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Serviços públicos e classe operária, por Jean Jaurés

E eis que, brandindo os acidentes da Ouest-Etat, toda a imprensa capitalista se precipita contra os serviços públicos. Todos os especuladores, todos os aproveitadores, todos aqueles que, após terem roubado magníficas riquezas à nação, queriam especular, monopolizar e roubar mais, todos aqueles que estão de olho, à espera de novas concessões, no minério de Ouenza, no carvão e no minério de Meurthe-et-Moselle, no ouro de múltiplas jazidas, todos aqueles que querem, sem que sejam perturbados na sua especulação, captar a energia hidráulica, geradora de luz e de movimento. Todos eles, organizados numa tropa, queriam persuadir a França de que o Estado democrático nunca será capaz de administrar uma indústria e de que devem ser deixadas por conta das empresas privilegiadas as riquezas que elas próprias já usurparam e que lhes devem ser entregues todas as novas riquezas.

Será o povo operário e camponês enrolado por essas manobras? Será que ele se deixará enganar e esfolar uma vez mais? Será que, justamente quando se acelera a política de nacionalização e municipalização no mundo inteiro, a França proclamará a sua incompetência, a sua inépcia, e consagrará as pretensões de um feudalismo que a sangra e subjuga?

Ah! Que se denunciem os erros da Ouest-Etat; que se procure a causa; que se lance uma luz implacável sobre todas as responsabilidades; que se reabra o processo da antiga empresa que criou deliberadamente uma situação intolerável e que se revelem os erros da burocracia que sem dúvida construiu, depressa demais, um novo regime sobre uma base podre; que se questionem aqueles que, para agradar à empresa ou por uma indesculpável negligência, não fizeram proceder ao exame rigoroso da estrada de ferro e do material, ao inventário preciso que teria permitido, de acordo com as cláusulas financeiras da compra, diminuir as pretensões abusivas dos accionistas e teria constituído, para o novo regime, uma advertência de prudência; que seja posto um fim à discórdia, à desconfiança recíproca entre o pessoal da antiga empresa e o da rede adquirida; que se organize - por meio de uma participação mais efectiva do pessoal empregado, do Parlamento, do próprio público, representado por seus delegados eleitos para esse fim, e pelos membros das grandes associações comerciais, industriais e sindicais - um controle mais eficaz; que não se tenha medo de agir rapidamente, seja qual for o custo do esforço financeiro necessário, para se obter o bom funcionamento da rede. Sim, mas que não se permita a uma oligarquia ávida em explorar as recentes catástrofes, pelas quais é, em grande parte, responsável, que aumente ainda mais o seu domínio feudal às custas de toda a população. E, também, que nunca os socialistas dêem à necessária crítica do Estado burguês - que, aliás, depende de nós para ser cada dia menos burguês - uma forma tal que faça o monopólio do capital se sentir regozijado e fortalecido.

Os ferroviários acertaram quando, há poucos dias, no seu congresso sindical e denunciando a intriga reaccionária, não só reivindicaram que a rede Ouest-Etat fosse mantida, mas também que a totalidade das redes ferroviárias fosse nacionalizada. Para toda a classe operária, há um interesse vital em que serviços públicos democraticamente administrados ocupem o lugar dos monopólios capitalistas e que funcionem com um padrão de excelência, com a participação e a dedicação de todos.

Primeiramente, os trabalhadores podem conquistar, dessa maneira, mais garantias. Numa democracia, o Estado, por mais burguês que ainda seja, não pode desconhecer os direitos e os interesses dos assalariados de modo tão pleno e cínico quanto os monopólios privados. A antiga Ouest-Etat antecipara-se a todas as demais empresas ao implantar reformas que favoreciam os trabalhadores; e agora, com a rede adquirida, a reintegração dos ferroviários está praticamente concluída, enquanto as empresas, ridicularizando o poder, o Parlamento e a consciência pública, respondem a qualquer pedido de reintegração com o mais despótico e injurioso indeferimento. Aliás, neste mesmo momento, o Estado prepara para os servidores públicos um regime salarial melhor do que o das empresas privadas. Mas isso não é tudo; e o Parlamento tem interesse, para a transformação da sociedade capitalista em sociedade socialista, em que os grandes serviços públicos, administrados segundo regras democráticas e com uma ampla participação da classe operária na sua direcção e controle, funcionem de maneira precisa e vigorosa. Não é indiferente que se possa provar que enormes complexos industriais podem funcionar sem o controle dos magnatas do capital. Por mais longe que estejam do que virá a ser a organização colectivista, os serviços estão mais perto desse objectivo, num país de democracia e organização operária, do que os monopólios privados. Eles são uma primeira forma de organização colectiva. Pressupõem - em cada um dos que dele participam e que devem coordenar os seus esforços sem a disciplina brutal de antigamente - aquele senso de responsabilidade e preocupação com a obra comum sem os quais o mecanismo colectivista falharia.

Os serviços públicos democratizados podem e devem ter um efeito triplo: diminuir a força do capitalismo, dar ao proletariado mais garantias e uma força mais directa de reivindicação e desenvolver nele, para compensar as garantias conquistadas, o zelo pelo bem público, que é uma forma básica da moralidade socialista e a própria condição necessária para o despertar de uma nova ordem.

Que os proletários defendam portanto, com todas as suas forças, os serviços públicos contra as campanhas sistemáticas da imprensa burguesa e contra as decepções que produz, junto à própria classe operária, uma primeira experiência, desastrada e arrogantemente burocrática, do regime da nacionalização.

Que eles não entreguem o Estado às oligarquias, mas que se esforcem, ao estender o domínio do Estado, por ampliar a sua acção dentro do Estado e sobre o Estado, por meio do desenvolvimento da sua organização sindical e da sua força política.

Eis aí um elemento necessário da política de acção de ampla e profunda "realização" que o Partido Socialista deverá propor à democracia francesa à medida que o radicalismo decomposto manifestar a sua impotência essencial.

Jean Jaurés(1859-1914), professor, deputado socialista, fundou o jornal L´Humanité em 1904, opôs-se à I Guerra Mundial, tendo sido assassinado por um nacionalista francês, apologista da guerra.

Este texto, do livro Un siècle d'Humanité - 1904-2004, org. Roland Leroy, ed. Le Cherche Midi, Paris, 2004, foi republicado no Le Monde Diplomatique em Junho de 2004, disponível no site do Le Monde Diplomatique do Brasil

Tradução para português de Jô Amado

Sobre o/a autor(a)

Político socialista francês (Castres, 3 de setembro de 1859 - Paris, 31 de julho de 1914)
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Neste dossier:

Privatizações na ferrovia

A política para o transporte ferroviário é questionada neste dossier, onde também se refere a desastrosa experiência privatizadora britânica, se divulgam filmes e se recorda um texto do socialista francês Jean Jaurés. O Governo Sócrates incluiu no programa de estabilidade e crescimento privatizações na ferrovia: da EMEF (Empresa de Manutenção e Equipamento Ferroviário), da CP e a concessão de linhas.

Privatização da CP: Regresso a 1949, fragmentação e concorrência nos Transportes Públicos

A lógica da exploração e gestão dos sistemas de transportes em vez de seguirem uma lógica de sistema passarão a estar obrigados a mudar de operador e a pagar mais pela mesma deslocação.

O Estado fica sem os anéis e sem os dedos

O que vai acontecer na ferrovia é o Estado ficar sem as empresas e lá se vão os serviços públicos. Mas fica também sem o dinheiro. O combate ao défice das contas por aqui não se safa.

Intenção de privatizar ferrovia não é nova

Um país não pode viver sem serviço público e de qualidade. não podemos estar de acordo com esta política neoliberal, que advoga que o que não dá lucro é para fechar. Há serviços públicos que o estado tem por obrigação prestar às populações e o transporte ferroviário é um deles.

Europa ferroviária: “revitalização” ou destruição de meios públicos?

A mistificação da CE tem consistido na afirmação de que o "monopólio natural" constituído por um sistema ferroviário deve ser limitado à infra-estrutura (as vias férreas).

Serviços públicos e classe operária, por Jean Jaurés

Após um acidente de comboio da companhia ferroviária Ouest-Etat, então recém-nacionalizada, o socialista francês Jean Jaurés escreveu este artigo, que foi publicado em 19 de Fevereiro de 1911. Jean Jaurés era então director do jornal L'Humanité, e este seu texto parece antecipar o que viria a acontecer quase um século depois.

O caos dos caminhos de ferro britânicos

A actual liberalização dos serviços públicos, preconizada na União Europeia, deveria levar em conta o exemplo, trágico, da privatização das ferrovias no Reino Unido.

A Privatização tem sido um desastre

Uma vez que a National Express abandonou o franchising, o sistema está falido. A nacionalização dos caminhos-de-ferro é a única solução racional.

Bloco quer esclarecimentos sobre privatizações da CP e da EMEF

A privatização da ferrovia em Portugal é uma decisão de consequências bem previsíveis e desastrosas para as políticas de mobilidade, ambiente, desenvolvimento e coesão territorial. Por isso, o Bloco questionou o governo sobre a intenção de privatizações na ferrovia, estabelecida no PEC. O Programa de Estabilidade e Crescimento para 2010-2013 consagra um extenso programa de privatizações, que inclui a alienação de empresas estratégicas como a CP e a EMEF e a concessão da exploração de linhas.

“The Navigators” de Ken Loach

O filme "The Navigators" de Ken Loach, realizado em 2001, mostra as consequências da privatização da ferrovia britânica para os trabalhadores ferroviários e os riscos para a segurança do caminho de ferro. Infelizmente o filme não se encontra legendado em português. O filme de Ken Loach retrata a vida de um grupo de operários da via e o que lhes acontece com a privatização da ferrovia. O filme encontrava-se disponível no youtube, subdividido em dez partes (já não está disponível devido a uma reivindicação de direitos de autor apresentada por Journeyman Pictures).

Documentário “Pare, escute, olhe”

A política de privatizações da ferrovia leva directamente ao abandono das linhas não rentáveis, que há muito vem acontecendo em Portugal. O documentário de Jorge Pelicano sobre a abandonada Linha do Tua, aborda este realidade e marcou a cinematografia nacional em 2009.

A grande venda

Incluímos neste dossier este vídeo sobre a privatização dos caminhos de ferro na Grã-Bretanha e as suas consequências para a população e para os trabalhadores: precariedade, desinvestimento na ferrovia, diminuição da segurança e aumento do número de acidentes. Com a privatização da British Rail, o caminho de ferro britânico que era considerado o mais eficiente da Europa degradou-se imenso.