A peça O Museu, da autoria de Fiama Hasse Pais Brandão, foi publicada apenas uma vez, na antologia Novíssimo teatro português (1965), colectânea de cinco peças. Numa altura em que as inovações teatrais não conseguiam chegar aos palcos, os autores optavam por tentar criar um repertório teatral via texto. Esta antologia é um desses exemplos. Por vezes, os autores que viam as suas peças impedidas de serem representadas em palco tentavam guardar um registo textual em livro, fosse para memória futura ou para garantir a existência dessa criação.
Reprovado no dia 6 do Maio de 1965, o exemplar lido pela PIDE encontra-se todo agrafado à excepção da peça de Fiama Hasse Pais Brandão, que tem carimbos a dizer “Proibida”. Este exemplar encontra-se na Torre do Tombo e corresponde ao processo 7841 dos Arquivos do SNI da Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos.
No enredo da peça, é apresentada uma visita ao museu de Antropologia Histórica em três cenas. Nas duas primeiras, “Os bons sentimentos” e “Os Maus sentimentos”, um Cicerone acompanha um Alto Magistrado e um Criado nessa visita. Logo no início, já tendo o público conhecido as figuras notáveis do passado, amostras de todas as ideologias e as especímenes influentes no ramo de actividade que aquele museu se houvera proposto arquivar, iniciava-se ali a apresentação de quadros-vivos, onde podiam ver-se prateleiras com gatos embalsamados e gaiolas com pássaros embalsamados. O público – o Criado e o Alto-Magistrado –, ao ver a exposição, apercebe-se de que os gatos estão mortos.
Enquanto o Cicerone anuncia que será então vista uma cena chamada “Os meus sentimentos”, o Alto-Magistrado, noutra porção do palco, então iluminada, elogia o Secretário e afirma querer condecorá-lo. Ao iniciar a condecoração, diz que “As testemunhas têm as mãos amarradas, mas isso não é de importância. (…) eu não o podia condecorar sem testemunhas. O facto de estarem condenados a prisão perpétua é um pormenor sem importância.” (p. 70). A condecoração é quádrupla, quer dar-lhe quatro medalhas: “A medalha das Boas-Intenções, a medalha das Boas-Obras, a medalha do Sacrifício, a medalha da Obediência-Cega.” (p. 71). Vangloria-se, assim, a submissão perante o poder, representado num Alto-Magistrado, e isto acontece perante a passividade de testemunhas impotentes: afinal, não só têm as mãos amarradas como estão condenadas à prisão perpétua.
De seguida, na apresentação de um novo quadro, “O banquete”, o Cicerone pede, em nome da direcção, ajuda ao público: serão necessárias dez pessoas, que devem estar sentadas numa mesa durante uns minutos e, quando o Cicerone bater palmas, devem levantar-se, fazer uma vénia e dizer “à saúde, à saúde do nosso benfeitor”. Acrescenta: “Espero que não se importem de representar este papel. Pois, têm razão, não é agradável. Mas já todos sabemos qual é a verdade. Os senhores vão apenas fazer de figurantes. Tomem os vossos lugares, por favor.” (p. 74). Aqui, reitera-se o que foi dito no parágrafo anterior: existe uma relação de comando em que um grupo recebe ordens de forma acrítica, servindo apenas para viabilizar uma acontecimento tal como foi projectado ou planeado pela figura que domina.
No quadro final, os dez sentam-se à volta de uma mesa e começam a apresentar-se. Frederico, por exemplo, de 50 anos, mostra-se enquanto servil – sorri à distância, julga que toda a gente que conhece é sua amiga, ainda que diga poder estar enganado e assuma que essa convicção o torna feliz. Casado com Sara, têm os dois dois filhos, Ricardo e Filipe. Um deles está também à volta da mesa, o outro desapareceu. Sara acaba por revelar que ela e Frederico foram traídos, que um filhos os abandonou, embora não saiba qual. O pai vem em defesa dos filhos, mas a mãe não os desresponsabiliza.
Os dez convidados falam sobre o quão difícil é encontrar a justiça, o medo que um dos irmãos teve de que o outro se esquecesse de voltar, do isolamento a que as pessoas se dão apesar dos filhos, da necessidade de união para que isto não aconteça, da perda de identidade e da fuga como única solução, dos discursos unilaterais, que existem sem receptores, da necessidade de um recomeço para que possa dar-se um testemunho de vida. Assim, conversam uns com os outros sem que haja uma relação dialógica, evidenciando o tom absurdista que perpassa toda a obra. Discutem os vários assuntos e concluem:
CONVIDADO 9
Já não se pode respirar aqui. Todos fechados numa sala tão pequena.
CONVIDADO 5
É preciso sair daqui. É necessária a liberdade.
CONVIDADO 4
Já estamos fartos. Sujeitámo-nos a ficar aqui tempo demais.
CONVIDADO 3
Vamos embora todos.
CONVIDADO 7
Embora.
CONVIDADO 10.
Já não é sem tempo. (p. 77)
Acabam por levantar-se todos em tumulto e a peça termina com uma deixa do Cicerone:
CICERONE
O quê? De novo a empurrarem, mas, meus senhores, acalmem-se. Sim, saiu tudo mal. Os senhores tanto falaram de si próprios que não houve deixa para mais ninguém. Assim como a criaram hoje esta cena foi apenas vossa. Não é esta a intenção deste museu. Mas apesar de tudo estamos muito gratos a todos. E agora, senhoras e senhores, vamos prosseguir na nossa visita. Deste lado, agora. Por favor, por aqui, por este lado. Atenção. (p. 78)
O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo.
O Museu: razões da censura
Publicada apenas uma vez (sendo de imediato proibida) e não tendo sido representada, esta peça de Fiama foi mencionada algumas vezes pela crítica, embora nunca nela tenha desempenhado qualquer papel de destaque, sendo antes uma das partes do todo que era analisado, que era o Novíssimo Teatro Português, antologia em que se encontram, segundo um artigo de António Quadros publicado no dia 3 de Maio de 1962, no “Diário Popular”, peças de tipo experimental em que os autores ensaiaram processos, formas de diálogo e estilo. O autor conclui ainda que nenhum dos textos se impõe por si mesmo, embora todos revelem virtudes. Na peça de Fiama, destaca o pessimismo radical e considera que o drama revela momentos de notável teatralidade. A obra serviria, assim, propósitos dentro do teatro, demonstrando “eloquentemente o fenómeno de acordar do português para o teatro” e sentindo-se como mais sólida característica uma capacidade inventiva. Também Urbano Tavares Rodrigues, num artigo publicado no “Jornal de Letras e Artes” no dia 13 de Junho de 1962, analisa as peças procurando-lhes a marca da renovação e das transformações próprias do teatro jovem: “tal transformação pode ser ao nível social e moral: a transformação de uma mentalidade, a de uma concepção da vida ou da sensibilidade, da forma como se vêem, como se recebem e se julgam sensorialmente as coisas. E isto significa mudança de estilo”. Assim, conclui que a urdidura da peça envolve mais do que habilidade de dramaturgo – envolve o sentido de teatro social.
Parece-nos, assim, que o papel desta peça terá um significado mais relevante dentro das potencialidades do teatro enquanto obra de arte do que no que concerne ao conteúdo da peça (e talvez possamos estender isto a toda a antologia, que lançava ao público uma geração de dramaturgos), ainda que as relações conflituais que norteiam a narrativa (que se tece num tom absurdista) evidenciem lugares sociais díspares. Talvez seja a isto que se deve a proibição da PIDE (não contamos com o relatório dos censores, mas apenas com a data e com o exemplar lido pelos censores, que se encontra na Torre do Tombo e que está todo agrafado à excepção desta peça de Fiama, que tem, nas suas páginas, carimbos que ditam a proibição), mas calculamos que para muito contará a inclusão da peça na antologia, já que esta, no seu todo, fixava uma geração de jovens dramaturgos que não só tencionavam fazer teatro social como o faziam realmente, usando elementos da ditadura como elementos internos e centrais da criação dramatúrgica (como é o caso de O delator, de Maria Teresa Horta).
Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.