulo entre a ternura e a selvageria. As suas inclinações sexuais, ao contrário do que teve de passar na escola, foram bem acolhidas pelas raparigas de Carnaby Street. Tanto que a má ideia de punir a sua ousadia iconográfica, censurando os seus discos em meios de comunicação ou em lojas, só serviu para aumentar o teor das fantasias sexuais coletivas, numa época que esperava e procurava precisamente isso: a transgressão de hábitos e costumes... a rejeição visceral da moralidade vitoriana.

No musical "Electric"... ratificou o que os mais próximos dele sabiam: o apego obsessivo de Hendrix ao trabalho de estúdio que o levaria a fazer um espetáculo após outro para financiar a contrução do seu próprio: o Electric Lady. Ninguém conseguia compreender os sons que o tipo tirava da sua guitarra, mesmo que fosse pela força de ter que repetir trinta vezes um solo. Ou para manipular o pedal wah-wah, os distorções e as caixas de efeitos tantas vezes quantas ele quisesse. Ou para redimensionar o som através de uma parede de Marshalls empilhados. Ou de improvisar riffs até parir o desconhecido. É verdade que o trabalho meticuloso no estúdio veio em dois álbuns iniciais - basta ouvir o trabalho de guitarras que Jimi implementa em "Are you Experienced?", ou em "Exp", já agora - mas foi em "Electric Ladyland" que a perfeição do estúdio atingiu o seu zénite. O trabalho da sua voz em "Crosstown Traffic" é inacreditável. Nem se pode acreditar na forma como a guitarra fala no início de "Stil raining, still dreamin", ou na peça mística que dedicou à sua mãe cherokee: "Gypsy eyes".

O disco também significou levar a cabo entre quatro paredes um hábito que o guitarrista sempre teve nos bares e clubes onde tocou; o de tocar tanto com conhecidos como com estranhos. Foi assim que Jack Cassidy, baixista de Jefferson Ariplane, e o próprio Steve Winwood no órgão, o ajudaram a trazer à tona, com estrondo, o impressionante "Voodoo Chile".

Regresso às raízes

Entretanto, o começo negro em Nova Iorque voltou à vida de Hendrix em meados de 1969. No auge de "Lover man", o reconvertido  "Stone free", a versão energética de "Bleeding Heart" ou o clássico de Elmore James (canções que acabariam no póstumo "Valleys of Neptune"), Jimi separou-se de Redding aos murros. Ao ponto de nunca mais se juntar a ele, após o concerto  acidentado no Festival Pop de Denver, em Junho de 1969. A relação entre ambos tinha-se quebrado desde as sessões agitadas de "Electric"..., cujo constante pulular de pessoas desconhecidas pelo estúdio (o que muitos chamavam de "circo") acabou por fazer transbordar a paciência de Redding. Tal situação, mais alguma pressão das organizações de ativistas dos direitos negros, definiu a separação do grupo.

O efeito imediato, claro, foi que Jimi se voltou a pintar de negro. Primeiro, montou "Gypsy, Sun & Rainbows" com dois percussionistas afro-latinos (Juma Sultan e Jerry Velez); o seu velho amigo do exército, Billy Cox, o mesmo Mitchell e outro amigo, que tocava guitarra rítmica: Larry Lee. Foi essa a banda com que se apresentou na manhã do quarto dia de Woodstock, para trinta mil das 400 mil pessoas que lá tinham estado, e a que o acompanhou até que dois deles (Lee e Velez) decidiram partir, forçando Hendrix a regressar ao formato de trio com dois da sua cor: o mesmo Cox e Buddy Miles na bateria. "The Band of Gypsys gravou o álbum homónimo ao vivo (gravado no último dia de 1969 em Filmore East) no qual todos os géneros negros com toques de soul convergiram num psicadelismo radicalmente diferente do que se conhecia até então.

O entendimento ambíguo entre Hendrix e o irregular Miles, contudo, acabou por obstruir a continuidade do grupo, e, em 1970, Jimi voltou a encontrar-se com Mitchell. No entanto, não havia muito que pudessem fazer, para além de parte do que viria a ser outro álbum duplo ("First rays of the new rising sun") ou trazer alguma raiva ao festival da Ilha de Wight. Meses após o reencontro com Mitch, a morte apanhou Hendrix de surpresa. Era como se a recuperação do seu ciclo de vida, o impulso da vida, estivesse irremediavelmente misturado com o seu oposto, dado por uma combinação complexa de drogas, velhos vazios que carregam angústia e falta de controlo. A disposição pacifista e anti-guerra do Vietname de alguns dos seus últimos temas ("Machine Gun”, por exemplo) contrastou com a rispidez radicalizada de certos "Panteras Negras", que insistiam em acusá-lo de ser um traidor à sua raça.

Durante o ano zero da década de setenta, Hendrix alternava alguns dias de esplendor, como o concerto que deu para quase meio milhão de pessoas, no Festival Pop Internacional de Atlanta no início de Julho, com dias em que ficava no apartamento, sumido em longas viagens de heroína e com o cabelo a cair-lhe em tufos. Ja o cansava tocar a Fender Stratocaster com os dentes ou colocá-la nas costas. Dizia-se que ele próprio não podia controlar o que tinha criado. Ou que isto era impossível, por causa da crueldade do show business. Dizia-se que o seu caráter lixado o prejudicou em decisões cruciais. O que não foi dito, porém, foi como diabo conseguiu gerar semelhante obra. O segredo não está na música abstrata, espalhada quem sabe onde, mas enterrado ao lado do seu corpo e o da sua mãe índia no Greenwood Memorial Park.
 


Artigo publicado em Página 12. Traduzido por António José André para o esquerda.net

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