A vitória do "Sim" no dia 11 de Fevereiro foi inequívoca. A maioria do povo português votou pela despenalização do aborto, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Houve quem tentasse pôr este resultado em causa - o Referendo não foi vinculativo. Juridicamente não foi, é verdade. Mas só um grande descaramento e uma grande falta de pudor político e ético, pode colocar em causa a sua legitimidade política.
Artigo de Helena Pinto, deputada do Bloco de Esquerda, participou no Movimento Voto Sim.
Como em 1998, a Assembleia da República aprovou uma Lei que despenaliza o aborto. Essa Lei ficou a aguardar o resultado do Referendo, para prosseguir o seu normal processo legislativo. Em 1998 votou muito menos gente e a diferença entre o "Sim" e o "Não" foi ínfima, como é sabido. Respeitou-se a orientação política do voto. Não havia outro caminho em Fevereiro de 2007. Caminho esse reforçado por um maior número de votantes e por uma confortável diferença de votos que deu a vitória ao "Sim".
Os defensores do "Não", a direita mais conservadora e a Igreja tentam então outro caminho - querem participar na elaboração de uma Lei que eles próprios combatem. Só têm um objectivo: continuar a impedir que a despenalização seja Lei.
A confusão, a mentira e os falsos argumentos já tinham sido ensaiados durante a própria campanha do Referendo, quando quiseram dizer ao eleitorado que votasse "Não", que depois logo se trataria da despenalização.
No dia 12 de Fevereiro, persistem na via enganadora. Agora dizendo que a Lei deve ser moderada, equilibrada e que tem que haver aconselhamento às mulheres.
Em primeiro lugar é preciso dizer que agora, depois da vitória do "Sim", é que vamos ter uma lei moderada. Finalmente Portugal vai ter uma Lei moderada sobre o aborto. Até agora tínhamos uma das Leis mais impositivas e mais intolerantes da Europa - 3 anos de prisão. Haverá ainda quem considere que 3 anos de prisão eram um sinal de moderação?
Em segundo lugar é preciso relembrar aquilo que foi uma das questões mais debatidas e mais atacadas pelos defensores do "Não" durante toda a campanha - a opção da mulher.
Nestas duas palavras centrou-se o ataque. Não podia ser por opção da mulher. Não podia ser. Sem dar justificação, sem motivo. O "Não" e o conservadorismo que lhe está associado não aceita que uma mulher possa ter a última palavra a dizer, não aceita que a lei estipule que até às 10 semanas é legal fazer uma interrupção da gravidez, por opção da mulher.
Paciência, foi isso mesmo que o povo português votou.
Então porquê tanto barulho em torno do "aconselhamento"? Porque tentam, mesmo após o Referendo, colocar na lei aquilo que perderam nas urnas.
A lei, que começará a ser discutida na especialidade na próxima semana, e cujo processo se deseja rápido, deve corresponder, inequivocamente, às questões da pergunta referendada.
O aborto, enquanto acto médico, é sempre solicitado e realizado no âmbito de uma consulta médica. Nessa consulta médica o profissional de saúde informará a mulher sobre tudo o que é pertinente sobre a matéria. É perfeitamente admissível que a mulher possa ter um período de reflexão, curto (nunca superior a 3 dias), voltando ao serviço de saúde. Assim como é natural, desejável e com toda certeza será norma o seu encaminhamento para serviços de planeamento familiar, como aliás o "Sim" sempre defendeu.
As melhores práticas europeias assim o ditam e não o aconselhamento obrigatório, onde a mulher seria sujeita à necessidade de invocar o seu motivo, íntimo, para a sua decisão. Onde a palavra de terceiros também contaria para a decisão final. Não foi isso que votámos no Referendo.
A organização dos serviços de saúde será necessária e tem que garantir, assim como a lei, que nenhum serviço será objector de consciência. Respeitar-se-á a objecção de consciência dos profissionais de saúde, que por isso mesmo, por serem objectores de consciência, não devem, nem podem estar neste serviço.
Os deputados e as deputadas defensoras do "Sim", a larga maioria que já aprovou o projecto de lei que despenaliza o aborto, vai trabalhar e votar uma lei que corresponda ao voto do povo português. Está mandatada para isso pelo referendo e tem toda a liberdade e legitimidade para o fazer.
Também há quem tenha lembrado que o Presidente da República dispõe de prerrogativas sobre a lei. É verdade, não seria necessário relembrar, elas estão garantidas constitucionalmente. Mas já agora há que dizer que elas se limitam a devolver a lei ao parlamento, que pode reconfirmá-la e que a mesma maioria que a aprovar é a maioria necessária para a confirmar.
A criminalização do aborto, a perseguição das mulheres, impediu, durante anos de mais que se avançasse na promoção da saúde sexual e reprodutiva, no planeamento familiar, na educação sexual, promoveu o aborto clandestino.
A lei criminalizadora empurrou-nos para o atraso. Há muito a fazer nestas áreas, muito mesmo.
No dia 11 de Fevereiro demos o passo necessário na direcção certa. Nada será como dantes.
Helena Pinto