O Mundial no país das fortunas, exploração e abusos dos direitos humanos

Os cerca de 300 mil cidadãos qataris estão entre os mais ricos do mundo enquanto mais de dois milhões de pessoas que lá vivem não têm direitos e são vítimas de abusos e discriminação. Relator da ONU denunciou sistema que enraíza castas consoante o país de origem.

07 de novembro 2022 - 12:08
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Foto da presidência ruandesa durante a visita de Paul Kagame a Doha. Flickr/CC BY-NC-ND 2.0

Na monarquia absolutista do Qatar, o emir conserva o poder executivo, legislativo e controla também o judicial. A liberdade de imprensa não existe, com a autocensura a imperar mesmo antes da lei que pune desde 2020 a divulgação de "notícias falsas" com cinco anos de prisão. Os partidos políticos estão proibidos e as eleições de representantes para o Conselho Consultivo previstas pela Constituição de 2003 têm vindo a ser adiadas desde então. A única consulta eleitoral é para o Conselho Municipal Central, que aconselha o ministro dos assuntos municipais.

A cidadania do país está reservada a pouco mais de 300 mil pessoas, que são os únicos a poder possuir propriedade ou abrir os seus negócios. Aos restantes são vedados direitos políticos, liberdade de expressão, associação ou manifestação e estão destinados os trabalhos mal pagos. Assim vive a grande maioria dos mais de dois milhões de trabalhadores migrantes, que representam cerca de 95% da força de trabalho do Qatar. Metade trabalham na construção e cerca de 100 mil no trabalho doméstico.

A exploração laboral assenta no sistema da kafala (patrocínio), que dá ao empregador um poder quase absoluto sobre a vida do trabalhador, ao "patrocinar" a sua entrada no país e tratar das autorizações de trabalho e residência, podendo cancelá-las a qualquer altura. Um trabalhador não pode deixar a atividade ou mudar de trabalho sem o consentimento do patrão. Caso deixe o trabalho ou o patrão o queira castigar por reclamar o salário não pago, pode denunciar o crime de fuga, ficando o trabalhador automaticamente na situação de indocumentado, sujeito a pena de prisão e deportação. E também só pode deixar o país com uma autorização que muitas vezes depende do consentimento do patrão.

Este regime permite todo o tipo de abusos, desde o patrão que confisca os documentos dos trabalhadores e os obriga a trabalhar mais horas para no fim ficar a dever o salário, até ao que transforma a sua casa numa prisão para as trabalhadoras domésticas e as sujeita a abusos físicos e sexuais. E há também quem cobre muito dinheiro por um "certificado de não-objeção", o documento que permite ao trabalhador sair ou mudar de emprego.

Já depois de ter sido o país escolhido para acolher o Mundial de Futebol e sob pressão internacional dos sindicatos e da Organização Internacional do Trabalho, o Qatar comprometeu-se a mudar este regime para impedir os abusos, mas na prática pouco ou nada mudou. O fim da autorização patronal para sair do país foi anunciado com grande pompa, mas as trabalhadoras domésticas ainda são obrigadas a informar os patrões com 72 horas de antecedência e a lei permite aos empregadores manterem essa autorização para 5% dos seus trabalhadores. E, claro, o confisco do passaporte por parte do patrão continua a ser omeio mais eficaz para dissuadir tentativas de sair do país.

O Qatar proíbe a organização sindical dos migrantes e suprime os seus direitos democráticos, a começar pela liberdade de expressão, associação e de manifestação. O salário mínimo foi instituído no ano passado e ronda os 282 euros (mil riais, a que acrescem mais 300 riais para comida e 599 para alojamento, caso estes não sejam providenciados pelo empregador), mas os abusos não só são comuns quando chega a hora de pagar, como aumentaram durante a pandemia. A impunidade é geral e quem denuncia os abusos corre sério risco de acabar punido, como foi o caso do segurança queniano Malcolm Bidali no ano passado. Um dia desapareceu e só se soube que esteve preso um mês em solitária quando foi devolvido ao seu empregador. O Supremo Tribunal acusou depois Bidali de espalhar notícias falsas nas redes sociais e condenou-o a pagar uma multa de 25 mil riais (mais de sete mil euros). O ativista ficou sem o telemóvel e as suas contas no Twitter e Instagram foram bloqueadas no país do qual fugiu assim que pôde.

Relator da ONU denunciou sistema de castas aplicado aos migrantes

"Para muitos no Qatar, a origem nacional e a nacionalidade determinam a medida do exercício dos seus direitos humanos. Outros fatores tais como classe, género e situação de deficiência também são salientes, mas a estratificação da qualidade de vida de acordo com a nacionalidade e origem nacional na escala a que assisti durante a minha visita levanta sérias preocupações de discriminação racial estrutural contra os não nacionais na Qatar", afirmava há três anos o Relator Especial da ONU sobre Racismo, Discriminação Racial e Xenofobia, começando por lembrar que neste país a escravatura só foi proibida em 1952.

Tendayi Achiume chamou a atenção para a forma como os estereótipos raciais estão disseminados na esfera pública e privada: "os homens da África Subsariana são vistos como pouco higiénicos; as mulheres da África Subsariana são vistas como estando disponíveis sexualmente; e algumas nacionalidades sul-asiáticas é suposto serem pouco inteligentes. Os norte-americanos, europeus e australianos, por seu lado, são vistos como superiores e os brancos em geral como competentes por inerência". O perfilamento racial quer por parte da polícia, dos agentes de trânsito ou dos seguranças privados em parques ou centros comerciais na capital é também denunciado neste relatório da ONU, com base em depoimentos de sul-asiáticos e africanos subsarianos que viram o seu acesso vedado a esses locais.

O próprio sistema de imigração e recrutamento laboral reforça os estereótipos, com "vistos emitidos em bloco que funcionam como um sistema informal de quotas" por nacionalidade. Assim, refere o relator especial, os trabalhadores oriundos do Bangladesh, Sri Lanka e Nepal ficam com os trabalhos mal pagos da construção e rapidamente percebem que, independentemente das suas qualificações, a nacionalidade é uma barreira para conseguirem empregos melhores. "Para as nacionalidades árabes e ocidentais, os seus passaportes dão-lhes o privilégio que resulta em melhores condições contratuais, mesmo quando fazem as mesmas tarefas de algumas nacionalidades sul-asiáticas e subsarianas", afirma Tendayi Achiume, concluindo que "a nacionalidade e a origem nacional enraiza castas de facto entre os não-nacionais, em que as nacionalidades europeias, norte-americana, australiana e árabes gozam de maiores proteções de direitos humanos do que as do Sul da Ásia e África subsariana".

Direito à cidadania por naturalização é vedado a não-nacionais

Em Doha, certas zonas da cidade são designadas "zonas familiares", o que na prática impede os migrantes com baixo rendimento - que não podem trazer a família - de arrendar casa. Quanto aos alojamentos para trabalhadores, a sua qualidade também varia consoante a nacionalidade. A obtenção da cidadania através da naturalização é uma miragem para estes trabalhadores. Apesar de a lei prever a sua atribuição ao fim de 25 anos consecutivos de residência, o relatório da ONU diz que na prática há um teto anual de cem autorizações de residência permanente, que não dão direito à cidadania, excluindo as atribuídas por nascimento ou casamento. O "mito do trabalhador-convidado" quem vem para o Qatar uns meses para ganhar muito mais que no seu país de origem também é desmentido pelo relatório, apontando casos de migrantes que ali estão há décadas em trabalhos mal pagos e alguns que já pertencem à segunda geração na família a trabalhar nas mesmas atividades.

O relator especial da ONU destaca ainda os relatos de trabalhadoras domésticas que além de menos protegidas na lei laboral, sofrem violações extremas dos direitos humanos, ao serem feitas prisioneiras dos empregadores - qataris e estrangeiros - com "dias de trabalho excessivamente longos com nenhum descanso e nenhum dia de folga, confisco do passaporte e telemóvel, isolamento social e físico e, nalguns casos, abuso físico, verbal ou sexual pelos empregadores ou pelos seus filhos adultos ou adolescentes". O isolamento destas trabalhadoras impede-as de ter acesso sequer aos mecanismos de justiça laboral que pudessem existir. "As mais vulneráveis vivem numa situação de terror abjeto, reforçado pela ameaça de serem denunciadas pelo crime de fuga e do receio compreensível de que os seus abusadores irão invocar as leis da moralidade que criminalizam o sexo pré-marital para as acusar de atos sexuais ilícitos consensuais".

Mulheres discriminadas em quase tudo e dependentes de autorização masculina

No que diz respeito aos direitos das mulheres, o regime é também um dos mais discriminatórios ao negar-lhes direitos básicos. Segundo a Human Rights Watch, as mulheres têm de pedir aos seus tutores masculinos autorização para trabalhar em empregos públicos, casar, estudar no estrangeiro com bolsas do estado ou viajar para o estrangeiro até aos 25 anos. A partir dessa idade também podem ser proibidas de sair por parte dos seus pais ou maridos. Em muitas atividades não é permitida a presença feminina, tal como acontece nos bares que servem bebidas alcoólicas. A lei da família discrimina as mulheres no casamento, no divórcio, custódia dos filhos e nas heranças. Não existem leis a punir a violência domestica ou sobre menores. Os filhos de mulheres qataris casadas com não-nacionais só podem aceder à cidadania em situações excecionais, enquanto os homens transmitem a cidadania qatari tanto às esposas não-nacionais como aos filhos em comum.

O sexo fora do casamento é punido até sete anos de prisão e os muçulmanos podem ainda ser condenados a açoites ou à morte, consoante sejam não-casados ou casados, embora a primeira não seja comum e não se tenham visto execuções, previstas também para outros crimes, desde 2003. Relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são proibidas, com uma pena de um a três anos para qualquer homem considerado culpado de "instigar" ou "atrair" outro homem a "cometer um ato de sodomia ou imoralidade". Isto além da pena para o crime de sexo fora do casamento, cuja aplicação não depende da orientação sexual.

Brutalidade policial contra população LGBTI+

Pressionado nos últimos anos por campanhas de defesa dos direitos LGBTI+, o Qatar começou por afirmar em 2020 que turistas LGBTI+ seriam bem-vindos e até podiam levar bandeiras arco-iris para os estádios. Uma abertura aparente e que não durou muito. Em abril deste ano, o major-general Abdullah Al Ansari afirmou que se alguém mostrasse a bandeira ao pé dele a tiraria. "Não é porque a queira tirar-lhe, ou para o insultar, mas para o proteger (...) Porque se não for eu, outra pessoa ao pé dele pode agredi-lo... Não posso garantir o comportamento de toda a gente. E dir-lhe-ia "Por favor, não há necessidade de mostrar isso agora". Este responsável pelo comité antiterrorista no Ministério do Interior acrescentou: "Se quiser mostrar a sua opinião sobre a situação (LGBTI+), então que o mostre numa sociedade onde isso seja aceite".

Mais recentemente, o emir Sheikh Tamim bin Hamad al-Thani confirmou a linha oficial ao ser questionado em Berlim sobre o tema: "Nós damos a todos as boas-vindas, mas também esperamos que respeitem a nossa cultura", respondeu. Mais explícito que o emir, só o chefe de missão da embaixada portuguesa em Doha, Manuel Gomes Samuel, quando disse à SIC desejar "que não apareçam naturalmente estrangeiros que, embora possam ser homossexuais ou gostar muito de álcool, não façam a propagação desse modo de vida pela rua, porque não é necessário e também é uma questão de bom senso".

Entretanto, as autoridades continuam a vigiar as redes sociais e a prender ativistas LGBTI+ no país. E quando jornalistas escandinavos ligaram aos 69 hotéis na lista de recomendações da FIFA, apenas 33 responderam não ter qualquer objeção em receber casais do mesmo sexo. Entre 2019 e 2022 a Human Rights Watch registou seis casos de espancamentos e cinco de assédio sexual a pessoas sob custódia policial, a par de confissões forçadas e negação do direito a advogado, contacto com a família e assistência médica". Todos foram detidos sem acusações e num caso a pessoa ficou presa dois meses em solitária. À saída, todos assinaram uma declaração a prometer que irão "cessar a atividade imoral".

 

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