Nada de bom pode sair da política de Trump para a Palestina

Quando o novo presidente se instalou na Casa Branca, não faltava quem depositasse todas as esperanças na virtude tranquilizante que supostamente possui a magistratura mais poderosa do planeta. Por António Louçã.

24 de fevereiro 2017 - 16:35
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O presidente norte-americano disse simplesmente que tanto lhe dá haver na Palestina um Estado ou dois Estados, desde que seja uma solução acordada pelas duas partes. Foto de Gage Skidmore. Flickr
O presidente norte-americano disse simplesmente que tanto lhe dá haver na Palestina um Estado ou dois Estados, desde que seja uma solução acordada pelas duas partes. Foto de Gage Skidmore. Flickr

Aguardava-se ansiosamente que Donald Trump entrasse na rotina do establishment político. Rodeado de conselheiros sábios e de funcionários com uma longa tarimba, ele não tardaria em baixar a crista – dizia-se.

Em escassas semanas, o novo presidente partiu louça suficiente para demonstrar a vacuidade dessas expectativas. Quem lhes tinha dado crédito, inquietou-se novamente com o que ia sucedendo todos os dias. Pelo contrário, quem tinha começado a vir para a rua, especialmente na grande manifestação contra a misoginia trumpista, sentiu-se confirmado por não ter permanecido à espera. A cavalgada de decisões, de caprichos, de provocações e de agressões cometidas por este fenómeno insólito que agora habita a Casa Branca não deixa, obviamente, outra alternativa.

Não é a acomodação de Trump à rotina, e sim a sua iconoclastia, que o faz aparecer como alegado portador de receitas eficazes

O dossier da Palestina é, provavelmente, o primeiro em que começa a insinuar-se uma suposta inofensividade de Trump com o fundamento diametralmente oposto: ele é tão insólito que poderá trazer soluções num assunto onde até agora nada tem havido senão um longo, interminável, cada vez mais desesperante impasse. Não é a acomodação de Trump à rotina, e sim a sua iconoclastia, que o faz aparecer como alegado portador de receitas eficazes.

Assim, Ian Lustick, professor na Universidade da Pensilvânia e especialista do Médio Oriente, publicou no Guardian um artigo sintomático em que considera as palavras de Trump por ocasião da visita de Netanyahu, como “um passo importante na direcção certa”. E o mérito que lhe atribui reside precisamente na capacidade para “empurrar as partes a pensarem sobre os princípios que declaram [paz e democracia] em termos radicalmente novos”.

O que havia então de “radicalmente” novo no discurso de Trump ao lado de Netanyahu? O presidente norte-americano disse simplesmente que tanto lhe dá haver na Palestina um Estado ou dois Estados, desde que seja uma solução acordada pelas duas partes.

Lustick considera que desse modo “a Casa Branca excluiu a opção de ‘gerir o conflito’ e transformou a ‘solução de um Estado’ (…), de pesadelo ou visão utópica que era, num quadro que não é menos imaginável nem menos merecedor de ponderação do que o quadro assente em duas arenas políticas separadas”.

Além disso, “ao sinalizar a sua recusa do processo de paz tal como ele tem sido conduzido sob os três últimos presidentes dos EUA – um carrocel de movimento infinito, que consome o tempo sem qualquer progresso real –, os EUA ajudaram pela primeira vez a fazer israelitas e palestinianos pensarem criativamente sobre o seu futuro”.

Quadro deprimente”

O segredo para a sugestão de Trump parecer tão atraente está na sua novidade e nos seus “termos radicalmente novos”, tal como o segredo da sua votação surpreendente – embora minoritária – foi a imagem de romper com tudo aquilo que Clinton queria manter e continuar.

Na verdade, custa a imaginar algum quadro mais deprimente que o da Palestina actual. À guerra de 1948, que deixou nas mãos da minoria israelita 78 por cento da Palestina histórica, seguiu-se a guerra de 1967 que lhe permitiu a ocupação dos restantes 22 por cento (além do Sinai e dos Golan). Os 22 por cento remanescentes (Jerusalém oriental, Gaza e Margem Ocidental) foram alvo da cobiça israelita, mas não muito mais do que isso, até ser assinado o Acordo de Oslo e se declarar pomposamente inaugurado o chamado “processo de paz”.

Às décadas iniciais de ocupação, seguem-se décadas de demolições, expulsões, expropriações e devastação – tudo o que seja necessário para dar lugar aos colonos

A partir daí, com o consentimento de uma direcção palestiniana cada vez mais corrupta e de uma opinião pública mundial cada vez mais anestesiada, Israel lançou-se à colonização acelerada do resto da Palestina. Às décadas iniciais de ocupação, seguem-se décadas de demolições, expulsões, expropriações e devastação – tudo o que seja necessário para dar lugar aos colonos.

O Acordo de Oslo era, para qualquer observação minimamente atenta, um nado morto sem qualquer préstimo para o povo palestiniano. Mas, para a colonização israelita, era uma muito útil folha de parra, que lhe permitia prosseguir o roubo de terras e águas palestinianas tendo em fundo o canto de sereia do “processo de paz”.

Agora, quando alguém aparece a dizer que os dois Estados previstos em Oslo não são obrigatoriamente a fórmula salvadora, a declaração soa como “o rei vai nu” e faz o efeito de uma pedrada no charco. O aparelho de colonização acarinhado pelos dois Bush, pelos dois Clinton e por Obama, esse, alarma-se naturalmente, porque já se habituou a pilhar e roubar tranquilamente invocando a palavra mágica: “Acordo de Oslo”.

E qualquer breve leitura da imprensa de direita israelita, do Jerusalem Post ao Yedioth Aaronot, revela imediatamente a viragem: os mesmos plumitivos que ainda ontem ameaçavam castigar o povo palestiniano, cancelando-lhe os projectos de um Estado próprio, apressam-se hoje a repetir a ladainha de que qualquer a solução deve passar por dois Estados. O próprio alarme da direita colonialista israelita alimenta o optimismo ingénuo de um medio-orientalista como Lustick. O que é assustador para o aparelho de colonização parece ser bom para o povo palestiniano.

O discurso sobre Oslo e o “Estado palestiniano” deve, sem dúvida, morrer a morte inglória de uma ideologia que, no melhor dos casos, asfaltava o caminho para um bantustão com capital em Ramallah. E a corrupta Autoridade Palestiniana deve, sem dúvida, ser enterrada na mesma cova funda onde ficarem as ilusões de ter um Estado com bandeira, moeda, exército, porto, aeroporto e toda a água do seu subsolo.

A bota do sionismo

Mas seria uma perigosa ilusão pensar que, ao dissipar-se a mistificação de Oslo e ao cair a folha de parra do “processo de paz”, é um Estado binacional, laico, democrático e não-racista que está no horizonte. Quando Trump admite um Estado só em toda a Palestina histórica, está apenas a dar luz verde a Netanyahu para anexar o resto de Jerusalém e da Cisjordânia. E nem lhe passa pela cabeça exigir a Netanyahu que reconheça ao povo palestiniano os mesmos direitos que aos cidadãos definidos como judeus.

A perspectiva que desenham Trump e Jared Kushner para a Palestina é unificá-la sob a bota do sionismo. O “Estado judeu” deverá manter-se como tal, mesmo anexando os territórios todos de uma maioria palestiniana. Para os colonizadores, como dizia Himmler, é possível anexar territórios mas não é possível anexar populações.

Os colonizadores não querem aceitar o princípio “uma pessoa, um voto” e, temerosos de uma sublevação internacional chamada BDS, tão-pouco querem correr o risco de ser estigmatizados como um novo regime de apartheid. Resta-lhes a solução de expulsarem o povo palestiniano da sua terra. Sorte desse povo, diria o cínico historiador pós-sionista Benny Morris, porque quem é expulso não acaba na câmara de gás e a limpeza étnica é, supostamente, uma alternativa benigna ao extermínio em massa.

A solução “radical” que Trump sugeriu aponta para uma limpeza étnica mais mortífera ainda do que a hecatombe sofrida pelos refugiados na travessia do Mediterrâneo. Depois de ver a sua terra retalhada por muros e check points, na esperança vã de que um dia esse queijo suíço esburacado por todos os lados pudesse tornar-se o seu Estado-nação, o povo palestiniano poderá assistir agora a uma viragem destinada a expulsá-lo sistematicamente do seu país.

O balão de ensaio lançado por Trump seria nesse caso o primeiro passo para fazer aceitar a Guterres e à sua possível vice-secretária, a criminosa de guerra Tzipi Livni, bem como à ONU em geral, o esbulho definitivo da terra palestiniana. Para que um dia não reste apenas do povo palestiniano a pálida recordação que hoje resta dos índios norte-americanos, é hora de boicotar, desinvestir e sancionar.

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António Louçã é jornalista

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