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As suspeitas de corrupção na atribuição do Mundial ao Qatar

As autoridades francesas abriram uma investigação ao papel desempenhado pelo presidente francês Nicolas Sarkozy, influenciando o então líder da UEFA a favor da candidatura do Qatar, em troca de investimentos em França.
Michel Platini. Foto Grzegorz Rogiński/KPRM.

Em junho de 2019, Platini foi detido pela polícia anticorrupção francesa e interrogado, juntamente com o ex-secretário-geral do Eliseu e braço direito de Sarkozy, Claude Guéant. Em causa estava a investigação aberta em 2016 por suspeitas de corrupção na atribuição do Mundial de Futebol de 2022 ao Qatar. Uma investigação iniciada em colaboração com as autoridades norte-americanas, o país que também era candidato e acabou por perder a organização do evento.

A decisão do comité executivo da FIFA foi tomada em dezembro de 2010 e logo surgiram acusações de que a escolha tinha sido viciada. Dos 24 membros do comité executivo da FIFA que votaram, 16 foram entretanto irradiados, suspensos ou alvos de inquéritos. Poucos meses depois da decisão, o grande promotor da candidatura do Qatar e antigo presidente da coonfederação asiática, Mohammed Bin Haman, foi expulso de forma perpétua das instâncias internacionais do futebol por "violações repetidas do código de ética" cometidas ao leme da confederação.

O pequeno-almoço no Eliseu

Mas a curiosidade da polícia francesa centrava-se para umas semanas antes da decisão. Mais concretamente o dia 23 de novembro de 2010. Três anos depois, a revista France Football dava nota que nesse dia houve um encontro secreto no Eliseu, com Nicolas Sarkozy a convidar para o pequeno-almoço o então príncipe herdeiro e atual emir do Qatar, Tamim ben Hamad al-Thani, e o então líder da UEFA e vice-presidente da FIFA Michel Platini, cuja preferência ia para os Estados Unidos acolherem o Mundial de 2022. Presentes na ocasião estiveram também o então chefe do governo do Qatar, Hamad ben Jassem al-Thai, o secretário-geral do Eliseu Claude Guéant e Sophie Dion, conselheira do Presidente francês para o desporto.

No menu do pequeno-almoço que fez Platini mudar de ideias quanto ao seu apoio não esteve apenas o tema do Mundial. Segundo a France Football, em troca da mudança de posição de Platini, entregando os seus votos ao Qatar e não aos EUA, foram postas em cima da mesa várias propostas de investimento: a compra do Paris Saint-Germain, que se veio a realizar em junho do ano seguinte, o aumento da participação no capital  no grupo de media Lagardère, com o fundo soberano a tornar-se maioritário em dezembro de 2011, e a criação de um canal de desporto (BeIN Sports) para concorrer com o Canal+ na aquisição de direitos televisivos.

Citado pelo Mediapart, o antigo presidente da FIFA Sepp Blatter, entretanto desavindo com Platini, diz que esse encontro no Eliseu foi decisivo para o que aconteceu depois. Blatter contou que Platini lhe disse após esse pequeno-almoço: "Pediram-me para votar pelos interesses franceses e o meu grupo já não vai votar no que tínhamos acordado tacitamente no comité executivo". Platini negou ter dito isso, mas admitiu ter sentido "uma mensagem subliminar" nas palavras de Sarkozy naquele encontro.

Um ano depois do pequeno-almoço, Laurent Platini, filho de Michel, foi contratado pela empresa de equipamentos desportivos detida por uma filial do fundo soberano do Qatar e passaria mais tarde, em 2016, a integrar o grupo Lagardère. A conselheira de Sarkozy, um dos nomes mais prestigiados do direito desportivo em França, tornou-se deputada dos Republicanos e no Parlamento foi vice-presidente do grupo de amizade França-Qatar. Quando saiu o Eliseu, o emirado financiou uma cadeira sobre ética do desporto na Universidade Paris I, onde ela leciona. Segundo o Mediapart, as notas de Sophie Dion sobre o encontro no Eliseu - e que confirmam a mudança de posição de Platini antes e após o pequeno-almoço - foram descobertas em 2018 numa busca policial à sua casa, quando deveriam estar nos Arquivos Nacionais, e aproveitadas pelos investigadores.

A proteção ao PSG na violação do fair-play financeiro

Segundo documentos divulgados pelo Football Leaks do hacker português Rui Pinto, enquanto presidente da UEFA, Platini e o seu secretário-geral Gianni Infantino, atual líder da FIFA, tiveram depois um papel fundamental em proteger o Paris Saint-Germain das investigações sobre violação das regras de fair-play financeiro. O Qatar injetou 1.800 milhões de euros no clube à margem das regras, através de contratos de patrocínio inflacionados, o que representa mais de dez anos de despesas do seu principal concorrente doméstico, o Marselha. Mas um acordo de alto nível entre os donos do clube e os dirigentes máximos da UEFA consegue que o PSG não seja afastado das competições europeias, tendo apenas de pagar uma multa e dois anos de restrições financeiras. Mesmo estas sanções acabaram por ser aliviadas mais tarde, recorda a investigação do Mediapart.

Em maio de 2016, Michel Platini saiu da presidência da UEFA e foi obrigado a sair da corrida pela liderança da FIFA após o Tribunal Arbitral do Desporto o ter suspenso por quatro anos por ter recebido da FIFA 1,8 milhões de euros. Platini sempre alegou que esse dinheiro lhe era devido por serviços de consultoria prestados mais de dez anos antes a Joseph Blatter e que o caso foi montado por entidades que o quiseram afastar da presidênciad a FIFA. Em julho de 2022, um tribunal suíço absolveu Platini e Blatter, considerando não ter ficado provado que houvesse fraude neste pagamento.

 

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Neste dossier:

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