As peças de teatro A Campanha, O Golpe de Estado e Auto da Família, publicadas no mesmo volume que Diálogos dos Pastores, foram publicadas em 1965, vindo a ser proibidas no mesmo ano. Das quatro, as três primeiras que referimos foram consideradas inconvenientes, mas Diálogos dos Pastores não foi vista como sendo ameaçadora.
Censura de A Campanha (1965)
O relatório de censura da PIDE que faz referência à obra A Campanha, datado de 4 de Setembro de 1965, segundo Cândido de Azevedo (1997), é o mesmo que se refere às outras três peças aqui mencionadas (duas delas censuradas). A parte concernente à peça que tratamos neste ponto diz o seguinte:
Quatro peças teatrais (ou ensaios, ou projectos) três deles inconvenientes.
A primeira, mais do que crítica irónica ou trocista é franca e descaradamente achincalhante das instituições militares e de figuras históricas ou lendárias (em todo o caso dignas de todo o respeito e admiração) como Joana d'Arc, Pénélope, etc.
Por toda a peça são apresentados sob um ângulo de ridículo ou odioso ou chefes militares: generais e coronel. E o final da peça (pg. 38 e 39) é um incitamento à revolta, pelo seu linguajar escatológico e revoltado.
A PIDE refere-se, portanto, ao olhar de paródia sobre as instituições militares e algumas figuras históricas. Contudo, aquilo a que se refere como “linguajar escatológico” não deverá ter sido uma questão de grande importância, já que, para além de não ser determinante na constituição da narrativa e de haver vários livros publicados no decorrer do Estado Novo com o mesmo tipo de linguagem, não fere qualquer aspecto político ou moral. Ao mesmo tempo, será de ressalvar que a PIDE não tenha mencionado aquela que nos pareceria a maior razão para, do seu ponto de vista, justificar a censura da obra: a posição dos próprios militares em relação à guerra. É que esta não apenas denuncia a guerra como um confronto de elites, indiferente aos povos em combate, assim como os povos indiferentes em combate, como mostra que a própria ideia do nacionalismo era uma ideia da elite política do Estado Novo, que servia para forjar Portugal enquanto nação forte e não enquanto constituição de um povo, de um sujeito colectivo cujos sujeitos individuais se faziam das mesmas características, distinguindo-se de outros povos.
Num contexto em que imperava política e socialmente o mote “Deus, Pátria e Família”, esta obra vem sugerir uma realidade em que os próprios militares, forças armadas da pátria, que através deles deve fazer cumprir o seu poder ou os seus intentos, defender-se ou atacar, estão dela desinteressados, deixando cair por terra as teses nacionalistas e os confrontos entre os povos. Esta será, por isso, uma obra que confronta os papéis das elites e dos povos e que mostra que, dentro daquilo que o Estado Novo tentava mostrar como unidade – ou seja, Portugal –, havia ramificações que, ainda que concomitantes, eram contraditórias.
Censura de O Golpe de Estado
O relatório da PIDE sobre este livro que inclui quatro peças refere-se a O Golpe de Estado de forma particularmente breve, dizendo apenas o seguinte:
A segunda pecita, O Golpe de Estado, é de ferina crítica policial e anti-social (notavelmente de p. 63 até ao final).
A razão apontada pela PIDE remete-nos para a obra literária enquanto obra política, com capacidade de reacção ao mundo e, consequente e concomitantemente, de intervenção no mundo. Fiama não se abstinha de usar a literatura como arma política e de intervenção social, constituindo algumas das suas peças exemplos claros de teatro militante, de teatro que olhava para o mundo e nele se imiscuía.
Claro, elementos de crítica social, fossem ou não criações ficcionais, não podiam passar ilesos pela PIDE, como não passava nada que afrontasse ou tivesse no seu cerne a proposta de enfraquecimento do regime – a crítica social era uma forma de fazê-lo e incumbia à PIDE silenciá-la para que a ditadura salazarista pudesse seguir impassível e inescrutável. Assim, a ideia de um golpe de Estado pareceria particularmente revolucionária, já que sugeria que era possível que um chefe de Estado fosse derrubado e que o zelo era devido à Nação e não ao Presidente, contrapondo-se assim os interesses de um país aos interesses ou à imagem da sua figura política e diplomática máxima.
Censura de Auto da Família (1964)
A parte do relatório da PIDE concernente a esta peça dita o seguinte:
Finalmente a quarta: Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar.
Se o censor da PIDE não leu a obra até ao fim, se não entendeu a moral final da história ou se optou por ignorá-la, será impossível saber. Contudo, será possível contestar a visão através da qual determina a censura desta obra: é que a análise falha ao considerar que a peça apresenta Maria e José como dois criminosos quando o que esta faz é atentar no crime social que é haver um mundo desigual que leva a que crianças morram à fome. Aliás, é esta a conclusão das três vizinhas e é claro que é para esta conclusão específica que a peça se encaminha, usando-a como mote final.
O censor da PIDE falha ainda ao pensar nesta peça como uma peça sobre o “Natal de Cristo” e não sobre o quadro social que envolve a família representada. É que, ainda que tendo figuras centrais do cristianismo no seu cerne, a pela estimula o debate de um quadro social de indiferença e superioridade económica, que condena as vidas de quem se encontra na parte inferior da hierarquia monetária, sem conclusão daí tirar que não seja a culpabilização desses que nela se encontram, tendo de optar entre dois caminhos sem saída, nunca pensando no papel que desempenha quem tem as condições materiais necessárias para que desobstruir esses caminhos. Até porque, aqui, não é a família sacra que é representada: é uma família pobre, um menino que é um filho esfomeado e não um deus, uma pertença à sociedade igual a tantas outras, uma família pobre como as outras, social e economicamente espezinhada e obrigada a matar para não deixar morrer.
A peça chama, por isso, a atenção para o que é viver encurralado e para a facilidade com que quem não o faz pode alhear-se das condições miseráveis dos seus dependentes, sempre julgados sob um quadro moral menor, estreito, em que se ignora não só o papel económico e social de cada um dos agentes sociais, mas também as condições materiais que determinam as acções.
Recepção da obra
Publicada em 1965 e proibida pela PIDE em Setembro do mesmo ano, esta obra não viria a contar com edições posteriores. Neste sentido, a proibição da PIDE terá servido, e muito, para conter a sua circulação.
Contudo, a obra reviveu nos palcos. Em 1977, Auto da Família foi a palco, através de um grupo chamado Quase Teatro. Ideia de Jorge Silva Melo, fez parte de um projecto de recuperação de obras teatrais que permaneciam na sombra perante a representação constante de obras-primas e ninguém assinou a encenação, sendo esta de todos os participantes.
Relatório completo
De seguida, transcrevemos o relatório completo sobre as três obras censuradas a que fizemos referência neste ponto, para além de Diálogo dos Pastores. Datado de 4 de Setembro de 1965, segundo Cândido de Azevedo (1997), diz o seguinte:
Quatro peças teatrais (ou ensaios, ou projectos) três deles inconvenientes.
A primeira, mais do que crítica irónica ou trocista é franca e descaradamente achincalhante das instituições militares e de figuras históricas ou lendárias (em todo o caso dignas de todo o respeito e admiração) como Joana d'Arc, Pénélope, etc.
Por toda a peça são apresentados sob um ângulo de ridículo ou odioso ou chefes militares: generais e coronel. E o final da peça (pg. 38 e 39) é um incitamento à revolta, pelo seu linguajar escatológico e revoltado.
A segunda pecita, O Golpe de Estado, é de ferina crítica policial e anti-social (notavelmente de p. 63 até ao final).
A terceira peça, Diálogo dos Pastores é a mais inócua das quatro, pois se trata de uma espécie de auto vicentino, no tom e quanto possível na linguagem e tom irónico de observação crítica de Mestre Gil.
Finalmente a quarta: Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar.
Assim, e pelo menos, por três das suas quatro peças formativas, este livrinho é uma obra inconveniente, política e moralmente, que julgo, portanto, de proibir.
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