Em 1966, já com três obras censuradas, Natália Correia já era persona non grata para o Estado Novo. Assim, a Edições Afrodite, na altura dirigida por ela, contava com uma atenção particular da PIDE, que se preparava a priori para proibir todas as obras que publicasse. O Vinho e a Lira, edição de Fernando Ribeiro de Mello e parte da Colecção Saguir da referida editora, contou, assim, com censura por parte da polícia política.
A obra, composta por 43 poemas, viria a ser vilipendiada pela PIDE: no parecer de 6 de Junho de 1966, Joaquim Palhares viria a considerar que o seu valor literário era nulo. Ao mesmo tempo, seriam condenadas as expressões eróticas (“imorais”, diria o relator) presentes nos poemas.
A verdade é esta não era das obras mais atentatórias do conjunto de Natália: o seu carácter erótico não é particularmente relevante, principalmente se a compararmos à Antologia da Poesia Erótica e Satírica, e também não mexe nas estruturas do Estado Novo como O Homúnculo ou A Pécora. Contudo, anuncia volumes publicados na Colecção Afrodite, da mesma editora, como o Kama Sutra, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica e A Filosofia na Alcova, sendo esta lista o “pior mal” identificado pela PIDE: considerando serem estas obras da “maior inconveniência social”, a sua mera anunciação já seria suficiente para justificar uma punição à autora.
Recepção/censura de O Vinho e a Lira
O parecer datado de 6 de Junho, que proibiu a obra, diz o seguinte:
Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.
Apresentam-se no decurso da obra expressões eróticas imorais, algumas expressas em termos escatológicos e insinuações de ordem política com tendência dissolvente, o que é suficiente para se propor a sua proibição de circulação no país.
Mas o pior mal está no desplante com que se anuncia neste livro a edição e a distribuição de livros da maior inconveniência anti-social, já anteriormente proibidos por estes Serviços, facto que a meu ver justificava uma severa punição.
O leitor:
Joaquim Palhares
Não se sabe se esta obra passou por mais alguma condenação, sabe-se apenas que, depois da censura da PIDE, não voltou a ser editada. Natália Correia viveu muitos anos após o término da ditadura e julga-se que não terá tido vontade de recuperar a obra. Se assim fosse, o empreendimento não lhe teria sido particularmente difícil, uma vez que veio a recuperar outras, e isto apesar da maré de recuperação de obras censuradas e escondidas da vida pública que invadiu a literatura portuguesa após o 25 de Abril.
Regista-se ainda o carácter vago do parecer da PIDE e ainda a sua incongruência: apesar de dizer que não cabe naquele parecer “uma apreciação do valor literário” da obra, Joaquim Palhares vem considerá-lo “nulo”, ainda que não apresente para isso qualquer justificação. De seguida, refere-se a “expressões eróticas imorais”, também não justificando ou exemplificando, e acrescenta ainda que a obra contém “insinuações de ordem política com tendência dissolvendo”, não dizendo também em que consistem. Finalmente, acaba por revelar que o “pior mal” da obra reside no anúncio que faz a outras obras. Poderá, por isso, concluir-se que a publicação da obra, pelos seus conteúdos, não seria suficiente para abalar o Estado Novo e que esta censura poderá mais advir da necessidade que o regime teria de censurar as obras de Natália Correia do que de uma análise séria dos seus perigos para a manutenção do regime ou de um presumível desafio que esta pudesse constituir à moral que alicerçava o salazarismo e que este tentava impôr.
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