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“Israel atacou para travar a reconciliação palestiniana”

Especialista do mundo árabe, Gilbert Achcar fala nesta entrevista sobre a situação em Gaza e a posição do Hamas, apanhado entre o ataque israelita e a política de aproximação à Autoridade Palestiniana.
Gilbert Achcar. Foto Revolta Global

Do ponto de vista político, como estava o Hamas antes da ofensiva israelita?

O Hamas encontrava-se numa disposição favorável, que se traduzia na reconciliação com a Autoridade Palestiniana e na aceitação de um governo de unidade, embora este não fosse de todo paritário. O Hamas não estava verdadeiramente representado e as posições tomadas eram alinhadas com as de Mahmoud Abbas [Presidente palestiniano, representante da Fatah]. Esse gesto de aproximação foi motivado pela situação precária do movimento, nomeadamente após os acontecimentos no Egito. Depois do derrube de Mohamed Morsi [o antigo Presidente egípcio, islamista], o novo poder militar é hostil ao Hamas por causa das suas ligações à Irmandade Muçulmana, que sofre uma repressão ainda mais terrível que sob o regime de Mubarak.

A posição favorável do Hamas à revolta na Síria não terá também contribuído para o seu isolamento, na medida em que passou a estar em oposição ao Irão, que lhe dá um importante apoio financeiro?

O regime sírio não diz grande coisa ao Hamas, mas o Irão sim. Houve um arrefecimento substancial, mas o Hamas procura agora uma reconciliação. A questão financeira é a razão do acordo com Ramallah [capital administrativa da Autoridade palestiniana], e uma das consequências seria o pagamento dos salários aos funcionários de Gaza. Israel bloqueou tudo isso e manifestou a sua oposição veemente desde o início. A ofensiva israelita não é nenhuma resposta a qualquer radicalização dos Palestinianos ou do Hamas. Pelo contrário, é uma ofensiva contra as concessões feitas pelo Hamas e contra a reconciliação palestiniana.

Ficámos com a impressão de que Netanyahu tinha explorado a morte dos três adolescentes israelitas a 12 de junho…

O governo de Netanyahu aproveitou essa ocasião para declarar que o Hamas era o culpado, sem ter a mínima prova disso. O seu objetivo era voltar a prender grande parte dos militantes que tinha libertado em troca de Gilad Shalit [o soldado israelita preso pelo Hamas e por fim libertado em troca de cerca de mil prisioneiros políticos palestinianos em 2011].

Como tem acontecido em circunstâncias semelhantes, esta ofensiva israelita não irá reforçar os laços entre o Hamas e a população de Gaza?
 
Houve uma acumulação de rancores contra o Hamas, o que é perfeitamente compreensível. As pessoas atribuíram a sua miséria e dificuldades à presença do Hamas, sobretudo desde a viragem no Egito.  Para quem vive em Gaza, o Egito é fundamental. E saber que os seus governantes são a nova “besta negra” do regime do Cairo não é nada fácil. Por outro lado, a população de Gaza também sabe muito bem que a ofensiva israelita acontece no momento em que o Hamas iniciava o ponto de viragem que todos desejavam. Ou seja, uma reconciliação e uma mudança de rumo para uma linha mais moderada, para sair da asfixia que tem sido a sua sina há tanto tempo.

Alguns meios de comunicação tendem a fazer a amálgama entre o Hamas e a nebulosa islamista. Não é necessário lembrar que apesar do seu caráter conservador e reacionário, este movimento também tem um enraizamento verdadeiro na história recente da Palestina?

Sim, essa é a diferença, por exemplo, entre a Irmandade Muçulmana no Egito e a al-Qaeda ou o Estado Islâmico [o EI, movimento na origem do califado nos territórios sírios e iraquianos]. Há uma diferença evidente entre os movimentos de massas que têm uma abordagem essencialmente política e as organizações fundadas na violência e que não hesitam em recorrer ao terrorismo.

O Hamas é apresentado em muitos media como um corpo estranho no seio da população civil palestiniana. No entanto, ele faz totalmente parte dela…

Como todas as organizações de massas, o Hamas recruta graças à ideologia, mas por outro lado, e em grande medida, graças aos serviços sociais que presta. Pois ele recruta, como toda a oposição política, em função do descontentamento contra o inimigo e contra os rivais que não são mais convincentes, como foi o caso da OLP. O Hamas nasceu na primeira intifada, em 1987, por entre o descrédito da OLP, expulsa do Líbano e reconciliada com a Jordânia. O fracasso de Oslo, evidente a partir de meados dos anos 1990, e a frustração que isso gerou, contribuíram mais para o seu enraizamento. Da mesma forma, o descrédito que sofreu Mahmoud Abbas, que foi muito longe em termos de capitulação, e a humilhação que apesar disso Israel lhe infligiu, favoreceram o Hamas.

Não existe um risco de emergência ou mesmo de proliferação de redes jihadistas, menos preocupadas com o destino dos Palestinianos e que poderiam ligar-se a movimentos como o Estado Islâmico?

Sim, isso existe, mas não nos territórios palestinianos. Uma rede terrorista não tem meios pra se instalar nem em Gaza nem na Cisjordânia. Entre as autoridades locais e a ocupação israelita, não são territórios assim tão imensos. No entanto, entre os Palestinianos da diáspora, os que estão nos campos de refugiados, esses movimentos atraem. Os Palestinianos da Síria ou da Jordânia foram capazes de se juntar ao Estado Islâmico. Israel é um fator de radicalização. O seu governo parece ter assumido o lema “Depois de nós, o dilúvio”. Não há qualquer vontade de trabalhar para o longo prazo, mesmo para o futuro das crianças de Israel. Eles estão a acumular tensões e com a proliferação de armas de destruição massiva torna-se elevada a probabilidade de uma catástrofe inominável. Estão a semear o vento de uma tempestade que se arrisca a ser terrível para toda a gente.


Entrevista de Denis Sieffert e Margaux Wartelle. Publicada em Politis. Tradução de Luís Branco.

Gilbert Achcar, cresceu no Líbano, é professor de estudos sobre o desenvolvimento e relações internacionais na Escola de Estudos Orientais e Africanos (EEOA) de Londres e é autor de vários livros, entre eles “The Arabs and the Holocaust: the Arab-Israeli War of Narratives”, Metropolitan Books, Nova Iorque, 2010.

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