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Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

A autora arriscou esta peça em que se opunha claramente ao regime vigente, com a sua moral oficial pro-catolicismo, questionando a Igreja e a relação que esta estabelecia com o Estado, sendo das obras da literatura portuguesa em que mais claramente se denuncia o comércio religioso, banalizado pela ideia do milagre de Fátima (1917) e pela consequente turistificação que o fenómeno provocou. Mexendo, assim, num dos pilares fundamentais do Estado Novo, não espanta ainda que a obra tenha sido proibida e que só tenha podido ir a cena após o 25 de Abril.

A Pécora: romper os dogmas religiosos

Ao longo da peça, notam-se alguns dos traços mais marcados da estética de Natália Correia: o tom satírico, as ambiências surrealistas, a linguagem que saltita entre a prosa e a poesia, entre o erudito e o popular. Ao mesmo tempo, notam-se as suas posições políticas, que também acompanham a sua obra literária: a denúncia das opressões, a afronta da ideologia vigente, as personagens femininas fortes, o carácter provocatório do texto em relação aos dogmas. Neste sentido, a autora alcança a denúncia dos poderes da Igreja e da relação que esta estabelece com o Estado, assim como a denúncia do comércio religioso. Ao mesmo tempo, o sujeito colectivo da peça – o povo – tem consciência do seu poder colectivo. A peça incita, portanto, a sublevação em prol do término das opressões governamentais.

A peça compõe-se por um prólogo, três actos e oito episódios. Logo no prólogo, dá-se a primeira pista para o tema da peça: o suposto testemunho de dois pastorinhos, que teriam presenciado o rapto de uma donzela por um anjo. Logo de seguida, no I acto, mostra-se onde decorre a acção (Gal, “velho burgo encravado no centro de um país da Europa meridional cujo nome deixamos ao público a escolha...”, uma clara alusão a Portugal) e em que altura (últimas décadas do século XIX) e começa a traçar-se o percurso de Melânia Sabiani, santa e prostituta. Gal é apresentado como lugar de peregrinação, onde um fenómeno sobrenatural teria ocorrido. O embuste que motivou a fama do lugar, contudo, só será revelado no segundo episódio, quando Melânia chega ao bordel de Madame Olympia.

A santidade de Melânia é aclamada pelo povo e por Ardinelli, ex-noivo de Melânia e mandatário do comércio religioso que existe em torno da figura da santa. Logo no início da peça, há várias referências aos liberais e a personagens históricas, como o Regedor ou as Pastorinhas, que não só indiciam o tempo da peça como indiciam o seu tema: o questionamento de um dogma assumido pela Igreja católica e a dupla face de um negócio religioso, com a sua consequente turistificação, aqui apresentada como manipulação da credulidade de um povo. No segundo episódio, a acção passa-se no bordel de Madame Olympia, onde Melânia renasce enquanto Pupi.

No II acto, desvenda-se ao público leitor o que motivou a fraude. Melânia tinha um romance com um padre. Tendo sido os dois apanhados em flagrante por duas crianças, viram-se obrigados a inventar um estratagema que lhes permitisse não serem denunciados. Assim, o padre desempenharia o papel de anjo e Melânia o de santa. Melânia, que reencontra Ardinelli, de quem fora noiva, no bordel, confessa-lhe o embuste e conta-lhe o milagre encenado pelo Padre Salata, de quem engravidara, acabando depois por abortar. Ardinelli reage com fúria, marcado pela traição.

O seu espanto é compreensível: afinal, julgava que Melânia estava no paraíso e acaba por encontrá-la num bordel. Pouco a pouco, o instinto vingativo acalma e Ardinelli principia a encenar o milagre da aparição da santa. Afinal, com a morte do Regedor, a outros caberia a exploração do milagre.

Nesta altura, a trama adensa-se ao aumentar o número de pessoas que sabem que o fenómeno que leva a Gal peregrinos não passa de um embuste. Ainda assim, nenhuma dessas pessoas, conscientes da intrujice, agirá no sentido de desfazer o erro, já que este lhes dá ganhos, seja a nível monetário (Igreja, comerciantes) ou de captação de religiosos (Igreja). Melânia, contudo, encarcerada num bordel, não será beneficiada em nenhum dos planos e não se esforçará por manter a história. Neste cenário, age como figura secundária que já teve o seu tempo e já cumpriu o seu papel. Em nome do fenómeno, já nada lhe resta fazer que não seja continuar a identidade previamente sugerida e afirmada (o mesmo acontecerá com Bonami/Bonami-Rei em O Encoberto).

Para cumprir o seu papel de corpo que dá corpo ao mito e ao fenómeno, caber-lhe-á somente fazer uma última aparição: aparecer levitando ante a multidão, numa manobra de ilusão engendrada pela empresa “Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal”, que contrata actores para participarem no milagre.

Assim, o acto volta-se precisamente para a encenação da maquinação e é nesta encenação que a crítica ao comércio religioso, através da ironia, encontra os seus pontos mais fortes: no III episódio, há a já referida contratação da empresa “Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal”; no IV, o Bispo, que simboliza o luxo da Igreja, e Ardinelli combinam a produção do milagre, mostrando-se os interesses do poder religioso e do poder político, aqui respectivamente representados pelas figuras mencionadas. No V episódio, dá-se finalmente o milagre, apresentando-se Melânia em público enquanto a santa de Gal. O fenómeno tem aceitação imediata e até os dois representantes das Ciências Positivas, o Sociólogo e o Cientista Especializado em Medicina Retrospectiva, caem no embuste, aludindo-se aqui à submissão das ciências ao poder religioso.

No III acto, chega-se ao culminar da história: encena-se o milagre da emancipação e Melânia rebela-se contra a sua estátua – e, portanto, contra o povo de Gal. No VI episódio, no proscénio, Melânia recita um poema em que é contada a sua história:

No VII episódio, Melânia vai ao Palácio Ardinelli reclamar os lucros da aparição, mas nada daí obtém. Aí, é Paco quem, para chantagear Zenóbia e Teófilo, dá a entender que divulgará o embuste. No final do acto, Teófilo e Paco acabam por apertar a mão.

O VIII episódio do terceiro acto passa-se 30 anos mais tarde e a Igreja prepara-se para canonizar a santa. Melânia está envelhecida, persegue Paco, implora-lhe amor, ele despreza-a, ela está arrependida, quer contar a verdade. Chegados aqui, o problema é um: o povo não aguenta a verdade. Como virá a acontecer em O Encoberto, o embuste vê a necessidade de continuar a ser um embuste em causa própria, para sua própria segurança.

No VIII episódio, quando Paco já tem dinheiro nas mãos, repudia e humilha Melânia: “Repartir o meu dinheiro com essas carnes engelhadas quando com ele posso comprar todas as virgens do mundo?”, pergunta-lhe, arcástico, enquanto ela, impotentemente, tenta impedi-lo de partir. Furiosa, Melânia quer revelar a verdade que ninguém suportará ouvir, que ninguém aceitará: “Uma puta! A vossa santa é uma puta.”

Ao ouvi-la, a multidão enfurece-se, avança sobre ela, quer agredi-la. Já ensanguentada, às portas da morte, reclama a identidade de santa, nega a estátua. O que diz é inconsequente e protagonista acaba por morrer, sendo trucidada por um cortejo que procura canonizá-la, ou à sua imagem, seguindo a sua estátua. O desfecho é, assim, tragicómico, irónico: o povo rejeita Melânia para poder seguir, imperturbável, a sua imagem, passando-lhe por cima do cadáver. Fixado no símbolo, rejeita a realidade, prefere ficar com a ilusão criada e recusa-se a confrontá-la, a ouvir palavras que a confrontem.

Recepção/censura de A Pécora

Assim que a obra foi impressa em 1967, a tipografia que a imprimiu recebeu a ameaça de ter as portas fechadas, caso a obra prosseguisse. Assim, acabou por ser publicada quase uma década depois do 25 de Abril. Natália justifica tão tardia publicação com a ideia de que, face a um número tão elevado de publicações, a mensagem de A Pécora seria ofuscada.

O texto acabaria por vir a público em 1983, tornando-se num dos êxitos do teatro português, já que permaneceu durante meio ano em palco, na Comuna-Teatro de Pesquisa, com encenação de João Mota. No que concerne ao teatro nataliano, merecerá também ser destacada, já que foi a única peça da autora que foi representada no estrangeiro: a encenação, integrada no I Festival de Teatro da Convenção Teatral Europeia, foi ainda levada a palcos franceses, em Saint Etienne e Paris, e irlandeses. A música da peça foi feita por José Mário Branco e a protagonista, Manuela de Freitas, seria premiada graças à sua actuação.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.