Programa de reestruturação propõe-se reduzir 249,7 mil milhões de euros da dívida

08 de July 2014 - 0:23

Proposta apresentada pelos economistas Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos define um roteiro concreto para a redução de 149 mil milhões da dívida pública e de 100,7 mil milhões de redução do passivo dos bancos, através de um processo de resolução bancária sistémica. Objetivo é garantir o autofinanciamento futuro da economia nacional.

porLuís Leiria

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Redução da dívida é a única proposta realista

Quatro economistas portugueses apresentam na próxima quinta-feira o primeiro programa para a reestruturação sustentável da dívida portuguesa, definindo o objetivo de reduzi-la drasticamente e, a partir daí, garantir o autofinanciamento futuro da economia nacional, rompendo com a lógica do protetorado.

O documento de 70 páginas, que o Esquerda.net divulga na íntegra, é assinado pelos economistas Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos e define as propostas e os instrumentos para atingir uma redução de 249,7 mil milhões de euros do valor presente das dívidas pública e bancária de Portugal, para alcançar os objetivos de sustentabilidade.

Desta redução, 149 mil milhões seriam obtidos pela reestruturação da dívida pública e 100,7 mil milhões pela reestruturação da dívida dos bancos portugueses, através de um processo de resolução bancária sistémica.

O Esquerda.net sabe que os autores dedicaram ao programa muitos meses de trabalho, devido também à dificuldade de precisar os dados e perceber diferenças por vezes gigantescas entre fontes estatísticas oficiais. Assim, para poder chegar às simulações que constam no documento, os signatários contaram com a ajuda de outros colegas e técnicos do IGCP e do Banco de Portugal.

Este programa concretiza em números, em objetivos, em instrumentos, um roteiro completo que dá consequências às palavras. A partir de agora, a discussão é prática.

A proposta agora divulgada eleva a um novo patamar o debate sobre a dívida que ganhou corpo na sociedade portuguesa. Um marco nesse debate foi o chamado Manifesto dos 74 que defendeu a reestruturação da dívida. Ainda no último Conselho de Estado houve várias vozes a levantar esse tema, mostrando como avança na sociedade portuguesa a ideia de que o Euro é uma estrutura deficiente e perigosa e que a reestruturação da dívida é uma solução urgentíssima. Este programa concretiza em números, em objetivos, em instrumentos, um roteiro completo que dá consequências às palavras. A partir de agora, a discussão é prática.

A austeridade fracassou

O documento demonstra em números como a austeridade fracassou e como, mesmo se Portugal cumprisse exatamente as exigências da troika para os próximos 20 anos, o resultado não seria diferente. “Nunca antes um país foi capaz, através da austeridade, de pagar uma dívida externa ao nível da portuguesa”, afirmam os autores.

Mais: “se aceitar o prolongamento da austeridade depois do resgate da troika, o país consolidaria a sua posição de protetorado”, afirma o texto, “com poderes externos a definirem a política económica portuguesa”, o que implica dependência contínua e crescente, e condiciona a soberania nacional.

Os quatro economistas mostram que as obrigações financeiras do Estado a curto e médio prazo são incomportáveis: entre 2013 e 2017, Portugal terá de amortizar dívida de cerca de 100 mil milhões de eurose, no contexto do Tratado Orçamental, melhorar o saldo orçamental anual em mais 7 mil milhões de euros, segundo o próprio Banco de Portugal. Ora isto não é possível, afirmam – e demonstram.

Reestruturar para conseguir o autofinanciamento da economia

O programa define como objetivos a redução da dívida externa de Portugal para as seguintes metas (dados de finais de 2013):

Divida externa líquida: reduzir de 103% PIB para 24% PIB, em valor presente, equivalente a uma redução de 79 pontos percentuais do PIB de 2013 (130,9 mil milhões de euros).

Dívida externa bruta: reduzir de 224% do PIB (valor facial 370,6 mil milhões de euros, dos quais 155,4 mil milhões nas mãos de instituições oficiais) para 145% do PIB.

Redução da posição de investimento internacional de -118,9% PIB para cerca de -40% do PIB, em valor presente.

A partir daí, garantir o autofinanciamento futuro da economia nacional.

Impossível pagar

Dois instrumentos

Para atingir estas metas, o programa propõe o uso de dois instrumentos principais:

O primeiro é a reestruturação da dívida pública, partindo de uma proposta negocial: reduzir o stock de dívida através da alteração de prazos e juros (1% de juro e amortização total do stock atual em dez prestações entre 2045 e 2054, com um período de carência em 2015).

“Pretendemos que a reestruturação seja determinada pela proteção da economia endividada”, disse ao Esquerda.net Francisco Louçã. “É uma posição de força e uma posição negocial. Numa mesa de negociações, as outras partes, aceitando o processo de negociação, proporiam objetivos diferentes. Mas a única forma de se atuar em nome da democracia portuguesa é fixar objetivos. Este relatório é exatamente o tipo de roteiro de negociação que um governo tinha de estar a fazer hoje. E, claro, preparando outros cenários e formas de negociação”, disse o catedrático de economia.

Com a diminuição dos juros, o objetivo é chegar a uma redução do fluxo de pagamentos anuais de 4,7 mil milhões de euros, libertando dinheiro para o crescimento económico.

Reestruturação da dívida bancária

Por outro lado, afirmam os economistas signatários, a sustentabilidade da dívida externa portuguesa “exigirá ainda um processo de resolução bancária especial, que deve proteger a estabilidade do sistema bancário, salvaguardando os seus rácios de capital e solvabilidade, seguindo as melhores práticas internacionais”, como as do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), a agência federal dos Estados Unidos cuja principal função é a de garantia de depósitos bancários.

“Provou-se que os riscos sistémicos são de tal modo gigantescos no sistema bancário português, que este processo é indispensável e urgente”, explica Francisco Louçã. O economista recorda a crise do BCP em 2007 e a crise do BES em 2014, “mas que sabemos que começa com falsificação de contas do Grupo Espírito Santo pelo menos em 2008”. E sublinha: “Quando percebemos que há uma dívida potencial do GES de 7 mil milhões de euros, percebemos que o efeito disto sobre toda a estabilidade do sistema financeiro é tão grave”.

Provou-se que os riscos sistémicos são de tal modo gigantescos no sistema bancário português, que este processo é indispensável e urgente.

A resolução bancária é uma reestruturação dos passivos renegociada com todos os credores, por uma ordem de importância dos credores, para abater a dívida. “O que nós provamos é que só fazendo o processo combinado de reestruturação da dívida direta do Estado e dos passivos bancários é que é possível alcançar o objetivo de redução da dívida externa portuguesa”, aponta Louçã.

A autoridade reguladora, o Banco de Portugal, para proteger os depositantes e garantir a confiança das pessoas e a estabilidade dos seus depósitos, protege o banco, negociando com todos os credores de uma forma muito rápida, e permitindo a continuidade da atividade normal do banco.

De acordo com o programa, esse processo conduzirá a uma redução da dívida bancária de cerca de 24% dos passivos bancários (excluindo capitais próprios) no final de 2013, de que resultará uma redução da dívida externa líquida do sector (direta) estimada em cerca de 30% do PIB.

Chega de perder tempo

Em conclusão, o programa define uma redução do valor presente da dívida pública e da dívida bancária, em consequência da reestruturação de dívida pública e da resolução bancária, em 249,7 mil milhões de euros (ou 149+100,7 mM€), para alcançar os objetivos de sustentabilidade (redução do pagamento de juros, adiamento da amortização da dívida direta do Estado, redução da dívida externa líquida e melhoria da posição de investimento internacional de Portugal).

Os quatro economistas alertam que “o tempo perdido e o agravamento da dívida externa, ao mesmo tempo que a economia foi sendo desmantelada, exige agora uma reestruturação o mais depressa possível e o mais completa possível”.

Os autores admitem o surgimento de outras alternativas. Mas a partir deste programa, quem afirmar ser a favor de uma reestruturação ficará obrigado a dizer exatamente quais são as suas contas e os seus objetivos. E o próprio governo terá de sair do terreno da ideologia e entrar no mundo dos números concretos.

“Não adianta Passos Coelho dizer que a dívida é sustentável... se se cumprisse um superávit primário dez vezes maior do que aquilo que ele conseguiu gerar com os aumentos de impostos e os cortes das pensões e nos salários”, ironiza Francisco Louçã.

Quem são os economistas

Ricardo Cabral: Vice-reitor da Universidade da Madeira e ex-consultor do Banco Mundial. Doutorado em Economia pela Universidade da Carolina do Sul, a sua investigação mais recente é centrada na crise da dívida soberana da zona euro, no sistema bancário, política monetária e crises da dívida externa.

Francisco Louçã: Professor catedrático do Departamento de Economia do ISEG, membro de conselhos editoriais e referee de diversas revistas científicas.

Eugénia Pires: economista, investigadora no SOAS, Universidade de Londres, trabalhou em Portugal na gestão da dívida pública.

Pedro Nuno Santos: economista e deputado do Partido Socialista, pertence à Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças. 

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net