Passou tanto tempo que já devia ser seguro.
Ao fim de tanto tempo era suposto já se poder ter um Marx para comemorar. Polir, dar-lhe o lustro da actualidade. Tirá-lo da gaveta de vez em quando e conseguir arrumá-lo depois.
Não é nada que não tenha sido tentado antes. Um Marx-passado. Um Marx academizado e academizante. Um Marx reformista. Um Marx domesticado. Afinal, a cada qual o seu Marx de acordo com as suas necessidades, não é?
Já devia ser seguro. Contudo, há sempre algo que escapa aos marxistas de ocasião, algo que desmascara o tom emproado daqueles elogios cuidadosos em ser fúnebres.
200 anos depois, o pensamento de Marx permanece polarizante, provocante, subversivo. E o seu quadro conceptual permanece produtivo: alienação e fetichismo da mercadoria, ciclos e crises, trabalho e classes, valor e mais-valia, etc. etc. etc. etc.
Produtivo às vezes, diga-se, apesar dos marxismos. Mas, diga-se também, produtivo outras vezes por causa deles. Aliás, o chavão de que Marx é um pensador interessante serviu em alguns círculos sobretudo para afirmar que os marxismos seriam desinteressantes. Assim, idealizado e isolado, seria mais fácil ajustar contas com ele. E da mesma penada reduzir-se-ia igualmente toda a riqueza de toda uma tradição de pensamento político a uma expressão única e caricatural. Um materialismo de trazer por casa. Uma dialéctica que limitaria a riqueza da diversidade à platitude de uma dança da contradição com os passos previamente marcados. Um seguidismo anacrónico de uma análise brilhante de uma realidade sepultada nos livros de história. Caso para dizer que o marxismo, para não ser sentido como uma tragédia por algumas pessoas, só poderia estar agora a ser repetido e como uma farsa.
Um Marx sem marxismos e sem marxistas, ora aí estaria algo digno de ser comemorado para alguns... Só que os conceitos de Marx permanecem produtivos ao ponto de nos permitir a identificação mobilizadora com ele. Marxistas. Marxista. Fica dito. Como se fora algo de radical dizer o nome desta fidelidade crítica. Como se fora algo de radical dizer que o capitalismo, vampiresco como sempre, não é para gerir mas para destruir, antes que ele nos destrua a nós e ao planeta. Como se fora algo de radical dizer que o socialismo não é um nome para invocar apenas nos dias de festa mas o nome do que queremos construir em alternativa a este sistema de dominação de classes.
Um Marx para comemorar? Sim. Um Marx que não serve só para ser comemorado. Não me entendam mal. Não vim jogar ao estafado jogo “o meu Marx é mais genuíno do que o teu...” Apenas relembrar a quem pensa que pode tranquilizar porque o espectro do comunismo já não paira sobre a Europa que se deve sobressaltar uma vez que, 200 anos depois, o espectro de Marx continua a pairar agora sobre todo o mundo. Apenas relembrar em tempos de pseudo-pragmatismos asfixiantes que continuamos a precisar como de pão para a boca de um materialismo empenhadamente revolucionário. “As revoluções são a locomotiva da história”. E “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Ainda se lembram? Não é poesia. É mesmo uma ameaça.