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E após o referendo?

A vitória do SIM neste referendo do passado dia 11 de Fevereiro veio permitir finalmente que as mulheres deixem de ser penalizadas por praticarem um aborto até às 10 semanas de gravidez, por motivos que só a elas dizem respeito.
Ainda no rescaldo desta campanha, não pode deixar de ser sublinhada a importância que os movimentos de opinião ligados ao SIM tiveram, na sua diversidade, tendo sido capazes de dar resposta às iniciativas e demagogias dos movimentos do NÃO.

Artigo de Ana Campos, médica, participou no Movimento Médicos pela Escolha.

Não podendo nem pretendendo subestimar o papel importante dos partidos políticos na mobilização dos seus militantes, é de salientar que a multiplicação de actividades, argumentos, acções e a conjugação de esforços dos movimentos de opinião pelo SIM, foi determinante para alargar a mais camadas da população a sua mensagem e as suas iniciativas.

O movimento Médicos pela Escolha, surgido pouco antes do referendo, teve um papel importante na desmistificação de argumentos falaciosos que os movimentos do NÃO utilizaram. Se verdadeiramente o que estava em causa era a questão da criminalização de mulheres por prática de aborto, através de muitas intervenções de médicos do SIM foi possível contrariar e neutralizar argumentos e imagens que chocavam eventualmente muitos sectores da população.

Neste momento e após a votação da lei, é importante ressalvar que, a exemplo de muitos outros países, há que assegurar a possibilidade de os diferentes hospitais nas diferentes cidades, se dotarem dos meios necessários à aplicação da lei e isso não exige nem muitos meios nem muitos profissionais. O que exige é essencialmente profissionais formados e dedicados, com compreensão acerca dos problemas em causa e conhecedores dos diferentes métodos para a prática de aborto.

É fundamental que o aborto possa ser realizado dentro do Serviço Nacional de Saúde para que seja garantida a igualdade de acesso de todas as mulheres independentemente da sua capacidade económica. Por outro lado, os Serviços devem dotar-se e adquirir treino nas mais modernas técnicas para que o aborto possa ser praticado em boas condições de segurança e por técnicas simplificadas, procurando obter-se a melhor qualidade ao custo mais baixo possível. Os médicos de família devem ser desde logo englobados no processo, podendo vigiar e acompanhar muitas das situações de aborto médico.

É essencial garantir na regulamentação da lei que o estatuto de objecção de consciência, um direito individual, não seja transformado numa forma de serviços inteiros impedirem a prática de abortos em algumas instituições, como aconteceu com a actual lei, no seu início. Um hospital tem de ser responsável pelos casos que lhe são dirigidos e deve enviá-los para outro centro, se não tem profissionais que não sejam objectores de consciência.

Mas a melhor forma de garantir a aplicação da lei é através de propostas de avaliação periódica dos casos seguidos nos diferentes hospitais, para se saber quais os que a cumprem ou não. O código deontológico dos médicos terá de adaptar-se, tal como foi feito em outros países e tornar apenas puníveis para os profissionais de saúde as situações de aborto fora do quadro legal. Embora o Bastonário da Ordem dos Médicos se oponha à mudança do Código Deontológico, é inevitável que ele terá de ser mudado e, se para tal for necessário, devem ser consultados todos os profissionais.

Mas para avaliar a aplicação da lei é muito importante que a opinião pública participe, quer através de linhas de aconselhamento sobre os locais onde o aborto pode ser realizado, mas também na denúncia de casos em que a lei não tenha sido aplicada.

Ana Campos

(...)

Neste dossier:

Dossier: depois do referendo

Além do dossier sobre Carnaval, esta semana apresentamos um segundo dossier: Depois do referendo. Em oito artigos, as autoras e autores debruçam-se sobre o que foi o referendo, em diferentes aspectos, e sobre a próxima evolução da despenalização do aborto.

Vivemos num país mais livre

No passado dia 11 de Fevereiro os portugueses foram chamados, mais uma vez, a decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todos sabíamos que seria um dia decisivo: tínhamos a hipótese de finalmente avançar para uma sociedade mais democrática ou, caso contrário, permanecer no país atrasado e obscurantista em que vivíamos. Era uma questão fundamental para todas e todos, enquanto cidadãos.

A sujeita

São bastantes as consequências sociais da despenalização do aborto. Algumas afirmam-se de imediato, mudando comportamentos, atitudes políticas, diferenças de classe. Outras têm efeito cultural, já e num prazo longo.
Bem se entende o alcance valorativo do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, em termos de qualidade de saúde, recuperação do auto-controlo da contracepção, unidade e planeamento da família, autonomia emocional da mulher. Mais do que em qualquer outro momento da vida age sobre a situação da gravidez adolescente, e a intensidade do facto é pluri-geracional.

Pensar a política

Pensar a política é um conjunto de três artigos de Francisco Louçã publicados, em crónicas de opinião em esquerda.net, nos dias seguintes ao referendo. Republicamo-los aqui neste dossier como um todo, com três partes.
Terminado o referendo, creio que é útil pensar e discutir em detalhe as suas principais lições. Esse é o objectivo desta crónica, e começo por um tema que é fundamental para definir uma estratégia para a esquerda política em Portugal: a esquerda deve ou não promover uma política unitária?

12 de Fevereiro - o dia seguinte

A vitória do "Sim" no dia 11 de Fevereiro foi inequívoca. A maioria do povo português votou pela despenalização do aborto, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Houve quem tentasse pôr este resultado em causa - o Referendo não foi vinculativo. Juridicamente não foi, é verdade. Mas só um grande descaramento e uma grande falta de pudor político e ético, pode colocar em causa a sua legitimidade política.

Sim de crentes

O que se jogou no referendo de 11 de Fevereiro foi também a defesa da autonomia de um Estado laico moderno. Entendamo-nos: não foi em nome de um laicismo primário e passadista, que anseia inconfessadamente confinar a Igreja à sacristia, que o Sim combateu. Tivesse sido assim, e seria um contra-senso total o testemunho público de tantos/as católicos/as do lado da vontade de mudar a lei. O que essa presença pública desassombrada de católicos/as - que, enquanto tal, deram razões da sua adesão ao Sim - evidenciou foi uma convergência social alargada na defesa da autonomia da lei (e sobretudo da lei penal) relativamente às construções morais de fundamento confessional. A bandeira do Estado laico não é a do silêncio das crenças religiosas.

IVG é um acto médico

Derrotado o Não e votada em referendo a despenalização do aborto, logo se levantou uma enorme confusão e discussão em torno da aplicação prática da IVG. Os derrotados, pretendem agora baralhar, dificultar e impedir que se venha a cumprir a vontade largamente afirmada pelos portugueses e portuguesas no dia 11 de Fevereiro. É esse o sentido e o objectivo de todo este alarido.

E após o referendo?

A vitória do SIM neste referendo do passado dia 11 de Fevereiro veio permitir finalmente que as mulheres deixem de ser penalizadas por praticarem um aborto até às 10 semanas de gravidez, por motivos que só a elas dizem respeito.
Ainda no rescaldo desta campanha, não pode deixar de ser sublinhada a importância que os movimentos de opinião ligados ao SIM tiveram, na sua diversidade, tendo sido capazes de dar resposta às iniciativas e demagogias dos movimentos do NÃO.

Referendo e Feminismos

Virou-se uma página na História das mulheres com a vitória do SIM no último dia 11 de Fevereiro. Fortes abraços, porque as palavras não chegavam, as lágrimas no canto dos olhos, a alegria estampada nos rostos. As mensagens a chegarem a cada minuto. Foi assim por todo o lado onde se festejou este tão bem merecido resultado. Do Porto, a Maria José Magalhães dizia-me: "Isto parece o 25 de Abril". E recordei a revolução inacabada nesta área tão importante dos direitos das mulheres. Finalmente, 33 anos após Abril, as mulheres podem sair da menoridade quanto à decisão sobre a sua vida sexual e reprodutiva. Um espaço da cidadania que tardava em chegar. Uma cidadania que abre caminhos a uma "nova cidadania que recusa a democracia mitigada" no dizer de Andreia Peniche.(1)