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Herança da mais brutal exploração colonial da história

Um terramoto com a intensidade daquele que, em 12 de Janeiro, atingiu a capital do Haiti teria causado enormes danos em qualquer cidade do mundo. Não é contudo por acaso que uma parte tão considerável de Port-au-Prince pareça agora uma zona de guerra. Boa parte da devastação causada pelo mais recente e calamitoso desastre natural é facilmente compreensível como mais uma consequência de uma horrível sequência histórica, tipicamente um produto da acção humana.

O país teve mais do que a sua quota de catástrofes. O grande sismo de 7 de Maio de 1842 matou mais de 10 mil pessoas, só na cidade de Cap Haïtien, na costa norte. Os ciclones fustigam regularmente a ilha, os mais recentes em 2004 e 2008. As tempestades de Setembro de 2008 causaram inundações na cidade de Gonaïves e destruíram boa parte das suas deficientes infra-estruturas, matando mais de mil pessoas e destruindo muitos milhares de casas. A amplitude total da destruição resultante deste terramoto só deverá ser conhecida daqui a várias semanas. Mesmo pequenas obras vão demorar anos a ficarem prontas, e o impacto a longo prazo é incalculável.

No entanto, é já muito claro que este impacto resultou de uma ainda mais longa história de empobrecimento deliberado e perda de poder. O Haiti é geralmente descrito como o "país mais pobre do hemisfério ocidental". Essa pobreza é uma herança directa daquele que talvez tenha sido o mais brutal sistema de exploração colonial da história mundial, combinado com décadas de opressão pós-colonial sistemática.

A nobre "comunidade internacional", que hoje se apressa a mandar "ajuda humanitária" para o Haiti, é largamente responsável pela dimensão do sofrimento que agora pretende reduzir. Desde que os EUA invadiram e ocuparam o país, em 1915, todas as tentativas no sentido de permitir que a população do Haiti passasse "da miséria absoluta a uma pobreza digna" (segundo as palavras do antigo Presidente Jean-Bertrand Aristide) foram violenta e deliberadamente bloqueadas pelo governo dos EUA e alguns dos seus aliados.

O próprio Governo de Aristide (eleito por cerca de 75% do eleitorado) foi a última vítima desta interferência, quando foi deposto, em 2004, por um golpe de estado, patrocinado internacionalmente, que matou vários milhares de pessoas e causou o ressentimento da maioria da população. Depois dele, a ONU tem mantido no país uma vasta força de estabilização e pacificação, cujos custos são enormes.

Hoje, o Haiti é um país onde, segundo o melhor estudo disponível, cerca de 75% da população "vive com menos de dois dólares (1,40 euros) por dia e 56% - 4,5 milhões de pessoas - com menos de um dólar (68 cêntimos) por dia". Décadas de "ajuste" neoliberal e de intervenção neo-imperial retiraram ao seu governo qualquer capacidade de investir no seu povo ou de regular a sua economia. Acordos comerciais e financeiros internacionais punitivos garantem que essa destituição e essa impotência continuarão, no futuro previsível, a ser um facto estrutural da vida no Haiti.

São essa pobreza e essa fragilidade que estão na origem da enorme escala do horror que hoje se vive em Port-au-Prince. Desde finais dos anos 1970, os ataques neoliberais à economia rural do Haiti empurraram dezenas de milhar de pequenos agricultores para subúrbios urbanos sobrepovoados. Embora não haja estatísticas fiáveis, centenas de milhar de residentes de Port-au-Prince vivem em habitações clandestinas sem o mínimo de condições, muitas delas empoleiradas em ravinas desflorestadas. A mistura de pessoas que vivem nesses locais e nessas condições não é, em si mesma, mais "natural" ou acidental do que a amplitude dos danos que sofreram.

Como destaca Brian Concannon, director do Instituto para a Justiça e a Democracia no Haiti: "Estas pessoas foram para lá porque os pais foram intencionalmente expulsos do campo devido a políticas de ajuda e de comércio especificamente destinadas a criar uma enorme força de trabalho cativa - e portanto explorável - nas cidades; por definição, são pessoas que não teriam dinheiro para construir casas resistentes a terramotos." As infra-estruturas básicas da cidade - água corrente, electricidade, estradas, etc. - continuam a ser tristemente inadequadas e, em muitos casos, inexistentes. A capacidade do governo de mobilizar qualquer ajuda para as vítimas é quase nula.

Na prática, a comunidade internacional tem governado de facto o Haiti desde o golpe de 2004. Os países que agora se apressam a enviar ajuda de emergência são os mesmos que, nos últimos cinco anos, têm persistentemente votado contra o alargamento do mandato da missão da ONU para além da sua finalidade militar imediata. As propostas no sentido de canalizar parte deste "investimento" para a redução da pobreza ou para o desenvolvimento rural têm sido bloqueadas, em conformidade com os velhos padrões que continuam a modelar a distribuição da "ajuda" internacional.

As mesmas tempestades que mataram tantos em 2008 atingiram Cuba com a mesma intensidade mas mataram apenas quatro pessoas. Cuba escapou aos piores efeitos da "reforma" neoliberal, e o seu governo mantém a sua capacidade de defender o seu povo dos desastres. Se quisermos mesmo ajudar o Haiti a sair desta mais recente crise, teremos de ter em conta este ponto de comparação. Além de enviarmos ajuda de emergência, devemos perguntar-nos o que podemos fazer para facilitar a capacitação da população e das instituições públicas do Haiti. Se quisermos mesmo ajudar, temos de deixar de tentar controlar o governo do Haiti, de pacificar os seus cidadãos e de explorar a sua economia. Depois, temos de começar a pagar, pelo menos por alguns dos danos que já provocámos.

13 de Janeiro de 2010

Peter Hallward é especialista em filosofia francesa contemporânea e um dos mais importantes intérpretes de Alain Badiou. É também autor de um livro sobre Deleuze (Out of this World), e de um estudo sobre o pós-colonial. Paralelamente ao trabalho mais teórico, tem escrito regularmente sobre política haitiana, tendo publicado em 2007 o livro Damming the Flood: Haiti, Aristide, and the Politcs of Containment, onde expõe o esforço do movimento popular Lavalas, e de Jean-Bertrand Aristide, para libertar o Haiti de uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos.

Sobre o/a autor(a)

Professor de Filosofia Europeia Moderna na Middlesex University e autor do livro Damming the Flood: Haiti, Aristide, and the Politics of Containment
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Neste dossier:

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Publicado originalmente na Folha de S. Paulo

Herança da mais brutal exploração colonial da história

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Publicado originalmente no Guardian

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