Os riscos do populismo no debate europeu

porCecília Honório

Esta vaga populista das últimas décadas parasita com eficácia os equívocos e desilusões da democracia liberal. Por Cecília Honório.

02 de março 2014 - 9:06
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Filip Dewinter do Partido independentista de Flandres Vlaams Belang e Heinz-Christian Strache do partido de extrema-direita FPÖ na conferência de imprensa de apresentação da campanha “Cidades contra a Islamização” na Antuérpia em janeiro de 2008.

Os suiços responderam não, em referendo, à manutenção da abertura das fronteiras aos cidadãos da União Europeia. A Frente Nacional de Marine Le Pen continua a ser apontada como potencial vencedora nas eleições europeias em França, montada no combate ao “monstro da Europa”. Dois exemplos dos estragos do populismo na sua estreita intimidade com a direita, na Europa de hoje.

Alvo de múltiplas análises, o Neopopulismo é muitas vezes visto como sintoma ou doença das democracias liberais maduras nas últimas décadas (não se confundindo nem com as expressões iniciais nos EUA ou na Rússia, nem com as experiências populistas de democracias débeis ou inexistentes).

O populismo coabita, desde a década de 80, com a reconfiguração neoliberal do capitalismo, e o estalar da promessa das décadas do pós-guerra de que o progresso estava ao alcance de todos – o desmembramento do Estado Providência é a sua expressão material.

Como resposta à alternância esquerda-direita, na diluição de fronteiras entre esquerda e direita, o populismo nasce do estado de anomia face à democracia representativa, colhe na abstenção, no desinteresse, na desidentificação com os representantes e partidos do sistema, e é reconhecível mais como cólera do que como ensejo de revolução[1].

Na Europa assistiu-se, desde os meados dos anos 80, à proliferação de movimentos políticos populistas, neopopulistas, nacional-populistas de direita que se impuseram na cena política, explorando a crise de confiança das democracias pluralistas e das elites de governo. Do variado catálogo, consta o CDS de Paulo Portas, visto em 2002 como uma mistura de conservadorismo, liberalismo económico e medo da Europa e da imigração[2].

Esta vaga populista das últimas décadas parasita com eficácia os equívocos e desilusões da democracia liberal. A um tempo, a democratização do liberalismo fez-se sobre a soberania popular - o estado-nação é depositário da soberania do povo). Ora, é no fosso entre eleitos e eleitores, na “frieza” da democracia, que ele se instala procurando recapturar o equívoco fundador – não é à toa que Marine Le Pen clama pela restituição da liberdade e da soberania dos povos.

A distância entre eleitores e eleitos, a indiferença, a abstenção integram o caldo do populismo, o mesmo onde se encontra a “classe política” - esse todo indiferenciado de malfeitores que faz as delícias de tantos, uns sem perceberem os riscos (que ao fundo do túnel está um autocrata), outros convidando até a ciência a legitimar um conceito que não tem qualquer validade. 

No quadro europeu, a debilidade das democracias de tipo delegativo, cujos centros estão fora da delegação - do tratado de Maastrich, ao de Lisboa, ao orçamental, não faltam instrumentos - há quem veja no populismo dos “modernos” não a tradução do protesto de categorias sociais inferiores, mas das médias, que se sentem excluídas face ao reconhecimento social excessivo de toda a panóplia de indigentes das sociedades actuais[3] (lembremo-nos das campanhas anti-RSI ou anti-ciganos).

Na moda, o populismo não se confunde nem com a demagogia nem deve ser entendido como instrumento inócuo que a todos serve e a principal razão reporta-se ao seu sujeito político: o Povo do Populismo é uma entidade orgânica, não se confunde com o conjunto dos cidadãos.

Neste quadro, a promiscuidade do uso do termo e a necessidade de ver a sua rede de relações exige alguma serenidade para melhor se perceberem os riscos.

A componente antissistema do populismo, a vertente anti-partidos, que pode desembocar na caricatura do partido anti-partido, é a que melhor serve a rejeição (ou secundarização) da representação, e com ela se têm desenhado as soluções autoritárias. Será, por exemplo, curioso ver se candidatos de partidos barriga de aluguer, como Marinho Pinto, que se perfilaram numa dura crítica ao sistema e aos seus representantes, estenderão esta matriz na campanha europeia.

Outros elementos compõem a rede, e não menos poderosos, como os que pesam nas emoções: a proposta de fusão emocional do líder e do povo, que só ele entende, para combater a sobreinstitucionalização das democracias liberais, vista como mecanismo de excelência das elites corruptas; a redução da realidade entre bons e maus, amigos e inimigos, muitas vezes pelo nacionalismo e pela xenofobia.

O esquema político-ideológico do populismo possibilita o carácter imediato da representação-incarnação pelo líder, da recusa das mediações – o líder é a voz do povo. E são todos homens simples, porque o antielitismo é-lhe vital. Por outro, a discussão não se faz sem a telegenia. Com a televisão, a fusão, do corpo, da imagem, do espectador, está garantida; as emoções ganham às palavras e a analogia ignora a lógica. E tem, também, a inequívoca qualidade da ventriloquia: essa notável capacidade de sustentar, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário[4], com retórica de esquerda e práticas de direita, na tentativa de superação do binómio esquerda-direita.

Cabem ainda dois importantes ingredientes no pacote: o complot e o milagre – os maus enganaram voluntariamente o povo, traíram-no, mas o milagre é essa possibilidade de criar espaços de convergência entre privilegiados e excluídos.

A questão, hoje e aqui, é saber até onde o populismo pode ir e se é absorvido pelo sistema se tem capacidade própria de transfiguração, se como tentação para os desiludidos da política parlamentar, nos sentamos sobre um vulcão[5] e se os blocos centrais correm riscos de vida.

Por cá, a mentira da falta de dinheiro para pagar salários como justificação da intervenção externa, o milagre económico, o sofrimento redentor dos trabalhadores, desempregados e pensionistas, o carácter salvífico da intervenção da Troika, e a sua saída na aparentada da Restauração e da coça aos espanhóis, na versão Portas, fazem parte do pacote de sobrevivência da maioria. Mas as europeias dirão o que valem candidaturas como a de Marinho Pinto.



[1]”Qui n’espère rien ne saurait rien exiger avec conviction et persévérance”; Paul Thibaud, Vingtième Siècle, Les Populismes, p. 238)

[2]Pierre André Taguieff, L’Illusion Populiste, Essai sur les démagogies de l’âge démocratique, Flammarion, 2007, p. 145 e p. 330

[3]Guy Hermet, Les populismes dans le monde. Une histoire sociologique, XIXe-XXe siècle, Fayard, 2001, p. 447.

[4]Cf. Jack Hayward, “The Populist Challenge to Élitist Democracy in Europe”, ..., pp. 26-27, p. 53.

[5]Le populisme est devenu ainsi un enjeu planétaire et une tentation pour des millions de déçus de la politique parlementaire. Je ne pense pas exagérer en disant que nous sommes assis sur un volcan” ( “Le charisme au coeur du populisme”, Alexandre Dorna, Le Peuple, Coeur de la Nation… sous la direction Michel Niqueux et Alexandre Dorna, L’ Harmattan, 2004, p. 42).

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