Kollontai nas memórias de Gromiko: “a primeira mulher embaixadora”

“Mulher inteligente e com uma língua afiada, que sabia debater com habilidade e fazia-o em vários idiomas” assim era invocada a primeira mulher à frente de uma embaixada nas memórias daquele que foi cerca de 30 anos ministro dos Negócios Estrangeiros do regime soviético num documento histórico trazido por Miguel Pereira.

27 de March 2022 - 20:21
PARTILHAR
Alexandra Kollontai em 1946.

Em Espanha a primeira mulher a ser embaixadora foi a socialista Isabel Oyarzabal, em 1936, sob o governo da Frente Popular, no tempo da República.

Nos Estados Unidos da América só em 1949 é que uma mulher assumiu essa função: Eugenie Anderson.

Em França aconteceu só em 1972, com Marcelle Campana.

E em Portugal uma coisa dessas só foi possível depois do 25 de Abril, quando Maria de Lourdes Pintasilgo foi nomeada embaixadora junto da UNESCO – em 1975.

Pois antes delas todas, a primeira foi Alexandra Kollontai, em 1923, como embaixadora da URSS na Noruega. Numa altura em que muitos governos ainda não reconheciam a URSS.

Aliás, em 1926, quando o México estabeleceu relações diplomáticas com a URSS, foi Kollontai que para lá seguiu como embaixadora, conseguindo colocar as relações dos dois países numa “tendência ascendente que continuou desde então” - segundo sublinharia mais tarde Andrei Gromiko (ministro dos negócios estrangeiros da URSS entre 1957 e 1985).1

Na Suécia, país neutral, Kollontai foi uma embaixadora em tempo de guerra – a 2ª Guerra Mundial.

Andrei Gromiko ainda a conheceu pessoalmente, já no final da vida dela. Convívio que recordaria mais tarde, no seu livro de Memórias:

Sublinhando que Kollontai havia sido “a primeira mulher no mundo a ser embaixadora”, Gromiko, considerou que “ela teve um sucesso notável, tendo em conta que nem todos os países se conseguiam acostumar à ideia de ter na sua capital a embaixada de uma grande nação socialista”. Mas lá se habituaram, mudança que, a seu ver, “foi facilitada pelo facto de a União Soviética ser representada por uma mulher, ainda por cima uma mulher que conhecera Lenine. Mulher inteligente e com uma língua afiada, que sabia debater com habilidade, e fazia-o em vários idiomas”.

Conhecia-a em Moscovo, por volta de 1949-50”, recordava Gromiko. “Ela estava doente, paralisada e numa cadeira de rodas. A minha família e eu estávamos alojados no mesmo sanatório que ela, e demo-nos muito bem”. Para, “um homem então relativamente novo, na casa dos quarenta, ela representava a história viva da revolução, uma lutadora do partido que tinha falado e trocado correspondência com Lenine, e só por isso já impunha respeito”.

Kollontai já seria “então uma pálida sombra da sua antiga exuberância”, mas Gromiko recordava particularmente uma conversa: “perguntei-lhe acerca do México mas não disse muito do seu trabalho por lá: era mais faladora acerca do seu tempo na Suécia, onde tinha estado os últimos quinze anos”.

Segundo Gromiko, Kollontai falou assim:

Imagine, Andrei Andreevich, cheguei a ser declarada persona non grata na Suécia e expulsa pela polícia. Aconteceu antes da revolução, quando o nosso partido ainda estava na clandestinidade e os sociais-democratas russos eram temidos como uma praga em algumas capitais.

Mas os anos passaram e subitamente o governo soviético estava a pedir a aprovação como embaixadora da mesma Kollontai que tinha sido expulsa de Estocolmo. Ou os suecos já não se lembravam do meu nome, ou pensavam que se tratava de outra pessoa, ou sabiam perfeitamente bem mas não queriam prejudicar as suas relações com a União Soviética por minha causa. Não sei. Provavelmente por este último motivo, mas de qualquer modo, deram a sua aprovação e lá estava eu sendo recebida pelo rei, pelo primeiro-ministro e pelo ministro dos negócios estrangeiros.

Falei-lhes muitas vezes para não deixarem que as frequentes provocações nazis os levassem a quebrar a sua neutralidade. E nunca deixei de pensar no nosso povo, morrendo, ali do outro lado do Báltico...”2

Por Miguel Pereira.

Notas:

1Gromyko, Andrei (1990), Memoirs, New York: Doubleday, p. 266

2ibidem, pp. 313/4

Termos relacionados: