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A revolução escrava do Haiti

Contexto histórico em 1789

Em 1789 Saint-Domingue produzia 40 % do açúcar do mundo, sendo a colónia francesa mais lucrativa, aliás a mais rica e mais próspera das colónias de escravos na região das Caraíbas.

Nesta altura, a população escrava na ilha totalizava quase meio milhão de pessoas. A taxa de mortalidade excedia a taxa de natalidade, perpetuando o transporte de escravos africanos para a ilha, cuja condição era cruelmente dificultada pela alimentação deficiente, a falta de abrigo, de roupa e de cuidados médicos, havendo também um desequilíbrio entre os sexos, com mais homens do que mulheres.

Aquilo a que se pode considerar uma "elite escrava” era composta por escravos urbanos e domésticos que trabalhavam nas fazendas como cozinheiros, criados pessoais e artesãos. Estes eram na verdade os filhos dos escravos, já nascidos na América cujos pais trabalharam em condições absolutamente inumanas.

Em Saint-Domingue viviam 40.000 colonos franceses em 1789, nascidos na Europa e monopolizavam os cargos administravos. Os senhores das plantações, os “grand blancs”, eram tidos como aristocratas menores e muitos voltaram para a França com medo da Febra Amarela. Os brancos de classe baixa, os “blancs petit”, eram artesãos, comerciantes de escravos, capatazes.

As “pessoas de cor” com origem escrava mas livres eram mais de 28.000 nesta época, sendo muitos deles artesãos, administrativos ou empregados domésticos nas casas-grandes. Tinham a oportunidade da educação e eram portanto alfabetizados, serviam no exército ou eram administradores das plantações. Muitos eram filhos de fazendeiros brancos e mães escravas, herdando às vezes, os homens, as propriedade dos pais e a liberdade.

A costa norte de Saint-Domingue era a área mais fértil, com as maiores plantações de açúcar.sendo também a área de maior importância económica. Aqui os escravos viviam em grandes grupos e em relativo isolamento, separados do resto da colónia pela grande montanha conhecida como o Massif. Esta área foi a sede do poder dos “grand blancs”, os colonos brancos ricos que queriam uma maior autonomia para a colónia, sobretudo economicamente.

Os fazendeiros brancos cuja riqueza provinha da venda do açúcar, sabiam que estavam em menor número do que os escravos, numa relação de um para mais de dez, e por isso temiam constantemente uma possível rebelião.

Grupos de escravos fugitivos viviam na floresta escapando à dominação e realizavam ataques violentos nas plantações de açúcar e café da ilha. O sucesso desses ataques conduziu ao apelo da reacção violenta como meio da luta política.

O primeiro líder destes grupos a unificar a comunidade negra foi François Mackandal que era uma sacerdote vodu e que invocava a cultura e tradição africanas ancestrais. Estabeleceu uma rede de organizações secretas entre os escravos das plantações, que lideraram uma revolta que se arrastou desde 1751 até 1757.

Embora Mackandal tenha sido posteriormente capturado pelos franceses e queimado numa fogueira em 1758, as grandes milícias “Maroon” persistiram com os ataques e as perseguições após a sua morte.

Além da tensão racial, a região foi também polarizada pelas rivalidades regionais. Havia também conflitos entre os defensores da independência, os “fiéis” a França, os aliados da Espanha, e os aliados da Grã-Bretanha que cobiçavam a colónia.

A influência da Revolução Francesa

Com a publicação a 26 de Agosto de 1789, em França, da “Declaração dos Direitos do Homem”, que declarava todos os homens livres e iguais, a Revolução Francesa influenciava o conflito que se desenvolvia em Saint-Domingue. Tantas foram as voltas e (re)voltas na liderança da França nesta altura, quanto foram complexos os eventos em Saint-Domingue, de tal modo que as várias classes e partidos mudaram muitas vezes as suas posições.

A população africana da ilha começou a ouvir falar da agitação pela independência através dos fazendeiros ricos europeus, que se ressentia das limitações impostas pela metrópole sobre o comércio exterior da ilha. Com medo que a independência desse livre poder aos fazendeiros para um tratamento ainda mais severo e injusto, os escravos aliaram-se aos monárquicos e aos britânicos.

Já os que tinham sido libertados, como o seu mais notável representante Julien Raimond, apelavam activamente à França por uma igualdade civil efectiva, em relação aos brancos. Raimond usou a Revolução Francesa para tornar esta questão central entre os assuntos coloniais.

O escritor francês Conde Mirabeau disse uma vez que os brancos de Saint-Domingue "dormiam nos pés do Vesúvio", indicando a ameaça real que enfrentavam os colonos, caso a maioria dos escravos iniciasse uma grande revolta.

A Revolução

A 22 de Agosto de 1791, os escravos de Saint-Domingue erguem-se em revolta e a colónia francesa mergulha numa guerra civil.

O sinal foi dado por Dutty Boukman, um sacerdote de vodu e líder dos escravos “Maroon”, durante uma cerimónia religiosa em Bois Caïman na noite de 14 de Agosto. Dez dias depois, os escravos já tinham tomado o controlo de toda a Província do Norte, numa revolta escrava sem precedentes e muito violenta, que deixou aos colonos apenas o controlo de alguns campos fortificados isolados.

Os fazendeiros sempre temeram uma revolta e por isso estavam preparados e bem armados. Assim, retaliaram massacrando os prisioneiros negros trazidos pelos soldados.

Em poucas semanas, o número de escravos que se juntou à revolta ascendia já a aproximadamente 100 mil e em dois meses, com a escalada da violência, já tinham morto 2 mil colonos e destruído 180 plantações de açúcar e centenas de café.

Por 1792, os escravos controlavam um terço da ilha. O sucesso da rebelião de escravos levou o recém-eleita Assembleia Legislativa francesa a perceber que estava a enfrentar uma situação ameaçadora e que para proteger os seus interesses económicos teria de conceder direitos civis e políticos aos homens livres de cor nas colónias – veio a fazer isso em Março de 1792, uma decisão que chocou vários países da Europa e os EUA. Para além disso, enviaram 6 mil franceses para a ilha.

Entretanto, em 1793, a França declarou guerra à Grã-Bretanha. Nessa altura, os fazendeiros e proprietários de escravos de Saint-Domingue fizeram acordos com os britânicos para reforçar a soberania inglesa nas ilhas.

A Espanha, que controlava o resto da ilha de Hispaniola, acaba por também participar no conflito, lutando com a Grã-Bretanha contra a França, invadindo a ilha e juntando-se às forças dos escravos.

Em 1793 já só havia 3.500 soldados franceses na ilha. Para evitar o desastre militar, um comissário francês libertou os escravos na sua jurisdição.

A decisão foi confirmada e alargada pela Convenção Nacional, em 1794, quando formalmente se abole a escravidão e se concedem direitos civis e políticos a todos os homens negros nas colónias. Estima-se que a rebelião de escravos resultou na morte de 100.000 negros e 24.000 brancos.

Um dos comandantes negros com mais sucesso foi Toussaint L'Ouverture. Como Jean François e Biassou, ele inicialmente lutou pela coroa espanhola, mas após a invasão da ilha pelos britânicos, ele decidiu lutar pelo lado francês, com a condição de estes concordarem em libertar todos os escravos.

A 29 Agosto 1793, Sonthonax proclama o fim da escravatura.

Em 1801, L'Ouverture emitiu uma constituição para Saint-Domingue que previa a autonomia e o decretava governador vitalício.

Em retaliação, Napoleão Bonaparte envia para a ilha uma grande expedição militar francesa, liderada pelo seu cunhado Charles Leclerc, para restaurar a lei francesa e, sob instruções secretas, repor a escravatura.

Durante as lutas, alguns aliados de L'Ouverture, como Jean-Jacques Dessalines, desertaram para Leclerc.

Durante alguns meses, a ilha esteve tranquila sob o domínio de Napoleão, mas quando se torna evidente que este pretendia restabelecer a escravidão, Dessalines e Pétion mudam de lado e em Outubro de 1802, combatem contra os franceses. Enfrentaram um duro combate, primeiro contra Leclerc, depois contra o Visconde de Rochambeau.

Dessalines liderou a rebelião até a sua conclusão, quando as forças francesas foram finalmente derrotados em 1803. A última batalha aconteceu a 18 de Novembro e ficou conhecida como a “Batalha de Vertières”.

A 1 de Janeiro de 1804, Dessalines, o novo líder sob a Constituição ditatorial de 1801, declarara o Haiti uma república livre.

Haiti independente

O Haiti foi então a primeira nação independente da América Latina, a primeira nação independente pós-colonial do mundo a ser liderada por um negro e a única nação cuja independência foi obtida como parte de uma rebelião de escravos bem-sucedida.

O país chega à independência com muitos anos de guerra, com a agricultura devastada, o seu comércio formal inexistente e as pessoas sem educação e principalmente não qualificadas.

Em 1825, o Haiti concordou em fazer reparações a antigos donos de escravos franceses, na ordem dos 150 milhões de francos (reduzindo o montante em 1838 para 60 milhões de francos) em troca do reconhecimento da sua independência pela França e para se libertar da opressão francesa.

Esta indemnização causou a falência do tesouro haitiano, que hipotecou o seu futuro aos bancos franceses para pagar a primeira grande parcela, afectando assim e definitivamente a prosperidade do Haiti.

O fim da Revolução Haitiana em 1804 marcou o fim definitivo do colonialismo no Haiti mas o conflito social cultivado sob a escravatura continuou a afectar a população.

Depois da revolução, o poder foi tomado por uma elite “affranchi” (composta por escravos emancipados ou “pessoas de cor livres”, como eram chamados habitualmente) e pelo exército haitiano.

Só em 1834, a França reconhece formalmente o Haiti como uma nação independente e os Estados Unidos só em 1862.

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Neste dossier:

A revolução escrava do Haiti

A Revolução Haitiana (1791-1803) corresponde a um período de violentos conflitos na colónia francesa de Saint-Domingue que levou à eliminação da escravatura e ao estabelecimento do Haiti como a primeira república governada por um descendente africano. Apesar das centenas de rebeliões ocorridas no Novo Mundo, durante os séculos da escravatura, apenas a revolta de Saint-Domingue, que começou em 1791, foi bem sucedida no sentido da libertação definitiva e é considerada como um momento decisivo na história dos africanos no continente americano. 

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