“The Post”: quando a imprensa esteve do lado certo da História

O filme de Steven Spielberg transmite-nos a vertigem do tempo sentida a partir do aproximar da hora do fecho de edição, o momento certo para a decisão acertada, a História a acontecer… é um filme que nos coloca, incontornavelmente, entre o passado e o futuro, por isso a urgência. E a urgência é Trump, a guerra, a verdade e a república.

18 de fevereiro 2018 - 17:53
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No centro, Tom Hanks (Ben Bradlee) e Meryl Streep (Katharine Graham) aguardam a decisão do Supremo Tribunal sobre a publicação dos Documentos do Pentágono

Urgência. É esse o sentimento que permanece em nós, durante e após o visionamento do último filme de Steven Spielberg, The Post”. Claro que o que nos fica, ficará de muitas maneiras, de acordo com as referências que habitamos, as expectativas que transportamos e também considerando o modo como o próprio mundo, nos seus possíveis e impossíveis, nos inquieta. Seja como for, trata-se de uma história incrível. A vertigem do tempo sentida a partir do aproximar da hora do fecho de edição, o momento certo para a decisão acertada, a História a acontecer… é um filme que nos coloca, incontornavelmente, entre o passado e o futuro, por isso a urgência. E a urgência é Trump, a guerra, a verdade e a república.

É certo que este tema merecia mais cinema, mais subtileza, arte e incisão, mas a urgência… As críticas, nacionais e internacionais, parecem divididas entre o deslumbramento e a desilusão, entre o elogio do virtuosismo de Spielberg e da sua equipa, e a crítica da sua preguiça ou prevalência no clichê estilístico. Poderemos sempre avaliar o “The Post” com base no grau de rebeldia ou refinamento de Spielberg, que o realizou, afinal, no espaço de apenas um ano. Deixo aqui algumas notas desassombradas. Interessa-me antes debater o que fica em nós e o seu alcance, mesmo que o veículo seja a convenção cinematográfica e um pathos mais imediato e de “massas”, esse que conjuga habilmente a adrenalina e o drama.

O filme coloca-nos em 1971 e no centro do processo de decisão do The Washington Post sobre a publicação de parte dos chamados “Documentos do Pentágono” [Pentagon Papers], um relatório secreto de milhares de páginas que condensava informação sobre a presença dos EUA no sudeste asiático, desde a II Guerra Mundial, em particular, sobre o esforço de guerra no Vietname. Na ficção histórica de Steven Spielberg, a trama constrói-se ao ritmo de um thriller que vagueia entre a liberdade de imprensa e o autoritarismo da Administração de Nixon, mas centrado na figura de uma mulher que surge, enfim, emancipada e usando um maravilhoso caftan dourado - como um sultão impossível, reinando sobre homens e sob o signo da justiça. Denunciando ainda a relação de proximidade e cumplicidade entre o poder político e os editores das grandes redacções, Spielberg acentua também, como seria de esperar, a tonalidade moral da decisão central que determina o desenlace do filme. Aí, o pessoal e o político confundem-se e contagiam-se mutuamente, acrescentando-se uma interessante dimensão de contradição a esta trama que é ficcional, mas transbordante de realidade.

Tom Hanks, Meryl Streep e Steven Spielberg

Tudo começa, e começou, com o corajoso ato de Daniel Ellsberg: tendo acesso aos Documentos, por ser um dos investigadores implicados, tornou-se pacifista e resolveu fotocopiá-los e entregá-los ao The New York Times. A 13 de junho desse ano, o Times inicia a publicação e as sucessivas manchetes vão desmascarando e desmentindo as narrativas e os factos que durante anos legitimaram a intervenção no Vietname. Afinal, desde o início, sabia-se que era uma guerra perdida e nunca se soube qual a sua utilidade. O Times acabaria impedido de voltar a publicar, por “razões de segurança nacional”, tendo sido acusado de violação da Lei da Espionagem. Pouco tempo depois, o The Washington Post publica outros excertos dos Documentos e o Supremo Tribunal é chamado a intervir – foi a Primeira Emenda da Constituição Americana que prevaleceu. Sabemo-lo através de uma jornalista e não é por acaso que é ela que transmite a decisão do juiz. Nesse momento, a sua voz torna-se símbolo de liberdade: “A imprensa deve servir os governados e não os governantes”.

Considerando os elementos claramente sublinhados por Spielberg compreendemos melhor a sua urgência. Centrando o filme no processo de empoderamento e afirmação da então Presidente da Administração do Post, Katharine Graham (a genialidade de Meryl Streep permite a esta personagem, e ao seu estatuto no filme, uma densidade e expressividade marcantes), desenha-se o augúrio das emancipações do presente e das lutas protagonizadas por mulheres. Contra Nixon e para pôr fim à guerra, Katharine disse “publique-se”. Hoje, elas ocupam as ruas e marcham contra Trump. Sim, não me parece que seja um pormenor despiciendo o facto da figura de Nixon surgir (quase) sempre como um prenúncio de Trump. O propósito é esse mesmo. Contudo, o símbolo poderia ser mais profundo e não mero decalque. É aqui que o valor retórico do filme perde poder, isto é, quando a simplificação da mensagem se torna pura arrogância, porque se subestima o sentido crítico do público.

Por fim, o elogio da liberdade de imprensa e do seu precioso papel numa democracia – realizado através da invocação de um dos mais dolorosos episódios da história ainda recente dos EUA, a guerra no Vietname – The Post” é, sem dúvida, uma tomada de posição sobre a vida e a política nos tempos que correm. Num mundo globalizado, as “fake news”, os “alternative facts” e as doutrinas da pós-verdade influenciam o curso das nossas vidas e o destino do planeta, e é preciso combatê-las. Porém, a diferença entre verdade e mentira mantém-se e talvez seja urgente lembrar simplesmente isso. Num texto que escreveu a propósito dos Documentos do Pentágono1, Hannah Arendt descreve “o direito à informação factual não-manipulada” como uma liberdade política essencial para que a própria “liberdade de opinião” não se torne uma “cruel farsa”. Isto é o coração da mensagem de Speilberg. Na realidade, o filme The Post” permite aceder a um desse momentos de ouro em que a imprensa esteve do lado certo da História, mas nem sempre foi ou é assim. Num passado mais recente, por exemplo, o próprio The New York Times viu-se obrigado a publicar um mea culpa, justificando a sua cobertura sobre “os factos” que justificaram a invasão do Iraque, em 2003. Invocando novamente o texto de Arendt e parafraseando as suas palavras, a imprensa pode ser mesmo o quarto poder, mas desde que se mantenha “livre e incorruptível”. Talvez seja algo em que não deveríamos apostar, mas não me parece que possamos pensar noutro sentido.

Uma nota ainda sobre o jogo do tempo, que esconde e desvela camadas de sentido no filme, entre imprecisões e impressões muito fortes, numa densa memória do presente. Por um lado, “The Post” coloca-nos no passado e, aqui com algum brilhantismo, deliramos com a aceleração das máquinas nas salas das reprografias, a complexidade da distribuição dos jornais e a precisão dos caracteres de chumbo, letra a letra, reportando o estado do mundo. São imagens-vertigem que contrastam com o clique rápido e o estatuto instantâneo da realidade online e digital. Também é curiosa a acentuação implícita do uso imperativo e imprescindível do telefone, ou da chamada-conferência improvisada entre o telefone da sala e o da cozinha, e o que isso diz sobre o nosso admirável mundo novo dos smartphones.

No entanto, na distância criada por uma história contada no passado, algo da urgência do presente poderá perder-se. Por exemplo, há um momento no filme em que, após um jantar de classe alta e instruída, as mulheres retiram-se para a sala-de-estar, para que os homens possam falar de política. Numa entrevista conjunta com Tom Hanks (que interpreta, com um rigor expressivo, o papel de Ben Bradlee, editor-chefe do Post) e Meryl Streep, o primeiro comenta, a certa altura, que não sabia que tal poderia ainda ser possível, referindo-se ao tempo do filme, os anos 70 do século XX. Meryl acaba por lembrá-lo que só quando chegou à universidade pôde, pela primeira vez, ter um cartão de crédito, sem precisar de uma assinatura de um membro familiar do sexo masculino. É certo que, desde então, os meios de comunicação e a tecnologia de informação mudaram drasticamente. Contudo, as transformações sociais têm um outro tempo, menos veloz, e é a política que as acelera (não a tecnologia), inaugurando novos começos, ou seja, caindo como uma pedra num charco de água estagnada.


1Hannah ARENDT, “Lying in Politics”, in Crises of the Republic (New York: Harcourt Brace & Company, 1972).

Por Sofia Roque.

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