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"Por que não vou combater em Gaza"

O portal Mediapart publicou o testemunho de um "refuznik", cidadão israelita que fugiu para a Holanda para não reintegrar o exécito e combater em Gaza na operação que já fez mais de mil mortos em 20 dias.
Soldados israelitas junto à fronteira da faixa de Gaza. Foto Ated Safadi/EPA

Chama-se Gilad, tem 32 anos, habita em Tel Aviv, é reservista do exército e fugiu para a Holanda, na terça-feira, dia 22, cinco dias depois de ter recusado a convocatória do exército israelita para se juntar às tropas que agora combatem em Gaza. A partir dessa data, faz parte dos chamados "refuznik", um movimento que foi crescendo ao longo dos últimos anos. Gilad corre o risco de vários anos de prisão, quando voltar para Israel. Quando aceitou realizar a entrevista, enviámos-lhe o questionário por e-mail, na quarta-feira à tarde. Estas são as suas respostas.

Porque desertou?

Tomei a decisão de forma apressada. Abandonei o país cinco dias depois de ter sido convocado para o exército. Cinco dias durante os quais tratei de explicar aos meus superiores as razões da minha recusa em implicar-me numa campanha militar sanguinária, que se podia ter evitado facilmente e cujas principais vítimas são civis. De maneira pouco surpreendente, estas explicações não os impressionaram. Nenhum exército permitiria a insubordinação.

Estou disposto a ir para a prisão, mas espero estar ausente durante o conflito, aguardando ser julgado, quando o espírito militarista dos tempos de guerra se acalmar, o que poderá ser favorável. Mesmo assim, não tenho a certeza se no final poderá acontecer-me o contrário e ser prejudicado.

Realizei o serviço militar numa divisão blindada situada na Cisjordânia, durante o apogeu da IIª Intifada. Era jovem e, nessa época, a análise que fazia da situação não era tão clara como a que faço agora. Era consciente que Israel tratava de maneira injusta e injustificável os Palestinianos, mas acreditava – e continuei a acreditar, anos depois de concluir o meu serviço militar – que se tratava dum "lapsus" nos processos de paz.

Quando o exército foi buscá-lo a casa, justamente na véspera dos cancelamentos dos voos das companhias internacionais sobre Tel Aviv, já tinha partido para a Europa. Conte-nos como foi a fuga.

Não há muito que contar: foi-me transmitido um ultimato, uma hora limite para entrar no quartel e enquadrar-me na minha unidade; e eu apanhei o último voo antes que expirasse o prazo (talvez por isso, não tenha sido parado na fronteira). O exército foi buscar-me a casa, umas horas depois, mas eu já estava na Europa.

Onde e em que tipo de unidade realizou o serviço militar (em Israel, dura três anos)? Durante o mesmo, esteve na Cisjordânia e em Gaza? Se foi assim, que sentimentos, que análise faz dessa experiência?

Realizei o serviço militar numa divisão blindada situada na Cisjordânia, durante o apogeu da IIª Intifada. Era jovem e, nessa época, a análise que fazia da situação não era tão clara como a que faço agora. Era consciente que Israel tratava de maneira injusta e injustificável os Palestinianos, mas acreditava – e continuei a acreditar, anos depois de concluir o meu serviço militar – que se tratava dum "lapsus" nos processos de paz. Pensava que Israel estava interessado em pôr fim a este longo conflito e que, uma vez superados os riscos para a segurança israelita, se poderia dar aos Palestinianos a sua independência e os seus direitos. Os anos decorridos, depois do fim da segunda Intifada, foram caraterizados por uma calma quase sem precedentes na Cisjordânia, por parte dos Palestinianos a troco de nada, convenceram-me que o único interesse de Israel é intensificar a colonização dos territórios palestinianos, aumentar a opressão do povo palestiniano e suprimir de forma brutal todo o tipo de resistência.

Que pensa do atual conflito? Considera que é necessário?

O conflito atual não é necessário em absoluto. O governo israelita tinha muitas formas de distender o conflito com o Hamas, ainda que, na data de hoje, não seja possível um acordo definitivo. Depois da queda da Irmandade Muçulmana, no Egito, e da precária situação de Bachar al-Assad, na Síria – os dois principais patrões do Hamas – este movimento está muito debilitado. Tanto assim, que aceitou colaborar com a Al Fatah num governo de unidade nacional fazendo importantes concessões (entre elas, outorgar a Mahmoud Abbas o mandato de continuar as conversações com Israel). Em vez de aproveitar esta oportunidade para moderar o Hamas e reforçar os partidários da paz na direção palestiniana, Israel fez o contrário, desengajando-se do processo de paz. E não é a primeira vez que atua desta forma.

Mas, mais geralmente, o Hamas deu provas de ser um grupo fiável, que respeitava todos os cessares-fogo anteriores. Poderia ter sido assinado um acordo parecido poucos dias antes de estalar este conflito, ainda que só pudesse sobreviver se acompanhado dum processo diplomático com Abbas, do qual Netanyahu foge como da peste. Mesmo que o regime palestiniano não seja democrático, a sobrevivência da liderança palestiniana depende da opinião pública: no momento em que o povo der conta que a abertura para com Israel não resultou, vergará os ombros ao Hamas. Na medida que não exista esse horizonte, alinha-se com o Hamas. É tão simples como isso.

Atualmente, qual é o problema para não servir no Tsahal (exército israelita) e, sobretudo, não ir para Gaza?

Sobretudo é não apoiar essas medidas brutais que, como tratei de explicar, podiam ter sido evitadas facilmente. O que me incomoda é que a única política de Israel para com Gaza é a de massacrar em cada dois anos sem oferecer nenhuma alternativa. A morte de centenas de inocentes é horrível. Sobretudo, quando pode ser evitada.

Considera o passo dado como um ato político?

Não, sobretudo trata-se dum ato moral, mas não pode ser desligado do contexto político. Não sou pacifista. Creio que ás vezes as guerras são necessárias. Mas as guerras que se realizam para compensar uma política desastrosa, em detrimento de inocentes, são imorais.


Sendo a primeira testemunha (de recusa) à ofensiva israelita "Margem protetora", reconhece-se no movimento refuznik?

Não faço parte de nenhum movimento de rezfuzniks. Trata-se dum ato pessoal.

Que futuro vê para o conflito? Pensa que se pode prolongar no tempo?

Não tenho nenhuma ideia. Creio que tanto o Hamas como Israel serão obrigados a pôr-lhe fim, mas esta previsão foi desmentida ao longo dos últimos 18 anos. Não obstante, qualquer que seja o fim, sem haver avanços diplomáticos, há novas guerras. Por isso, eu oponho-me também à ineficácia a longo prazo desta campanha militar.

Que pensa das mais de 600 vítimas palestinianas, das quais 80% são civis e, também, dos 28 soldados e dos três civis israelitas?

Evidentemente, trata-se dum conflito assimétrico. Israel dispõe de avançados meios de proteção e de agressão que os palestinianos não têm. O Hamas é um grupo cínico e extremista, que prefere a luta à segurança da sua população; consideram as vítimas como um sacrifício e os soldados mortos como uma vitória. É deplorável que Israel lhes dê de bandeja o que eles querem.

Como pensa voltar? Que riscos corre?

O exército é totalmente imprevisível. Dum lado, eu poderia ser julgado e condenado a uma pena de prisão. Mas disseram-me que, oficiosamente, o exército quer dar a menor publicidade possível aos refuznik, sobretudo pela amplitude que este fenómeno adquiriu. É possível que não queira fazer nada.


Publicado em Mediapart. Tradução: António José André

Nota do tradutor: Os refuznik são objetores de consciência israelitas que recusam servir o exército. Alguns deles recusam, sobretudo, servir nos territórios palestinianos. O movimento nasceu, em 1979, quando Gadi Algazi recusou servir durante o seu serviço militar nos territórios ocupados da Palestina. (Wikipédia)

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