Vítima de Chernobil: “Para nós o cancro é como o catarro”

29 de April 2016 - 11:13

Svitlana Shmagailo tinha 12 anos quando aconteceu o acidente nuclear mais grave da história a apenas 35 quilómetros da sua localidade. Desde então, a sua vida e a dos que a rodeiam está marcada pela tragédia. “Não vivemos, passamos um dia e outro dia”.

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"Quando ouço que a energia nuclear não tem efeitos maus, que é barata e limpa só quero gritar: o que vale mais? A vida, o futuro, a terra, as crianças... Ou energia barata?"

Chama-se Svitlana Shmagailo (apesar de todos lhe chamarem Svieta) e é uma das centenas de milhares de vítimas do fatídico acidente nuclear de Chernobil, na Ucrânia, que, ainda hoje, quando se cumprem os 30 anos da tragédia, deixa um rastro irreversível de consequências para a população e o meio ambiente.

Quando se deu o acidente, Svieta tinha apenas 12 anos, mas recorda-se com detalhe como foram aqueles primeiros dias na sua aldeia, Orane, localizada a 35 quilómetros do reator atómico. Agora, numa passagem por Espanha, pela mão da Greenpeace, relata os anos de secretismo, de falta de informação da antiga União Soviética e o rastro de doenças a que fazem frente todos os dias. Nesta entrevista ao diário espanhol Público.es, que o esquerda.net reproduz, denuncia o abandono a que foram submetidos pelas autoridades do seu país e clama pelo fim da energia nuclear: “eu quero que vocês façam de tudo para não se cometerem mais erros como este”.  

Tinha 12 anos quando ocorreu o acidente. Como é que o recorda?

Durante a primeira semana não soubemos de nada. A 1 de maio disseram-nos para fechar as janelas, limpar as frutas e que não passeássemos… Mas não nos explicaram bem que era por causa da radiação e o que se passava. A 9 de maio, quando evacuaram as pessoas de Chernobil vimos passar os autocarros pela nossa aldeia. 

A minha irmã tinha muita radiação. Os médicos estavam preocupados. Passamos todo o verão fora e quando voltámos à aldeia os professores disseram-nos que não podíamos entrar na escola porque estávamos contaminadas. Depois, durante vários anos, vivemos na aldeia com militares. Os meninos brincavam com a areia e nós trabalhávamos e plantávamos de forma muito normal. Acostumamo-nos a tudo isto. Mais tarde começaram as doenças.

Quando é que se deram conta da gravidade da situação?

Nós sabíamos que estávamos contaminados, mas não víamos os efeitos... Primeiro foram os liquidadores, outros começaram no ano 2000. Em 2000, o meu primo ficou doente com cancro, em 2003 o meu tio morreu de cancro, em 2010 a minha mãe ficou doente, em 2011 detetaram doenças no sistema imunológico do meu filho, em 2014 o meu irmão teve cancro na língua, em 2015 morreu a minha mãe… Mas isto não se passou só na minha família, mas com todas as pessoas, todas as famílias que vivem na minha aldeia ou perto.

Durante toda a nossa vida alguém próximo morreu ou ficou doente. Quando, na nossa aldeia, ouvimos dizer que alguém tem cancro pensamos: ah, mais um. É como catarro para nós.

Como é a vida na sua aldeia agora, 30 anos depois? É possível levar uma vida à margem do que aconteceu?

A verdade é que a vida na aldeia é muito dura, primeiro porque muitíssima gente tem cancro e outras doenças, e também pela depressão porque não têm ajuda social e económica. Se existisse algum tipo de ajuda para os liquidadores, por exemplo, veriam que alguém pensa neles. Eu não posso dizer que é a vida, é deixar passar um dia e outro dia e esperar que algo mau passe. Submeto-me a exames a cada dois anos e cada vez que os faço descobrem-me algo novo.

Tratamos de fazer coisas positivas, coisas pelos nossos meninos, fazemos festas com eles, dançamos, mas a realidade é demasiado dura. Agora entendemos que temos efeitos, e não quero pensar nisso, mas estou segura de que serão piores.

Sentem-se abandonados pelo Governo?

Agora não temos nenhum tipo de apoio. Nem esperamos que possam existir leis de apoio.

Esperávamos que esta primavera o nosso presidente Poroshenko devolvesse as ajudas sociais para as pessoas que vivem perto de Chernobil, para os liquidadores, as crianças, todos, mas depois disse-se que não. Assim, estamos sozinhos, sozinhos com os nossos problemas, com as nossas doenças, com a nossa comida contaminada, a nossa terra contaminada e a nossa situação económica.

Para mim, que sou política na minha região desde o passado outono, o pior é que as pessoas já não têm confiança nos políticos, e é muito difícil devolver-lhes a confiança e fazer algo com o que temos. 

Agora, algumas das milhares de pessoas que foram deslocadas estão a começar a voltar à zona de exclusão, pese embora os níveis de radiação continuarem muito elevados. Porquê?

Quando evacuaram as pessoas construíram as novas casas muito depressa. Se antes as famílias viviam sozinhas, passaram a ter que conviver com mais quatro e as casas não eram boas. Pensionistas ou pessoas que não tinham capacidade para arranjar casa, preferiram voltar, preferem viver na sua casa e viverem o tempo que conseguirem. Mas a maioria destas pessoas são sobretudo pensionistas

Apesar de ter sido vítima do acidente nuclear mais grave da história, não ficou espantada com Fukushima?

Quando ouço que a energia nuclear não tem efeitos maus, que é barata e limpa só quero gritar: o que vale mais? A vida, o futuro, a terra, as crianças... Ou energia barata?

Quando ouvi a notícia de Fukushima, 25 anos depois, temi pessoas, mas pensei que, ao ser no Japão, seria diferente, que não teriam tantos efeitos como nós. Fukushima significa outro erro, noutra civilização, noutra mentalidade… Diz-se que foi culpa da natureza. Nós éramos soviéticos e o erro foi humano. Mas, o que é que vamos fazer? Esperar por outro erro? Sou professora e costumo explicar às crianças que quando cometemos erros é para aprender alguma coisa, mas os adultos cometem um erro, outro erro e não aprendemos. Veremos os efeitos. Eu quero que vocês façam de tudo para não cometermos mais erros.