Defender a democracia

porMark Weisbrot

22 de janeiro 2010 - 0:00
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Muito tempo antes do terremoto, a situação do Haiti já era comparável à de muitos sem-abrigo nas ruas de grandes cidades dos EUA: pobres demais e negros demais para ter os mesmos direitos concretos que outros cidadãos.



Em 2002, quando um golpe militar que teve o apoio dos EUA afastou temporariamente o governo eleito da Venezuela, a maioria dos governos no hemisfério reagiu rapidamente e ajudou a forçar o regresso do governo democrático. Mas, dois anos mais tarde, quando o presidente haitiano democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, foi sequestrado pelos Estados Unidos e levado de avião para o exílio na África, a reação foi fraca.



Diferentemente dos dois séculos de saque e pilhagem do Haiti desde a sua fundação graças a uma revolta de escravos em 1804, da ocupação brutal por fuzileiros navais dos EUA entre 1915 e 1934 e das incontáveis atrocidades cometidas sob ditaduras auxiliadas e apoiadas por Washington, o golpe de 2004 não pode ser relegado ao esquecimento, visto como nada mais que "história antiga". Aconteceu há apenas seis anos e é directamente relacionado ao esforço de ajuda e reconstrução que o presidente Obama está a propor agora.



Os Estados Unidos, ao lado de Canadá e França, conspiraram abertamente durante quatro anos para derrubar o governo eleito do Haiti, cortando quase toda a ajuda internacional ao país com o objectivo de destruir sua economia e torná-lo ingovernável. Conseguiram.



Para aqueles que se indagam por que não existem instituições governamentais haitianas para ajudar aos esforços de socorro e ajuda às vítimas do terremoto, essa é uma das grandes razões. Ou o porquê de haver 3 milhões de pessoas amontoadas na área atingida pelo terremoto.



A política dos EUA ao longo dos anos também ajudou a destruir a agricultura haitiana, por exemplo, ao forçar a importação de arroz americano subsidiado e eliminar milhares de plantadores de arroz haitianos.



O primeiro governo democrático de Aristide foi derrubado após apenas sete meses, em 1991, por oficiais militares e esquadrões da morte que, mais tarde, se descobriu estarem a soldo da Agência Central de Inteligência dos EUA. Agora Aristide quer retornar ao seu país, algo que a maioria dos haitianos reivindica desde o seu derrube.



Mas os EUA não o querem ali. E o governo Preval, que é completamente dependente de Washington, decidiu que o partido de Aristide - o maior do Haiti - não será autorizado a concorrer às próximas eleições (previstas originalmente para Fevereiro).



O medo que Washington tem da democracia no Haiti talvez explique o porquê de os Estados Unidos agora estarem a enviar 10 mil soldados e priorizando a "segurança", em lugar das necessidades de vida ou morte dos milhares de pessoas que precisam de atendimento médico urgente.



Na manhã de domingo, o mundialmente renomado grupo humanitário Médicos Sem Fronteiras queixou-se que um avião transportando a sua unidade hospitalar móvel foi obrigado pelos militares americanos a mudar de rota, passando primeiramente pela República Dominicana. Isso custaria 24 horas cruciais e um número desconhecido de vidas.



Essa ocupação militar por tropas dos EUA vai suscitar outras preocupações no hemisfério, dependendo de quanto tempo elas permanecerem - assim como o modo como a ampliação recente da presença militar dos Estados Unidos na Colômbia tem vindo a ser recebida com insatisfação e desconfiança consideráveis.



Organizações não-governamentais vêm levantando outras questões sobre a reconstrução proposta: compreensivelmente, querem que a dívida remanescente do Haiti seja cancelada e que sejam feitas doações ao país, e não empréstimos (o FMI propôs um empréstimo de 100 milhões de dólares). As necessidades da reconstrução chegarão a milhares de milhões de dólares.



Será que Washington vai incentivar o estabelecimento de um governo que funcione? Ou vai impedi-lo, canalizando a assistência por meio de ONGs e assumindo ele próprio várias outras funções, devido à sua oposição de longa data à autonomia do Haiti?



O Brasil não segue a linha de Washington na América do Sul nem, mais recentemente, o fez nas Honduras, "quintal" dos Estados Unidos - onde o governo brasileiro defendeu em vão a restauração da democracia após o golpe de 28 de Junho, e a administração Obama, não.



Por que não defender a democracia também para o Haiti, mesmo que Washington seja contra?



Mark Weisbrot, doutor em economia pela Universidade de Michigan, é codirector do Centro de Pesquisas Económicas e Políticas, em Washington.



Tradução de Clara Allain.



19 de Janeiro de 2010



Retirado do site do CEPR - Center for Economic and Policy Research

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