Pouco dias depois da eleição de Trump, Gilbert Achcar analisava numa entrevista a AlJazeera a política da nova administração norte-americana em relação ao Médio Oriente, que ela ia ter características de imprevisibilidade, sendo certo que haveria mais restrições à entrada de refugiados sírios nos EUA e também que os palestinianos iriam sofrer com o facto de Netanyahu passar a ter as mãos ainda mais livres.
A resolução 2334 do Conselho de Segurança da ONU
A 23 dezembro 2016, o Conselho de Segurança da ONU aprova, pela primeira vez, uma resolução que condena explicitamente os colonatos israelitas: “Reafirma-se que os colonatos estabelecidos por Israel nos territórios ocupados desde 1967, incluindo Jerusalém Oriental, são ilegais e constituem uma violação flagrante da lei internacional e um obstáculo para uma solução de dois Estados e uma paz firme, duradoira e completa”.
A história à volta desta resolução é bem ilustrativa da política de Trump em relação à Palestina. Numa atitude inédita, no período de limbo antes da tomada de posse, Trump tudo fez para impedir que o Conselho de Segurança da ONU votasse a resolução. Irritado com Obama e pressionado por Netanyahu, Trump conseguiu do seu aliado Sissi a garantia que o Egipto retiraria o projecto de resolução. Retomado, entretanto, pela Nova-Zelândia, a Malásia, a Venezuela o Senegal, o projecto foi aprovado com 14 votos a favor, zero contra e com a abstenção dos EUA. Samantha Power, representante dos EUA no Conselho de Segurança, explicou a abstenção com o argumento de que “não eram necessários mais colonatos para garantir a segurança de Israel” (sic). Mas mais uma vez nada acontecerá a Israel se não a cumprir, como anunciou após a votação e como já acontece com dezenas de outras resoluções desde 1947. (resoluções da ONU não acatadas por Israel)
No entanto, a sua aprovação dá mais força aos activistas da solidariedade com a Palestina. A irritação de Israel e a acusação de traição pelos EUA mostram que, apesar das suas limitações, a resolução não é inócua.
Os colonatos
A verdade é que desde o início do ano, os colonatos não param de crescer (tanto em número de pessoas como em área ocupada). Já após a tomada de posse de Trump, Israel anunciou o início da construção de mais 3 mil casas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, ver também o artigo de Dominique Vidal “Cisjordânia: da colonização à anexação” no Le Monde Diplomatique de Fevereiro).
É importante que se tenha uma ideia que hoje em dia os colonatos representam uma população total de cerca de 400 mil na Cisjordânia (a que se somam os 200 mil israelitas em Jerusalém Oriental). Não se trata de meia-dúzia de casas espalhadas na paisagem. Alguns são cidades de 20 mil ou 30 mil habitantes, só israelitas judeus. Na Cisjordânia ocupada, há estradas e mesmo autoestradas que ligam entre si os colonatos e os ligam a Israel, mas por onde os palestinianos não estão autorizados a circular. À ocupação junta-se a descontinuidade territorial. À descontinuidade territorial junta-se o projecto, agora bem real, de anexação da Cisjordânia, desde que o Parlamento israelita aprovou uma lei que legaliza os colonatos nos “postos avançados”.
Ao mesmo tempo, a destruição de casas palestinianas em Jerusalém Oriental é alarmante. Segundo a organização OCHA (United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs), desde o início de 2017 e até 20 de Fevereiro, já houve 33 demolições de casas (em 2016 tinham sido 190). Os palestinianos de Jerusalém Oriental chegam a ser obrigados a destruir as suas próprias casas.
A Palestina não é só a Cisjordânia ocupada onde se instalou um regime de Apartheid. É também Gaza, cercada desde 2007. E os palestinianos a viver em Israel como cidadãos de segunda. E os palestinianos refugiados sobretudo (mas não só) em países vizinhos (Líbano, Jordânia, Síria), perfazendo pelo menos 5 milhões.
Obama e Trump, continuidades e descontinuidades
Para os saudosistas de Obama, é bom recordar que o presidente cessante foi o que ofereceu maior ajuda a Israel em toda a história. No Verão de 2016, Obama assinou com Netanyahu um memorando que prevê uma ajuda militar de 38 mil milhões de dólares para a próxima década, ou seja, mais de um milhão de dólares por dia, sem contrapartidas por parte de Israel no que diz respeito aos palestinianos.
É verdade que o acordo com o Irão sobre redução bilateral de armas nucleares (em troca da baixa das sanções internacionais) irritou profundamente Israel. É verdade que Obama fez algumas declarações (platónicas) sobre os direitos dos palestinianos. Mas nos momentos chave esteve ao lado de Israel. Foi assim em 2008/9, após a sua eleição, quando Israel levava a cabo a operação Chumbo Fundido contra Gaza, que resultou na morte de 1400 palestinianos, sobretudo civis. E em 2014, quando Israel bombardeou Gaza durante 51 dias, provocando a morte de cerca de 2500 palestinianos (mais de 500 crianças) e a destruição de casas, hospitais e escolas num território cercado desde 2007, Obama só criticou Israel quando as escolas da ONU foram bombardeadas, e após Ban Ki-Moon se ter pronunciado. Embora avisando que Israel deveria evitar ataques a civis, reiterou o direito de Israel a se defender.
Por isso, a próxima vez que Israel bombardear a faixa de Gaza, a zona do mundo com maior densidade populacional (1.8 milhões para uma área de 365 quilómetros quadrados, ou seja, do tamanho do concelho de Tomar), não nos esqueceremos destes 38 mil milhões de dólares.
Complexidades e interrogações do futuro próximo
2017 é ano de muitas efemérides: 100 anos da declaração Balfour, 70 da partição da Palestina e 50 da guerra de 1967 que traçou novas fronteiras, que Israel ignorou. Datas que Israel irá certamente comemorar. Para os palestinianos não há nada para celebrar, a não ser a sua resiliência e a sua capacidade imensa de resistir.
Na era Trump, certo é que há ainda muitas incógnitas. Num mundo em que a ordem é desordem, em que novas constelações geoestratégicas se estão a formar, como a aliança de Trump com Putin, ainda não conhecemos o puzzle completo nem a sua tradução no que diz respeito ao Médio-Oriente, mas já há muitos indícios que para os palestinianos as coisas só podem piorar. Desde o anúncio-provocação que o futuro embaixador norte-americano (David Friedman, defensor dos colonatos e amigo da extrema-direita israelita) se irá instalar em Jerusalém, às grotescas declarações aquando da visita de Netanyahu à Casa-Branca (que Robert Fisk tão bem analisa), parece claro que a nova administração não perde uma oportunidade de reafirmar a sua aliança com Netanyahu e o apoio à sua política de anexação da Cisjordânia.
Se Trump aparentemente diz e se desdiz sobre a solução de dois estados ou de um só estado, não é por ignorância ou lapso. Mesmo se no mesmo discurso faz de conta que adverte Netanyahu sobre os colonatos, do que ele fala realmente é da solução de um só estado, o de Israel, com a anexação total da Cisjordânia e de Jerusalém-Oriental.
Na era Trump, como era previsível, os EUA aumentam o orçamento para a defesa, ao mesmo tempo que as agências dedicadas às mudanças climáticas, à luta contra antissemitismo e contra a islamofobia vão sofrer cortes drásticos ou mesmo deixar de existir.
A par com a proibição de entrada nos EUA de cidadãos de sete países muçulmanos, decretado por Trump, os actos de antissemitismo têm aumentado, sendo já numerosos os casos de vandalismo nos cemitérios judaicos. Mas nos EUA da era Trump há novas solidariedades a crescer, e todas são imprescindíveis. Numa iniciativa sem precedentes, Linda Sarsour (palestiniana, uma das organizadoras e oradoras da Marcha das Mulheres em Washington a 21 de Janeiro) e Tarek El-Messidi (ativista social muçulmano-americano) lançaram uma campanha de fundos para reparar o cemitério judaico de St.Louis. A resposta foi tão extraordinária que em menos de 48h, a recolha superou em 3 vezes o objectivo, razão para o “excedente” estar agora a ser usado para a reparação de outros cemitérios judaicos vandalizados, como o de Filadélfia.
Cabe a tod@s @s activistas aprofundar a solidariedade com a Palestina e também com as organizações que, em Israel, defendem os direitos dos palestinianos. Denunciar todos os dias o cerco a Gaza, a ocupação, a expansão dos colonatos, os muros, os checkpoints, a humilhação, as prisões, as arbitrariedades. Recusar a impunidade de Israel. Todos os dias. Cada dia deste ano de 2017.
Alda Sousa é professora universitária e dirigente do Bloco de Esquerda