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IVG é um acto médico

Derrotado o Não e votada em referendo a despenalização do aborto, logo se levantou uma enorme confusão e discussão em torno da aplicação prática da IVG. Os derrotados, pretendem agora baralhar, dificultar e impedir que se venha a cumprir a vontade largamente afirmada pelos portugueses e portuguesas no dia 11 de Fevereiro. É esse o sentido e o objectivo de todo este alarido.

A IVG é um acto médico como qualquer outro, obedecendo por essa razão às metodologias de natureza técnica e científica habitualmente utilizadas na prática clínica.
Artigo de João Semedo, médico e deputado, participou no Movimento Médicos pela Escolha.
A mulher que pretenda abortar, que tenha tomado essa decisão - como em qualquer outra circunstância clínica, deve ser observada e avaliada em consulta, em função do que o médico ou a equipa médica que a receberam, definem uma orientação clínica a seguir. É isto que, todos os dias, se faz nos nossos serviços de saúde, milhares de vezes, por esse país fora, nas mais variadas situações clínicas. Com a IVG não será diferente e nada disto implica a criação de centros de aconselhamento. Não há actos médicos sem aconselhamento. O aconselhamento, a orientação, são partes integrantes da actividade clínica, realizam-se ao longo de uma vulgar consulta, dispensam a existência de centros ou unidades de aconselhamento cuja única motivação e propósito é condicionar a vontade da mulher e impedir que ela a concretize. Não foi isso que o referendo decidiu.

O SNS de que dispomos hoje é muito diferente do que era há 30 anos. É uma construção que tem vindo a evoluir com o passar do tempo, sempre mais complexa e com maior capacidade de resposta aos novos problemas, desafios e exigências levantados pelas mais variadas - e ás vezes, imprevistas, necessidades de assistência médica dos portugueses. O SNS tem e está em condições de assegurar a realização da IVG nas condições que a lei vai contemplar. Sobre isto não é razoável nem sério alimentar qualquer dúvida ou especulação.

Naturalmente, os serviços do SNS têm de organizar-se e definir modelos de funcionamento para assegurar a realização da IVG que sejam operativos, seguros e de qualidade, com capacidade de responder prontamente e nos prazos marcados na legislação. É necessário garantir que não se desrespeita a decisão da mulher a pretexto da impossibilidade de cumprir os prazos indicados pela lei. Os serviços devem assegurar respostas não só eficientes mas também rápidas. Que permitam a decisão entre o aborto medicamentoso (químico) ou cirúrgico e a realização dos exames básicos para estes casos.

É de esperar que os hospitais, no âmbito dos serviços de ginecologia e obstetrícia, constituam consultas e unidades diferenciadas para a IVG, que observem, avaliem, orientem e acompanhem cada mulher que a eles recorre e, dando sequência ao processo clínico, procedam à IVG de acordo com o método escolhido.

Como para qualquer outro acto clínico, o SNS assegura toda a confidencialidade e respeito pelo sigilo profissional. Não poderia ser de outra maneira, como é evidente.

Realizada a IVG, os serviços de saúde devem assegurar o encaminhamento da mulher para uma consulta de informação e planeamento familiar.

Não é de excluir que os centros de saúde possam também atender as mulheres que pretendam interromper a gravidez. Neste caso, será necessário estabelecer uma articulação muito ágil entre o centro de saúde e a unidade hospitalar onde será efectuada a IVG, para que esta possa ser realizada no seu devido tempo.

Tudo isto será possível no SNS. Basta, apenas, um pouco de organização. O tempo de discutir já passou, a despenalização da IVG é uma realidade. Agora, é tempo de instalar e operacionalizar os serviços de saúde necessários à sua realização. O que recomenda, além do mais, que as mulheres que pretendam interromper a gravidez não sejam atendidas e observadas por médicos objectores de consciência, o que seria um contra-senso de muito más consequências.

Por último, é bom lembrar que reconhecer o direito dos profissionais à objecção de consciência não significa nem pode traduzir-se na aceitação e existência no SNS de serviços objectores de consciência. A legislação deve deixar isso muito claro.

João Semedo

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
(...)

Neste dossier:

Dossier: depois do referendo

Além do dossier sobre Carnaval, esta semana apresentamos um segundo dossier: Depois do referendo. Em oito artigos, as autoras e autores debruçam-se sobre o que foi o referendo, em diferentes aspectos, e sobre a próxima evolução da despenalização do aborto.

Vivemos num país mais livre

No passado dia 11 de Fevereiro os portugueses foram chamados, mais uma vez, a decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todos sabíamos que seria um dia decisivo: tínhamos a hipótese de finalmente avançar para uma sociedade mais democrática ou, caso contrário, permanecer no país atrasado e obscurantista em que vivíamos. Era uma questão fundamental para todas e todos, enquanto cidadãos.

A sujeita

São bastantes as consequências sociais da despenalização do aborto. Algumas afirmam-se de imediato, mudando comportamentos, atitudes políticas, diferenças de classe. Outras têm efeito cultural, já e num prazo longo.
Bem se entende o alcance valorativo do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, em termos de qualidade de saúde, recuperação do auto-controlo da contracepção, unidade e planeamento da família, autonomia emocional da mulher. Mais do que em qualquer outro momento da vida age sobre a situação da gravidez adolescente, e a intensidade do facto é pluri-geracional.

Pensar a política

Pensar a política é um conjunto de três artigos de Francisco Louçã publicados, em crónicas de opinião em esquerda.net, nos dias seguintes ao referendo. Republicamo-los aqui neste dossier como um todo, com três partes.
Terminado o referendo, creio que é útil pensar e discutir em detalhe as suas principais lições. Esse é o objectivo desta crónica, e começo por um tema que é fundamental para definir uma estratégia para a esquerda política em Portugal: a esquerda deve ou não promover uma política unitária?

12 de Fevereiro - o dia seguinte

A vitória do "Sim" no dia 11 de Fevereiro foi inequívoca. A maioria do povo português votou pela despenalização do aborto, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Houve quem tentasse pôr este resultado em causa - o Referendo não foi vinculativo. Juridicamente não foi, é verdade. Mas só um grande descaramento e uma grande falta de pudor político e ético, pode colocar em causa a sua legitimidade política.

Sim de crentes

O que se jogou no referendo de 11 de Fevereiro foi também a defesa da autonomia de um Estado laico moderno. Entendamo-nos: não foi em nome de um laicismo primário e passadista, que anseia inconfessadamente confinar a Igreja à sacristia, que o Sim combateu. Tivesse sido assim, e seria um contra-senso total o testemunho público de tantos/as católicos/as do lado da vontade de mudar a lei. O que essa presença pública desassombrada de católicos/as - que, enquanto tal, deram razões da sua adesão ao Sim - evidenciou foi uma convergência social alargada na defesa da autonomia da lei (e sobretudo da lei penal) relativamente às construções morais de fundamento confessional. A bandeira do Estado laico não é a do silêncio das crenças religiosas.

IVG é um acto médico

Derrotado o Não e votada em referendo a despenalização do aborto, logo se levantou uma enorme confusão e discussão em torno da aplicação prática da IVG. Os derrotados, pretendem agora baralhar, dificultar e impedir que se venha a cumprir a vontade largamente afirmada pelos portugueses e portuguesas no dia 11 de Fevereiro. É esse o sentido e o objectivo de todo este alarido.

E após o referendo?

A vitória do SIM neste referendo do passado dia 11 de Fevereiro veio permitir finalmente que as mulheres deixem de ser penalizadas por praticarem um aborto até às 10 semanas de gravidez, por motivos que só a elas dizem respeito.
Ainda no rescaldo desta campanha, não pode deixar de ser sublinhada a importância que os movimentos de opinião ligados ao SIM tiveram, na sua diversidade, tendo sido capazes de dar resposta às iniciativas e demagogias dos movimentos do NÃO.

Referendo e Feminismos

Virou-se uma página na História das mulheres com a vitória do SIM no último dia 11 de Fevereiro. Fortes abraços, porque as palavras não chegavam, as lágrimas no canto dos olhos, a alegria estampada nos rostos. As mensagens a chegarem a cada minuto. Foi assim por todo o lado onde se festejou este tão bem merecido resultado. Do Porto, a Maria José Magalhães dizia-me: "Isto parece o 25 de Abril". E recordei a revolução inacabada nesta área tão importante dos direitos das mulheres. Finalmente, 33 anos após Abril, as mulheres podem sair da menoridade quanto à decisão sobre a sua vida sexual e reprodutiva. Um espaço da cidadania que tardava em chegar. Uma cidadania que abre caminhos a uma "nova cidadania que recusa a democracia mitigada" no dizer de Andreia Peniche.(1)