Fiama Hasse Pais Brandão (1939-2007) viu algumas das suas obras censuradas pela PIDE algumas das suas obras O Testamento (1962) foi proibido no dia 2 de Setembro de 1963; O Museu, publicado em 1962 na colectânea Novíssimo Teatro Português, foi proibido no dia 6 de Maio de 1965; A Campanha, O Golpe de Estado e Auto da Família, publicadas no mesmo volume que Diálogos dos Pastores, foram proibidas em 1965; Quem move as árvores foi proibida no dia 8 de Abril de 1970, tendo depois sido editada em livro em 1979. Para além de escritora, Fiama foi ensaísta e tradutora, tendo traduzido do inglês, do alemão e do francês. Na literatura, destaca-se a sua pluralidade estética.
Informação da PIDE
No ficha de Fiama na PIDE, encontram-se algumas informações sobre a sua actividade política. O primeiro data de 1965, ano em que viu três das suas peças de teatro censuradas, e informa sobre a subscrição de um pedido de amnistia:
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO – escritora
EM 20-4-965
Subscreveu com outros, nesta data, um apelo a Sua Exª. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para que fosse concedida uma amnistia aos presos que consideram políticos, mas que são apenas comunistas.
Doc. Arquivado em. P. AMNISTIA
Datado do mesmo ano, existe ainda um documento sobre a adesão da autora à “comissão de apoio à candidatura da oposição democrática”:
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO – escritora
O epigrafado aderiu à “comissão de apoio à candidatura da oposição democrática”, com vista à eleição de deputados a realizar em 7 de Novembro de 1965, conforme se verifica dum recorte do Jornal “Diário de Notícias”, de 16 de Outubro de 1965, que se encontra arquivado na Pasta C- Eleições para Deputados – 1965 (Círculo de Lisboa).
Porto, S.R., 19 de Outubro de 1965
Em 1968, foi escrita uma nota informativa que dá conta da sua acção no movimento estudantil, de uma subscrição de um documento, da sua pertença à “oposição democrática” e da assinatura da revista “Seara Nova”:
INFORMAÇÃO
1 de Abril de 1968
“Em 1962, solidarizou-se e apoiou as actividades dos estudantes da Academia de Lisboa na luta pelas reivindicações que culminaram com a chamada “crise académica”.
Em 1965, subscreveu uma exposição dirigida a Sua Excelência o Presidente da República requerendo uma amnistia geral para os presos políticos.
Ainda no mesmo ano, aderiu à comissão de apoio à candidatura da “oposição democrática” pelo círculo de Lisboa, para as eleições dos deputados.
É assinante da revista “Seara Nova”.
Um outro documento informa sobre a detenção da autora, que durou algumas horas, ocorrida enquanto esta fazia uma greve de fome no decorrer da mencionada “crise académica”:
Em 11-5-962 – Foi detida pela PSP na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa, quando fazia a greve da fome.
Deu entrada nas dependências daquela Polícia, na Parede, sendo solta ao fim deste dia.
Finalmente, existe ainda um documento identificativo, que não está datado, mas que corresponde à época em que a autora era estudante de Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no qual constam algumas das suas informações pessoais:
Nome – FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
- Solteira
- Estudante da Faculdade de Letras
- Nascida a em Lisboa
- Filha de Gustavo Wilson Perey Brandão e de Carmem Pereira de Vasconcelos Hasse Brandão
- Residente, na Rua de Malpique, nº. 2-1º Dto – Lisboa
O Testamento (1962)
Publicada em Dezembro de 1962, a obra O Testamento (1962) foi proibido no dia 2 de Setembro de 1963, tendo assim aguentado quase um ano longe das mãos censórias. Foi proibida pela Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos e não há, nem nos registos da Torre do Tombo deste órgão nem no ficheiro da PIDE de Fiama Hasse Pais Brandão, qualquer nota ou relatório com os motivos da proibição. No entanto, analisando a peça, podemos cogitar.
No início da peça, um casal, Marido 1 e Mulher 1, vai ao teatro, ver uma peça com o título que dá nome ao livro, “O Testamento”. Vão ver a peça porque é um amigo, João, quem a representa. Não estão contentes: queixam-se porque pagam pelo bilhete para concluirem que hão-de morrer, ilação que tiram do próprio nome da peça.
O casal é apresentado como rico e desligado do mundo. Não quer ser incomodado. Afirma poder comprar lugares para todos os espectáculos e não querer coisas tristes nem maçadoras: já que tem dinheiro, quer divertir-se. Para além disso, “ser espectador é cómodo” (p. 18).
Ao mesmo tempo, a riqueza é representada como poder. Neste caso, como o poder distraído a ver uma peça de teatro, permitindo ao povo organizar-se em prol da sua libertação. Repare-se no que diz o coro:
Vamos gritar enquanto é tempo, enquanto o Poder se distrai, por instantes, em espectáculos e em prazer, enquanto o Poder se senta em plateias e nos esquece. Vamos aproveitar para dizer qualquer coisa fora de portas. Vamos gritar de encontro às portas. (p. 38/39)
Uma das vozes do coro, distinguível entre as restantes, diz que “Um de nós quis falar e não o deixaram. E apenas pedia o que necessitava. Sempre a necessidade é crime. Em todos os decretos se proíbe a necessidade.” (p. 39). Esta ideia será reiterada no final da peça. Assim, e porque a necessidade houvera sido ignorada, até proibida, o povo, aproveitando o lazer, a distracção do poder, quer fazer ouvir a sua voz: “Começámos enfim a gritar por todas as ruas. A nossa força é a da justiça. É a força das mãos e dos corpos. Agora começámos a marcha e não há obstáculos contra o nosso corpo. A luta é feita com as nossas mãos.” (p. 39).
Na segunda parte da peça, o Marido 1 encontra-se a montar uma nova fábrica, que se juntará às cinco que já tem. A inauguração acontecerá no dia seguinte. O seu objectivo é o lucro exponencial:
MARIDO 1
No primeiro mês, devo ter uma produção de dois milhões, no segundo, de cinco, e assim progressivamente até ao infinitivo.
SENHORA 1
O infinito? Não lhe parece excessivamente ousado?
MARIDO 1
Não, minha senhora. É muito fácil atingir o infinitivo por acumulação. (p. 69)
Posteriormente, irá indicar os caminhos possíveis para esse lucro exponencial – que não termina antes de chegar ao infinito. Contudo, até lá chegar, ensaia um discurso de pretenso altruísmo, afirmando querer ajudar o povo, fingindo que o povo, que, posteriormente, dirá querer explorar, sairá beneficiado com a sua fábrica:
MARIDO 1
Peço a vossa colaboração, meus amigos, para executar um ideal por que há muito venho lutando. É um ideal nobre e altruísta. Temos de auxiliar o povo, salvar os homens menos favorecidos pela fortuna. Com a vossa colaboração, levaremos a cabo uma grande obra. A minha intenção é fundar uma sociedade que tenha por título “Para uma vida melhor”. Lutaremos por um mundo mais moral, mais feliz. É um ideal nobre e uma causa nobre. Realizaremos uma grande obra. (p. 87)
À sua volta, as pessoas concordam:
SENHOR 2
É preciso salvar a humanidade.
SENHORA 1
Temos de lutar por esse ideal.
MULHER 1
Vamos ser os benfeitores da humanidade.
SENHOR 1
A nossa obra! (p. 87)
Nesta altura, entram no palco o Jornalista e o Fotógrafo, sendo que o primeiro nota que todos aqueles que estavam já em cena têm os pés virados ao contrário. O Fotógrafo diz que isso não tem qualquer importância, que lhes fotografara apenas meio corpo. O Jornalista diz que, para a entrevista, também não faz qualquer diferença. De seguida, lançam a hipótese de, ao invés dos pés, ser a cabeça o que está ao contrário: nesse caso, as fotografias de nada serviriam, já que estariam às avessas, e o jornalista deixa de saber como fazer a entrevista, já que esta tem que ver com a cabeça.
Assim como assim, o Jornalista avança com o seu trabalho, entrevistando o Marido 1, dono das fábricas, que, de forma a aumentar o seu lucro, pretende reduzir os salários até à abolição. Pouco depois, diz também querer aumentar progressivamente os salários, ou seja, dá duas verdades.
JORNALISTA
(Com um bloco de notas): Projectos?
MARIDO 1
Uma inauguração. Mais dez fábricas nos próximos dez anos. Um lucro infinitamente progressivo. Redução progressiva de salários. Dentro de cinco anos, abolição, até alcançar um saldo total. Mão-de-obra gratuita, um grande progresso. Bairros económicos para os empregados, para as famílias dos empregados, para os amigos dos empregados, para os conhecidos dos empregados. Aumento progressivo dos salários. Cem por cento. (p. 94)
O seu plano de crescimento passa pela redução e pelo aumento do número de empregados:
MARIDO 1
Na segunda fase do plano, redução do número de empregados. Economia de mão-de-obra, cem por cento, ou seja, zero. Aumento do número de empregados. Expansão.
De seguida, afirma planear fomentar o emprego e o desemprego: “Penso fomentar o desemprego. Penso fomentar o emprego.” (p. 95). Para lá chegar, o plano passa por “Desenvolver o analfabetismo, a tuberculose, a mortalidade infantil, a instrução, a assistência médica, lactários, creches, morgues, cemitérios.” (p. 95). A necessidade de confundir – ou os altos e baixos entre confessar e endrominar – fica ainda mais clara quando, respondendo ao Jornalista, diz qual será o nome da empresa:
JORNALISTA
Nome da empresa?
MARIDO 1
Exploração Ilimitada.
JORNALISTA
A Sociedade?
MARIDO 1
Para Uma Vida Melhor. (p. 95/6)
Saindo da fábrica, a Senhora 1, o Senhor 1 e o Marido 1 reparam que não há ninguém na rua. O Senhor 2 preocupa-se. Afinal, são “precisas pessoas para a inauguração e para o bodo aos pobres” (p. 97). A Senhora 2 quer proibir os habitantes do planeta de deixarem as ruas vazias. Ao mesmo tempo, também diz querer procurá-los para as suas próprias salvações.
Assim que todos saem em busca do povo, o Jornalista e o Fotógrafo ficam sozinhos no palco; segundo o primeiro, tal acontece para que o público continue entretido. Neste cenário, entra o Encenador:
ENCENADOR
Mas o que se está a passar aqui? Quem são os senhores? Estão a abusar, deixem o público em paz. Peço as minhas desculpas. O público não tem nada a ver com a peça.
FOTÓGRAFO
Mas devia ter.
ENCENADOR
O público é para ser respeitado. Pagou o seu bilhete. Veio aqui assistir ao espectáculo.
JORNALISTA
Mas a peça diz directamente respeito ao público. Não podem estar ali sentados e mais nada. Nós estávamos a tentar conversar com todos. Queríamos fazer umas entrevistas, pedir opiniões. Interessa sempre saber o que é que o público pensa duma peça. (p. 101)
Como se vê, o Encenador alinha-se com a ideia da peça de teatro como entretenimento. Quer que o público fique “em paz”, o que vai ao encontro da ideia prévia, do próprio público, de não ser perturbado, da posição cómoda do espectador. O Jornalista, pelo contrário, procura envolver o público, estabelecer uma relação dialógica entre peça de teatro – obra – e público – receptor da obra.
De seguida, procuram os actores, que estavam no palco havia pouco. Claro, não os encontram, já que haviam saído para procurar gente:
JORNALISTA
Precisam de inválidos para fazer assistência.
ENCENADOR
O quê, foram buscar inválidos?
JORNALISTA E FOTÓGRAFO
Não, foram salvar o mundo. (p. 102/103)
No epílogo da peça, o povo, nas ruas, quer, de facto, salvar o mundo. Clama justiça, reitera o que havia dito. O Encenador, que já conta com os seus actores em cena, informa sobre o prosseguimento do espectáculo, dando ainda conta do que aconteceu na sua ausência:
ENCENADOR
Um homem ergueu-se de entre a multidão e falou por todos. Falou do ódio, da fome e do medo. Estes senhores tiveram de regressar sem terem ainda cumprido a sua missão. Houve um erro, um equívoco tremendo. Aquele homem que ali vêem, bem, é difícil e ingrato de explicar... Por amor à humanidade, por amor à humanidade... estes senhores... para tranquilizar a população... encarregaram-me de o enforcar. Desconheço os motivos, é claro, mas, apesar de ser o Encenador, em momentos graves como este obedeço apenas. Compete-me descobrir o melhor processo de executar as ordens. Enforquei-o num guindaste para não trair a actualidade. Um guindaste é a forca ideal do século vinte. (p. 108)
Há aqui três pontos a notar. O primeiro é o da condenação que é feita a alguém que se ergue contra o estado de coisas, alguém que fala do ódio, da fome e do medo. A condenação que lhe é dada de imediato mostra que a emancipação estava a priori proibida. O segundo é o da execução das ordens, ainda que se desconheça os motivos: o Encenador simboliza, assim, um poder burocrático e cego, que se faz exercer por mãos que desconhecem as razões das execuções, mas a quem cabe descobrir a melhor forma de executar as ordens. O terceiro é a ideia do guindaste como forca ideal do século XX, mostrando as relações laborais estabelecidas como crimes exercidos sobre a classe operária. Aliás, esta última parte vai ao encontro do discurso do Marido 1, que tenciona enriquecer exponencialmente, servindo-se, para isso, da mão-de-obra alheia: uma “Sociedade” “Para Uma Vida Melhor” seria, então, aquela na qual pudesse extrair-se mais-valia de forma massiva.
Dá-se, então, início à inauguração da fábrica, sendo mostradas as suas máquinas e os seus guindastes. Neste cenário, enforca-se um homem, promovendo-se, dentro da própria peça, a confusão entre o que é teatro e o que é vida:
MARIDO e MULHER 2
Mas nós também assistimos à peça.
PORTEIRO
Qual peça?
MULHER 2
“O Testamento”, pois qual havia de ser?
PORTEIRO
Mas isto aqui não é uma peça.
MARIDO 2
Confundimos?
PORTEIRO
Não estamos num teatro, estamos no mundo.
MARIDO 2
No mundo?
MULHER 2
Quer dizer que aquele homem morreu a sério?
PORTEIRO
Está morto. (p. 127/ 128)
A peça termina ao encontrar-se o testamento no bolso do homem que acabara de ser morto: a herança que este deixa é para todos.
“INVENTOR
(Lê): meus amigos, a herança é para todos. Um homem quando morre deixa o mundo aos outros. A responsabilidade é de todos. (p. 129)
O último mote da peça é, assim, a reclamação dos seres sociais: cada pessoa é um, cabe-lhe intervir no mundo. E não o cabe somente em termos de direitos: a intervenção cívica é vista como uma responsabilidade, o estado de coisas será o resultado de uma relação de forças que pode ser sempre alterada consoante os realinhamentos de classes, as lutas populares, as vontades em conflito.
A censura de O Testamento
Não conseguimos aceder a qualquer documento onde a proibição seja justificada. Sabe-se, no entanto, que a Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos (DGSE) censurou esta obra no dia 2 de Setembro de 1963, nove meses após a sua publicação. Após isto, a peça não foi reeditada.
A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas e garantindo que, na peça, e não na peça que existe dentro da peça – ou seja, na peça que é representada –, cabe ao espectador um papel crítico, recusando a ideia da comodidade de quem recebe acriticamente alguma coisa, seja uma obra de arte ou uma acção política. Assumir este papel será uma questão de responsabilidade, já que se sugere que as pessoas devem isto umas às outras, porque essa responsabilidade foi herdada do passado histórico. Assim, o povo é incitado a tomar as rédeas do seu futuro e do seu lugar na sociedade, a rejeitar os lugares sociais tais como estes se desenham (e que as classes dominantes quererão perpetuar), a questionar a conjuntura social e a alterá-la.
Vinda a público em plena ditadura salazarista, e numa época em que várias ditaduras se alastravam pela Europa, uma obra que punha nas mãos do povo o seu destino contrastava com as imposições do regime político, rompendo com elas, desafiando-as. Um povo em rebelião não podia ser dominado e a chamada de atenção para o poder da organização popular podia romper com os pilares do regime. Para mais, assumir uma visão crítica como uma responsabilidade e uma dívida põe o ónus da dominação também nos dominados, já que sugere que estes têm o poder da sua própria libertação.
Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.