Tudo o que quer saber sobre a crise mas tem medo de não entender

13 de outubro 2008 - 0:00
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O que causou o colapso do centro nevrálgico do capitalismo global? O pior já passou? O que a crise de superprodução dos anos 70 tem a ver com os acontecimentos recentes? Qual a relação entre a política de reestruturação neoliberal, adoptada para superar a crise de superprodução, e o colapso de Wall Street? Como se formam, crescem e explodem as bolhas e como se formou a actual bolha imobiliária? Walden Bello, professor de ciências políticas e sociais, oferece algumas respostas a tais questões.



Texto de Walden Bello, publicado em Focus on the Global South, traduzido para espanhol por Sin Permiso e para português por Carta Maior.



Muita gente em Wall Street ainda continuar a tentar digerir os acontecimentos das últimas semanas.



Entre 1 e 3 mil milhões de dólares de activos financeiros evaporados.



Wall Street, nacionalizado, com o Banco Central e o Departamento do Tesouro tomando todas as decisões estratégicas importantes no sector financeiro e tudo isso com um governo que, por trás do resgate da AIG, passa a dirigir a maior companhia seguradora do mundo.



O maior resgate desde a grande depressão, com 700 milhões de dólares levantados desesperadamente para salvar o sistema financeiro.



As explicações habituais já não bastam. Os acontecimentos extraordinários precisam de explicações extraordinárias. Mas, antes...



O pior já passou?



Não. Se algo ficou claro com os movimentos contraditórios dessas últimas semanas, em que, no momento em que se permitia a quebra do Lehman Brothers se nacionalizava a AIG e se programava a tomada de controle da Merril Lynch pelo Bank of America, é que não há uma estratégia para enfrentar a crise. Há, em resumo, respostas tácticas, como bombeiros que pisam na mangueira, atrapalhados com a magnitude do incêndio.



O resgate de 700 milhões de dólares das obrigações hipotecárias apoiadas pelo poder dos bancos não é uma estratégia, senão basicamente um esforço desesperado para restaurar a confiança no sistema, para prevenir a erosão da fé nos bancos e noutras instituições financeiras e para evitar a afluência massiva de retirada de fundos dos bancos, como a que desencadeou a Grande Depressão de 1929.



O que causou o colapso do centro nevrálgico do capitalismo global? Foi a ganância?



A velha e venerada ganância teve a sua parte. A isso se referia Klaus Shwab, o organizador do Fórum Económico Mundial, a convenção da elite global celebrada anualmente nos Alpes suíços, quando disse à sua clientela, em Davos este ano: "Temos de pagar todos os pecados do passado".



Wall Street foi um caso de "alguazil endemoninhado" ([1])?



Certamente. Os especuladores financeiros fizeram marosca até se confundirem eles próprios com a criação de contratos financeiros cada vez mais complexos, como os derivados, tratando de ganhar dinheiro a partir de todos os tipos de riscos (incluindo exóticos instrumentos de riscos futuros, como os credits default swaps ou contratos de protecção de derivados creditícios, que permitiam aos investidores apostar, por exemplo, que os clientes da própria corporação bancária não seriam capazes de pagar as suas dívidas! Tal é o comércio multibilionário não regulado que acabou por abater a AIG.



Em 17 de Dezembro de 2005, quando a International Financing Review (IFR) anunciou os seus prémios anuais - um dos programas de prémios mais prestigiados do sector -, disse: "Lehman Brothers não só manteve a sua presença global no mercado, como dirigiu a entrada no espaço de preferência...desenvolvendo novos produtos e desenhando transacções capazes de subvencionar as necessidades dos clientes...Lehman Brothers é o mais inovador no espaço de preferência precisamente por fazer coisas que não se podem ver em nenhum outro lugar".



Sem comentários.



Foi falta de regulação?



Sim. Todo mundo reconhece agora que a capacidade de Wall Street para inovar e imaginar instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados tem ido muito além da capacidade de regulação do Estado, e não porque o Estado não seja capaz de regular, mas porque a atitude neoliberal, de laissez-faire imperante impediu o Estado de desenhar mecanismos efectivos de regulação.



Então não há nada mais? Não há nada sistémico?



Bem, Georges Soros, que viu a crise se aproximar, disse que o que estamos a passar é a crise do sistema financeiro, a crise do "gigantesco sistema circulatório" de um sistema "capitalista global...que está a passar dos limites".



Para continuar com a tese do arqui-especulador, o que estamos a assistir é a uma intensificação de uma crise ou de uma contradição central do capitalismo global: a crise de superprodução, também conhecida como super-acumulação e super-capacidade.



Trata-se da tendência do capitalismo de produzir uma enorme capacidade produtiva que termina por rebaixar a capacidade de consumo da população, devido às desigualdades que limitam o poder de compra popular, o qual termina por corroer as taxas de lucro.



Mas o que a crise de superprodução tem a ver com os acontecimentos recentes?



Muitíssimo. Só que, para entender a conexão, teremos de retroceder à chamada Época Dourada do capitalismo contemporâneo, ao período compreendido entre 1945 e 1975.



Foi um período de rápido crescimento, tanto nas economias do centro como nas subdesenvolvidas; um crescimento propiciado, em parte, pela massiva reconstrução da Europa e do Leste Asiático depois da devastação da II Guerra Mundial e, em parte, pela nova configuração socio-económica institucionalizada sob o novo estado keynesiano. Um aspecto chave desta última foram os severos controlos estatais da actividade de mercado, o uso agressivo de políticas fiscais e monetárias para minimizar a inflação e a recessão, assim como um regime de salários relativamente altos para estimular e manter a procura.



O que aconteceu, então?



Bem, este período de elevado crescimento terminou em meados dos 70, quando as economias do centro se viram imersas na estagflação, quer dizer, na coexistência de um baixo crescimento com uma inflação alta, o que a teoria económica neoclássica supunha impossível.



Contudo, a estagflação era um sintoma de uma causa mais profunda, a saber, a reconstrução da Alemanha e do Japão, assim como o rápido crescimento de economias em vias de industrialização, como Brasil, Taiwan e Coreia do Sul, somando-se a isso uma enorme capacidade produtiva que incrementou a competição global, enquanto a desigualdade social, dentro de cada país e entre países limitou globalmente o crescimento do poder aquisitivo e da procura, resultando assim corroída a taxa de lucro. A drástica elevação do preço do petróleo nos anos setenta não fez senão agravar a coisa.



Como o capitalismo tratou de resolver a crise de superprodução?



O capital tentou três vias de saída do atoleiro da superprodução: a reestruturação neoliberal, a globalização e a financeirização.



Em que consistiu a reestruturação neoliberal?



A reestruturação neoliberal tomou a forma do reaganismo e do thatcherismo no Norte e do ajuste estrutural no Sul. O objectivo era revigorar a acumulação de capital, o que foi feito: 1) removendo as restrições estatais ao crescimento, ao uso e aos fluxos de capital e de riqueza; 2) redistribuindo o rendimento das classes pobres e médias dentre os ricos, de acordo com a teoria de que assim os ricos seriam motivados a investir e a alimentar o crescimento económico.



O problema dessa fórmula era que, ao redistribuir o rendimento a favor dos ricos, estrangulava-se o rendimento dos pobres e das classes médias, o que provocava a restrição da procura, sem necessariamente induzir os ricos a investir mais em produção.



De facto, a reestruturação neoliberal, que se generalizou no Norte e no Sul ao longo dos anos oitenta e noventa, teve resultados pobres em termos de crescimento: o crescimento global alcançado foi de 1,1% nos 90 e de 1,4 nos 80, enquanto a média nos 60 e nos 70, quando as políticas intervencionistas eram dominantes, foi, respectivamente, de 3,5% e de 2,54%. A reestruturação neoliberal não pôde terminar com a "estagflação".



Em que medida a globalização foi uma resposta à crise?



A segunda via de escape global tentada pelo capital para enfrentar a estagflação foi a "acumulação extensiva" ou globalização, quer dizer, a rápida integração das zonas semi-capitalistas, não-capitalistas e pré-capitalistas na economia global de mercado. Rosa Luxemburgo, a celebrada economista e revolucionária alemã, percebeu este mecanismo há muito tempo, vendo-o nas economias metropolitanas. Como? Como o acesso de novas fontes de produtos agrícolas e de matéria-prima baratos; e criando novas áreas para investimento em infra-estrutura. A integração produz-se através da liberalização do comércio, removendo obstáculos à mobilidade do capital e abolindo as fronteiras para o investimento no exterior.



Nem é preciso lembrar que a China é o caso mais destacado de uma área não-capitalista integrada na economia capitalista global nos últimos 25 anos.



Para compensar os seus lucros declinantes, um considerável número de corporações empresariais situadas entre as primeiras 500 do ranking da revista Fortune deslocaram uma parte significativa das suas operações para a China, a fim de aproveitar as vantagens do chamado "preço chinês" (as vantagens de custos derivadas de um trabalho barato e aparentemente inesgotável). Em meados da primeira década do século XXI, entre 40 e 50% dos lucros das corporações norte-americanas procediam das suas operações e vendas no exterior, marcadamente na China.



Por que a globalização não pôde superar a crise?



O problema com esta via de saída do estancamento é que se exacerba o problema da superprodução, porque aumenta a capacidade produtiva. A China dos últimos 25 anos acrescentou um tremendo volume de capacidade manufactureira, o que teve como efeito deprimir os preços e os lucros. Não por acaso, os lucros das corporações norte-americanas deixaram de crescer por volta de 1997. De acordo com um índice estatístico, as taxas de lucros das 500 maiores da Fortune passaram de 7,15 em 1960-69 a 5,3 em 1980-1990, a 2,29 em 1990-99 e a 1,32 em 2000-02.



Dados os limitados ganhos obtidos para conter o impacto depressivo da superprodução, seja através da reestruturação neoliberal, seja com a globalização, a terceira via de saída tornou-se vital para manter e para elevar a rentabilidade. A terceira via é a financeirização.



No mundo ideal da teoria económica neoclássica, o sistema financeiro é o mecanismo à mercê do qual os poupadores, ou quem se encontra na posse de fundos excedentes, juntam-se com os empresários que têm necessidade de seus fundos, para investir em produção. No mundo real, do capitalismo tardio, com o investimento na indústria e na agricultura gerando lucros magros, por causa da superprodução, grandes quantidades de fundos excedentes circulam e são investidas e reinvestidas no sector financeiro. Quer dizer, o sistema financeiro gira sobre si mesmo.



O resultado é que se aumenta o hiato aberto entre uma economia financeira hiperactiva e uma economia real estancada. Como bem observa um executivo financeiro: "tem havido uma crescente desconexão entre a economia real e a economia financeira nos últimos anos. A economia real cresceu, mas nada comparável à financeira...até que explodiu".



O que este observador nos diz é que a desconexão entre a economia real e a financeira não é acidental: que a economia financeira se distanciou precisamente para fazer frente ao estancamento gerador da superprodução da economia real.



Quais foram os problemas da financeirização como via de saída?



O problema de investir em operações do sector financeiro é que equivale a exprimir valor de valor já criado. Pode criar lucro, de acordo, mas não cria valor - só a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços criam valor novo. Visto que os lucros não se baseiam na criação de valor novo ou agregado, as operações de investimento resultam extremamente voláteis e os preços das acções, das obrigações e de outras formas de investimento podem chegar a divergir radicalmente de seu valor real: por exemplo, as acções de empresas incipientes da Internet, que se mantiveram por um tempo em alta, sustentadas principalmente por valorações financeiras em espiral, para logo a seguir se arruinarem.



Os lucros dependem, então, do aproveitamento das vantagens por movimento de preços que divergem da alta do valor das mercadorias, para vender oportunamente antes de que a realidade force a "correcção" para baixo, a fim de se ajustar aos valores reais. A alta radical dos preços de um activo, muito além dos valores reais, é o que se chama de formação de uma bolha.



Por que a financeirização é tão volátil?



Com a rentabilidade dependendo de golpes especulativos, não resulta surpreendente que o sector financeiro vá de bolha em bolha, ou de uma mania especulativa a outra.



Visto que está sustentando por uma mania especulativa, o capitalismo induzido financeiramente não deixou de bater recordes em matéria de crises financeiras desde que os mercados de capitais foram desregulados e liberalizados nos 80.



Antes do actual desastre de Wall Street, as mais explosivas foram a crise financeira mexicana de 1994-95, a crise financeira asiática de 1997-98, a crise financeira russa de 1996, o colapso do mercado de valores de Wall Street de 2001 e o colapso financeiro argentino de 2002.



O antigo secretário do Tesouro, de Bill Clinton, um homem de Wall Street, Robert Rubin, previu há cinco anos que "as crises financeiras futuras serão com quase toda certeza inevitáveis e poderão chegar a ser até piores".



Como se formam, crescem e estouram as bolhas?



Tomemos como exemplo a crise financeira asiática de 1997-98:



Primeiro: balança de pagamentos e liberalização financeira impostas pelo FMI e pelo Departamento norte-americano do Tesouro.



Depois, entrada de fundos estrangeiros em busca de rápida e elevada rentabilidade, o que significa que entraram no mercado imobiliário e no mercado de valores.



Super-investimento, o que levou à queda dos preços no mercado de valores e no mercado imobiliário e que, por sua vez, conduziu ao pânico e à consequente retirada de fundos em 1997; em poucas semanas, milhões de dólares abandonaram as economias do leste asiático.



Resgate dos especuladores estrangeiros por parte do FMI.



Colapso da economia real: a recessão se estende por todo o leste asiático em 1998.



Apesar da desestabilização em grande escala, todas as acções voltadas para impor regulações nacionais ou globais do sistema financeiro foram rechaçadas com razões puramente ideológicas.



Voltemos à presente bolha. Como se formou?



O actual colapso de Wall Street está enraizado na bolha tecnológica de fins dos 90, quando o preço das acções das empresas incipientes no mundo da Internet disparou, para logo desmoronar, resultando na perda de activos no valor de 7 mil milhões de dólares e na recessão de 2001-02.



As frouxas políticas monetárias do Banco Central norte-americano, na gestão de Alan Greenspan, estimularam a bolha tecnológica e, quando esta entrou em colapso, dando origem à recessão, Greesnpan, tratando de prevenir uma recessão duradoura, rebaixou em Junho de 2003 as taxas de juros a um nível sem precedentes em 45 anos (a 1%), mantendo-as nesse nível durante mais de um ano. Com isso, o que conseguiu foi estimular a formação de outra bolha: a bolha imobiliária.



Pouco tempo antes, como em 2002, economistas como Dean Baker, do Center for Economic Policy Research, alertaram sobre a formação de uma bolha imobiliária. Porém, numa data tardia como 2005 o então presidente do Conselho Económico de assessores da Presidência da nação e actual presidente do Banco Central norte-americano, Bern Bernanke, atribuía o aumento dos preços dos imóveis a "uns fundamentos económicos robustos", e não à actividade especulativa. A quem pode surpreender que o estouro da crise subprime no verão de 2007 pegasse este homenzinho de moral tão baixa?



E como cresceu?



Escutemo-lo da boca de um dos próprios juízes chave nos mercados, George Soros: "As instituições hipotecárias animaram os hipotecados a refinanciar as sus hipotecas, aproveitando a revalorização experimentada, na ocasião, das suas casas. Rebaixaram os seus critérios de empréstimo e introduziram novos produtos, como hipotecas a juros variáveis, hipotecas que ‘só geravam juros' e ‘ofertas promocionais' com tipos de juros de morrer de rir. Tudo isso animou a especulação com a casa. Os preços das casas começaram a subir a um ritmo de dois dígitos. Isso serviu para retro-alimentar a especulação, e a alta dos preços imobiliários conseguiu que os proprietários de casas se sentissem ricos; o resultado foi o boom consumista que sustentou a economia nos últimos anos".



Vendo as coisas mais de perto, vê-se que a crise hipotecária não resultou de uma oferta superior à procura real. A "procura" estava, quando muito, fabricada pela mania especulativa de promotores e financistas empenhados em conseguir grandes lucros a partir de seu acesso ao dinheiro estrangeiro que inundou os EUA na última década. Enormes volumes hipotecários foram agressivamente oferecidos e vendidos a milhões de pessoas que, normalmente, não teriam podido permitir-se tal coisa, oferecendo-lhes taxas de juros ridiculamente baixas, posteriormente ajustáveis, para tirar mais dinheiro dos proprietários de casas.



Mas como puderam as hipotecas subprime degenerarem num problema de tais dimensões?



Porque os activos passaram, então, a ser "assegurados": aqueles que tinham gerado as hipotecas trataram de amalgamá-las com outros activos, em complexos produtos derivados chamados "obrigações de dívida colaterizada" (CDO, nas suas iniciais em inglês), o que resultou relativamente fácil, dado que trabalhavam com diversos tipos de intermediários que, sabedores do risco, desfaziam-se desses títulos de valores o mais rapidamente possível, passando-os a outros bancos e a outros investidores institucionais. Essas instituições, por sua vez, se desfaziam do produto, passando-o a outros bancos e a instituições financeiras estrangeiras.



Quando aumentaram os juros dos empréstimos subprime, das hipotecas variáveis e dos outros empréstimos imobiliários, o jogo chegou ao seu fim. Há cerca de 6 milhões de hipotecas subprime, das quais 40% entrarão em insolvência nos próximos dois anos, segundo estimativas de Soros.



A esses 6 milhões há que se acrescentar outros 5 milhões de insolventes nos próximos 7 anos, derivados dos tipos hipotecários variáveis e de outros "empréstimos flexíveis". Mas os títulos, cujos valores se conta em milhares de milhões de dólares, já se infiltraram como um vírus no sistema financeiro global. O gigantesco sistema circulatório do capitalismo foi fatalmente infectado.



E como puderam os titãs de Wall Street desmoronarem como um castelo de cartas?



O que ocorreu com Lehman Brothers, Merril Lynch, Fannie Mae, Freddie Mc e Bear Stearns foi, simplesmente, que as perdas representadas por esses títulos tóxicos rebaixaram em muito as suas reservas, o que conduziu a sua queda. E cairão mais, provavelmente, quando nos seus livros de contabilidade, os títulos que agora figuram como haveres, forem corrigidos para reflectir o actual valor desses activos.



E muitos outros lhes seguirão, à medida que vão sendo expostas outras operações especulativas, como as centradas nos cartões de crédito e nas diferentes variedades de seguro contra riscos. A AIG caiu por causa da sua gigantesca exposição na área não-regulada dos contratos de protecção creditícia derivada (credit default swaps), um dos derivados financeiros que permitiam aos investidores apostar dinheiro na possibilidade de que as empresas não pudessem pagar os empréstimos.



Essas apostas sobre insolvências creditícias representam agora um mercado de 45 mil milhões de dólares, um mercado, como se disse, que carece de qualquer regulação. A ciclópica dimensão dos activos, que poderiam ser deteriorados no caso de a AIG entrar em colapso foi o que motivou Washington a mudar de ideias e a intervir para resgatá-lo, logo após ter deixado o Lehman Brothers cair.



O que vai acontecer agora?



Pode dizer-se sem vilania que haverá mais bancarrotas e mais nacionalizações e intervenções públicas recuperando as instituições e que os bancos estrangeiros terão um papel auxiliar ao do governo dos EUA. E que o colapso de Wall Street vai mais longe e prolongará a recessão norte-americana. E que a recessão nos EUA se comunicará à Ásia e ao resto do mundo, que também sofrerá uma recessão, senão algo pior. A razão disto é que o principal mercado exterior da China são os EUA e que a China, por sua vez, importa matérias primas e bens intermediários - que servem para as suas exportações para os EUA - do Japão, da Coreia e do Sudeste asiático. A globalização tem tornado impossível o "desacoplamento". Os EUA, a China e o Leste Asiático andam agora como três prisioneiros atados por uma mesma corrente.



Em resumo?



O desabamento de Wall Street não se deve apenas à ganância e à falta de regulação estatal do sector hiperactivo. O colapso de Wall Street tem as suas raízes na crise de superprodução que foi a praga do capitalismo global desde meados dos anos 70.



A financeirização do investimento tem sido uma das vias de escape para sair do estancamento, sendo as outras a da reestruturação neoliberal e da globalização. Tendo resultado de pouco alívio a reestruturação neoliberal e a globalização, a financeirização pareceu atractiva como mecanismo de restauração da rentabilidade. Mas o que agora ficou demonstrado é que a financeirização é uma trilha perigosa que leva à formação de bolhas especulativas, capazes de oferecer uma efémera prosperidade a uns quantos, mas que terminam no colapso empresarial e na recessão da economia real.



As questões chave são estas: Quão profunda e duradoura será esta recessão? A economia dos EUA necessitará criar outra bolha especulativa para sair desta recessão? E se isso for o caso, onde se formará a próxima bolha? Alguns dizem que a próxima surgirá no complexo militar-industrial ou no "capitalismo de desastre" sobre o qual escreve Naomi Klein. Mas isso não é farinha do mesmo saco.



Walden Bello, professor de ciências políticas e sociais na Universidade das Filipinas (Manila), é membro do Transnational Institute de Amsterdam e presidente de Freedom from Debt Coalition, e é analista senior no Focus on the Global South. Artigo publicado em 05 de outubro no SinPermiso.



Tradução: Katarina Peixoto



[1] Peça satírica de 1627, de Francisco de Quevedo, onde um funcionário do rei é possuído pelo demónio.

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