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O Estado fica sem os anéis e sem os dedos

Em Inglaterra, nos tempos idos da senhora Thatcher, as privatizações eram a flor na lapela de qualquer neoliberal que se prezasse. Foi assim que os transportes ferroviários ingleses foram privatizados.

Foi assim que por toda a Europa se começou a preparar o mesmo caminho, as empresas ligadas à ferrovia foram retalhadas: infraestruturas, manutenção, reparação, serviço comercial, cada sector para seu lado.

E em Portugal, não se ficou por aqui, foram criadas novas empresas, novamente retalhadas, mais unidades de negócio, por tudo e por nada, mercadorias para um lado passageiros para outro, cada empresa com a sua administração e com os seus prémios: a cada boy o seu quinhão. Os passivos da CP e da Refer nunca pararam de aumentar, à conta disto o sector financeiro rouba ao erário público milhões e milhões de euros todos os anos só em juros.

A CP, proprietária dos comboios, nunca se entendeu com a Refer, proprietária das linhas. A CP vende um serviço pelo qual não se pode responsabilizar, pois os comboios circulam nas linhas de outra empresa, as estações são da outra, as salas de espera também são da outra empresa e os conflitos têm sido vários, tapados com a peneira da tutela.

Entretanto, em Inglaterra, como sabemos, os transportes ferroviários foram renacionalizados, problemas de segurança e de qualidade do serviço assim o ditaram. Em Portugal percorreu-se todo o caminho necessário para oferecer ao capital as partes lucrativas da ferrovia. Não são parvos, porque se não tiverem garantia de lucro aplica-se a receita Fertagus. Como todos nós sabemos, e não nos esquecemos disso com toda a certeza, o Estado garante ao grupo Barraqueiro a quantia que faltar.

E eis-nos chegados ao célebre PEC. O Governo precisa de dinheiro, precisa de vender, está na altura de activar o plano do bloco central, que os governos do PS e do PSD e do CDS vinham preparando há algum tempo, há alguns anos atrás. Assim, apontam para privatizações no sector ferroviário.

A CP - Carga, que é do sector das mercadorias como sabemos, onde já mexe a Mota-Engil, do ex-ministro Jorge Coelho, através da empresa Takargo. A EMEF, manutenção e reparação de tudo o que é material circulante e única empresa detentora de know-how capaz de responder às necessidades da CP - a contabilidade da EMEF tem sido construída ao sabor dos interesses da proprietária CP, menos custos para a EMEF logo menos dívida. Concessão de linhas , está-se mesmo a ver o capital privado a querer explorar a linha do Oeste ou a linha da Beira Baixa, por exemplo, tão bom coração que eles têm... Ou explorar a linha do Tua, esse ameaçado património histórico e toda uma região exemplarmente tratado no célebre documentário, que muitos conhecerão: "Pare Escute e Olhe"

Mas vamos ao que mais interessa, em primeiro lugar as questões de segurança. É com toda a certeza pacífico entre todos nós que a circulação ferroviária exige níveis de segurança muito altos, que se torna difícil garantir com vários operadores na mesma linha. O mesmo se passa com a segurança do material, que actualmente é assegurada pela EMEF, que é uma empresa conhecedora de todo o material, com experiência e acima de tudo com uma percentagem elevada de estabilidade no emprego, condição fundamental para assegurar níveis de segurança condizentes com as exigências, factor que o sector privado não assegura e muito menos com as actuais leis do trabalho, como sabemos.

O Governo, na minha opinião, parece brincar com o fogo. É sabido que o Estado financia o transporte ferroviário, em particular nas grandes metrópoles, através do passe social, e como sabemos que isso conta na contabilidade das famílias. No actual contexto é impensável que este financiamento possa desaparecer ou sequer baixar, quando o que é justo é o seu alargamento, aliás, o Bloco de Esquerda tem-se batido pelo alargamento do passe social até ao Entroncamento. A pergunta que se impõe é se estão estes eventuais privados dispostos a transportar aos preços actualmente em vigor ou se já estão de mão estendida para o Estado, o tal Estado que supostamente impede o livre funcionamento da economia.

Quanto à qualidade veja-se a cobertura territorial do transporte ferroviário, o abandono a que ficou sujeito já há alguns anos o interior do país: fecharam-se as linhas, fecharam-se as estações, circulam nestas linhas os comboios com menos qualidade, com menos conforto, com sérias dificuldades inclusive do cumprimento daquilo a que é obrigatório do ponto de vista dos horários. É o desinvestimento acelerado com as consequências conhecidas, um país quase todo plantado à beira-mar e o abandono das populações inteiras do interior do país. Este é o resultado das políticas que os governos dos últimos anos têm feito em Portugal.

Alguém duvida que estas políticas agora agravadas com o PEC levam à degradação do serviço público e à entrega aos privados de tudo o que der lucro? Que vai fazer o Governo em relação aos elevadíssimos passivos das empresas? Os privados não os vão assumir - pudera! - os milhões são muitos, é um facto, e eles estão ali para assumir lucros e não prejuízos.

E em relação aos investimentos previstos? Não sabemos. 400 milhões de euros em material circulante; renovação das linhas do Oeste, do Douro, de parte da Beira Baixa, do ramal de Leixões, Tua, Tâmega, Corgo; a oficina de vagões da EMEF; tudo isto são compromissos já assumidos por este Governo e por Governo anteriores. Provavelmente são mais promessas para não cumprir ou serão compromissos esquecidos.

O que vai acontecer na ferrovia é o Estado ficar sem as empresas e lá se vão os serviços públicos. Mas fica também sem o dinheiro. O combate ao défice das contas por aqui não se safa.

A aposta na ferrovia como o transporte do futuro corre sérios riscos de ser uma miragem, a segurança vai diminuir, a qualidade vai diminuir, os preços vão aumentar, os direitos dos trabalhadores ferroviários vão ser retirados e o Estado fica sem os anéis e sem os dedos.

Os trabalhadores e as populações vão ter de pedir responsabilidades aos vários partidos pelas consequências da aplicação deste PEC, não pode ser doutra maneira. Veremos porém que as últimas linhas do PEC ainda estarão por escrever, cabe aos cidadãos e às cidadãs escrevê-las, mostrando que querem um país desenvolvido, equilibrado e uma ferrovia ao serviço de todos, com respeito pelos direitos de quem lá trabalha.

(...)

Neste dossier:

Privatizações na ferrovia

A política para o transporte ferroviário é questionada neste dossier, onde também se refere a desastrosa experiência privatizadora britânica, se divulgam filmes e se recorda um texto do socialista francês Jean Jaurés. O Governo Sócrates incluiu no programa de estabilidade e crescimento privatizações na ferrovia: da EMEF (Empresa de Manutenção e Equipamento Ferroviário), da CP e a concessão de linhas.

Privatização da CP: Regresso a 1949, fragmentação e concorrência nos Transportes Públicos

A lógica da exploração e gestão dos sistemas de transportes em vez de seguirem uma lógica de sistema passarão a estar obrigados a mudar de operador e a pagar mais pela mesma deslocação.

O Estado fica sem os anéis e sem os dedos

O que vai acontecer na ferrovia é o Estado ficar sem as empresas e lá se vão os serviços públicos. Mas fica também sem o dinheiro. O combate ao défice das contas por aqui não se safa.

Intenção de privatizar ferrovia não é nova

Um país não pode viver sem serviço público e de qualidade. não podemos estar de acordo com esta política neoliberal, que advoga que o que não dá lucro é para fechar. Há serviços públicos que o estado tem por obrigação prestar às populações e o transporte ferroviário é um deles.

Europa ferroviária: “revitalização” ou destruição de meios públicos?

A mistificação da CE tem consistido na afirmação de que o "monopólio natural" constituído por um sistema ferroviário deve ser limitado à infra-estrutura (as vias férreas).

Serviços públicos e classe operária, por Jean Jaurés

Após um acidente de comboio da companhia ferroviária Ouest-Etat, então recém-nacionalizada, o socialista francês Jean Jaurés escreveu este artigo, que foi publicado em 19 de Fevereiro de 1911. Jean Jaurés era então director do jornal L'Humanité, e este seu texto parece antecipar o que viria a acontecer quase um século depois.

O caos dos caminhos de ferro britânicos

A actual liberalização dos serviços públicos, preconizada na União Europeia, deveria levar em conta o exemplo, trágico, da privatização das ferrovias no Reino Unido.

A Privatização tem sido um desastre

Uma vez que a National Express abandonou o franchising, o sistema está falido. A nacionalização dos caminhos-de-ferro é a única solução racional.

Bloco quer esclarecimentos sobre privatizações da CP e da EMEF

A privatização da ferrovia em Portugal é uma decisão de consequências bem previsíveis e desastrosas para as políticas de mobilidade, ambiente, desenvolvimento e coesão territorial. Por isso, o Bloco questionou o governo sobre a intenção de privatizações na ferrovia, estabelecida no PEC. O Programa de Estabilidade e Crescimento para 2010-2013 consagra um extenso programa de privatizações, que inclui a alienação de empresas estratégicas como a CP e a EMEF e a concessão da exploração de linhas.

“The Navigators” de Ken Loach

O filme "The Navigators" de Ken Loach, realizado em 2001, mostra as consequências da privatização da ferrovia britânica para os trabalhadores ferroviários e os riscos para a segurança do caminho de ferro. Infelizmente o filme não se encontra legendado em português. O filme de Ken Loach retrata a vida de um grupo de operários da via e o que lhes acontece com a privatização da ferrovia. O filme encontrava-se disponível no youtube, subdividido em dez partes (já não está disponível devido a uma reivindicação de direitos de autor apresentada por Journeyman Pictures).

Documentário “Pare, escute, olhe”

A política de privatizações da ferrovia leva directamente ao abandono das linhas não rentáveis, que há muito vem acontecendo em Portugal. O documentário de Jorge Pelicano sobre a abandonada Linha do Tua, aborda este realidade e marcou a cinematografia nacional em 2009.

A grande venda

Incluímos neste dossier este vídeo sobre a privatização dos caminhos de ferro na Grã-Bretanha e as suas consequências para a população e para os trabalhadores: precariedade, desinvestimento na ferrovia, diminuição da segurança e aumento do número de acidentes. Com a privatização da British Rail, o caminho de ferro britânico que era considerado o mais eficiente da Europa degradou-se imenso.