No discurso em que anunciou a intenção de reconhecer as auto-denominadas Repúblicas populares de Donetsk e Luhansk, Vladimir Putin parecia preocupado em enfatizar as suas intenções “humanitárias”. Partindo do princípio de que a Ucrânia é uma construção “bolchevique” sem “tradição de Estado”, o presidente russo acusou ainda o que chama de “regime” de Kiev de “estar no caminho da violência, do banho de sangue e da ausência de lei”, reconhecendo “apenas soluções militares para a questão de Donbass”.
Enquanto enviava tanques russos para a região, insistia que estes eram na verdade forças de “manutenção de paz”. Isto levanta a questão do quanto os russos acreditam que Putin esteja a ir em auxílio de minorias oprimidas – e em que medida estas queiram tal “proteção humanitária”.
As audiências ocidentais presumem que o Kremlin é o único agressor mas as atitudes populares na Rússia parecem mais contraditórias – também devido às ações dos governos ocidentais e ao seu uso, por Putin, para construir a narrativa de uma ameaça externa.
Contudo, atualmente, é pouco claro que o seu governo tenha conseguido reunir apoio popular para uma guerra total com a Ucrânia.
Gerard Toal é autor de Near Abroad: Putin, the West and the Contest for Ukraine and the Caucasus. Ele e os seus colegas têm feito inquéritos na zona do sudeste da Ucrânia, Donbass e Crimeia sobre as suas perspetivas acerca das condições de vida 30 anos depois da queda da URSS. Falou com David Broder da Jacobin acerca das raízes do conflito, da opinião pública nas regiões de fronteira e da agenda do governo de Putin.
Em Near Abroad discutes a diferença na representação ocidental das nossas ações num registo moral ou legal, ao passo que apresentamos as ações russas como sendo uma estratégia hiper-centralizada, determinada, para recriar um império. Parece que enfatizas mais os aspetos mais contingentes das ações da liderança russa, incluindo até as suas respostas psicológicas aos acontecimentos...
Sim, isso é muito importante. A predisposição psicológica de Putin é claramente muito importante nesta crise. O seu discurso de justificação do reconhecimento dos dois estados por procuração no Donbass foi uma diatribe épica, sombria nas suas implicações. Mas, claro, há um pano de fundo estrutural mais vasto.
Neste momento, assistimos a uma disputa entre duas teorias principais da crise. Uma sustenta que esta crise é o resultado de uma manifestação de uma essência imperial que sempre existiu do lado russo; assim, Putin está a fazer o que sempre era provável que fizesse porque é isso que os líderes russos fazem. Veem-se coisas nas redes sociais a dizer que isto deve ser Putin a criar uma manobra de diversão tal como fez com os bombardeamentos nos apartamentos em 1999, com a guerra na Geórgia em 2008, com a intervenção na Crimeia em 2014, com a intervenção na Síria etc. – ou seja, a criação, através de “medidas ativas”, de uma situação de crise que justifique as ações imperiais da liderança.
A teoria alternativa é uma teoria contingente da crise e é tanto sobre o que o Ocidente faz quanto como sobre o que os russos – e Putin em particular – fazem em resposta. O que é importante compreender é a interação e o surgimento dos dilemas de segurança. Isto envolve reconhecer a nossa ação. Na primeira teoria somos uma espécie de inocentes invisíveis: não fazemos parte do quadro porque tudo se resume à revelação de quem Putin é e da natureza da Rússia.
Penso que é importante ter uma compreensão da crise que pense os processos que ocorreram: é o que se chama dependência da trajetória que quer dizer que chegamos a este ponto devido a uma série de encruzilhadas críticas que nos fizeram seguir por um caminho em vez de por outro.
Isto é importante para que, quando tivermos um relato deste momento – olhando para ele como um futuro historiador o poderia fazer –, não esqueçamos que é, em alguns aspetos importantes, uma crise co-criada. Isto não se trata da afirmação de um bilateralismo simétrico mas de fazer o trabalho empírico para descobrir o que está a acontecer e ter um discurso mais analítico sobre esta crise.
Criticaste as amplamente divulgadas analogias recentes com a Guerra da Geórgia em 2008 mas no teu livro mostras como Dmitry Medvedev, o presidente da Rússia de então, também usou uma linguagem fortemente “humanitária” de defesa de um povo sob ameaça. Então porque é que esta analogia não é boa?
Hoje, assistimos a todas estas versões “verídicas” de 2008. Com esta expressão designo algo que se sente ser verdadeiro e que deveria sê-lo mas que não o é. A versão “verídica” é que a Rússia invadiu a Geórgia como sempre tinha querido fazer, então os inocentes e bravos georgianos resistiram e o Ocidente deveria ter estabelecido linhas vermelhas mais fortes e ter sido mais assertivo na sua resposta. Esta versão de 2008 é uma parte dessa teoria mais ampla da essência imperial russa que se está a manifestar. Encobre o registo empírico verdadeiro do que aconteceu.
Esta foi uma crise co-criada e podia ter sido evitada. A liderança georgiana tinha escolhas e, infelizmente, fez algumas escolhas muito más em momentos críticos de encruzilhada. Na Ossétia do Sul, em agosto de 2008, havia um conflito de baixa intensidade entre as diferentes partes. Houve assassinatos e bombardeamentos e ataques de atiradores furtivos em Tskhinvali que foram muito feios e assustadores para ambas as comunidades que viviam na região.
Os ossetianos decidiram evacuar alguma da população porque temiam uma invasão do seu espaço, do seu estado separatista de facto ilegal. Tinham razão porque o presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, tinha vindo a avisar de forma algo imprudente que iria tentar tomar estes territórios, apesar de a maior parte dos analistas pensar que a crise iria suceder na Abkhazia.
Saakashvili tinha vindo a aumentar o seu exército. O estado futuro tomou claramente uma decisão que Saakashvili devia ter percebido mas não o fez: que não iriam permitir-lhe reverter estes estados de facto na Abkhazia e na Ossétia do Sul. Isto contrasta com o que os russos fizeram em Adjara, em 2004, quando cooperaram com Saakashvili ao permitir que a Geórgia assumisse controlo de uma área que estava há muito sob domínio do potentado extremamente corrupto de Aslan Abashidze. Os russos basicamente facilitaram a sua saída mas Putin disse a Saakashvili, “Não te vamos fazer mais favores”.
Houve uma boa dose de de orgulho e otimismo de guerra ultra-confiante de Saakashvili. Resumindo uma história longa, um conflito de baixa intensidade tornou-se uma guerra quando este escolheu escalar e implementar um plano que tinha desenvolvido com conselheiros militares internacionais – a operação Tempestade da Croácia em 1995 foi uma inspiração importante – contornar Tskhinvali e criar “factos no terreno” antes que o exército russo pudesse responder. Isto foi um erro.
Inicialmente, os ossetianos ficaram sozinhos nessa guerra. A escalada começou com um crime de guerra, o lançamento de mísseis contra uma cidade na qual dezenas de civis morreram (nem toda a gente tinha sido evacuada).
A história “verídica” da guerra é que os russos fizeram acusações ridículas de “genocídio” contra os georgianos para fabricar uma razão para invadir a Geórgia. A verdade é que a acusação de “genocídio” veio dos ossetianos que estavam sob ataque – esta era uma acusação habitual dos ossetianos contra os georgianos desde o início do século XX e que a liderança da Ossétia do Sul já tinha usado antes de 2008 – e foi adotada pelos russos de forma irada. Foi uma peça do discurso internacional sobre intervenções militares no período pós-Guerra Fria, ligada à doutrina da “responsabilidade de proteger”.
Assim, de facto, o chamado manual que os russos aplicaram em 2008 era na verdade uma mistura do Kosovo com a Guerra do Iraque de 2003, usando a acusação de genocídio de forma a legitimar o uso da força militar. Lembremos-nos como de repente a administração Bush começou a falar de Halabja e do gaseamento dos Curdos para justificar a invasão de 2003. Esse acontecimento horrível tinha acontecido quinze anos antes, em 1988. A responsabilidade de proteger, infelizmente, tornou-se uma doutrina flexível utilizada para justificar o belicismo das grandes potências através de exibições performativas de vitimização. Agosto de 2008 foi mais um abuso da "responsabilidade de proteger". Hoje assistimos a uma extensão obscura e cínica desta para justificar a Rússia, criando uma farsa de "soberania legal do Estado" para lhe permitir travar uma guerra contra a Ucrânia.
Isso traz-nos de volta ao primeiro ponto acerca de como o Ocidente vê aquelas ações, como humanitárias, em contraste com as dos russos e do seu imperialismo. Mas quão importante é para a liderança russa obter apoio público para a guerra nestes termos em vez de simplesmente inventar racionalizações post facto?
Penso que a necessidade de justificar a intervenção é central e necessária mesmo numa autocracia. Ainda que se tenha controlo dos meios de comunicação social, é necessário o espetáculo do certo e do errado, a fantasia de salvar o povo sob ameaça de um Outro mau, um império, os fascistas nacionalistas, etc. Foi esta a história usada em 2008.
Sejamos francos. O erro de Saakashvili foi dar ao governo de Putin a possibilidade de criar esse argumento. No meu livro, descrevo como o número das duas mil pessoas que alegadamente tinham sido mortas veio de um responsável público da República da Ossétia do Sul. Ele andou pela cidade, viu pessoas mortas em carros e assim. Como propagandista, inflacionou tudo, de forma a fazer com que a Rússia interviesse. Porque não era certo que os russos viessem necessariamente em seu auxílio.
Havia forças de manutenção da paz russas mas devemos lembrar-nos de que o ataque inicial, com as tropas georgianas a avançar para Tskhinvali, foi travado por milícias de ossetianos do sul, jovens que acreditavam que tinham de lutar com tudo o que tivessem contra os georgianos ou senão seriam eliminados da face da terra. Nas primeiras 24 a 48 horas, os ossetianos do sul sentiam que estavam sozinhos. Isto tornou-se depois tema da política russa.
Tudo isto para dizer que há um enquadramento humanitário tanto para as intervenções dos EUA quanto para as da Rússia – estas têm de ser justificadas. E é insuficiente justificá-las falando em interesses estratégicos e raison d’état. Não é suficientemente convincente.
Neste momento, o governo russo tem um problema real. A guerra que quer na Ucrânia não é uma guerra que a população russa queira, é muito arriscada e pode correr extremamente mal para o Kremlin. Não é vista como tendo qualquer tipo de apoio popular. Isto em contraste com a Crimeia. Tenho um capítulo no meu livro sobre como a Crimeia é vista como estando “perto do nosso coração”. Há toda uma história afetiva de ligações emocionais à Crimeia que o regime podia usar para mobilizar o apoio popular para a sua intervenção. Em Donbass isso não existe da mesma forma. Não há vontade para esta guerra na Rússia.
Fez-se algum espetáculo, por exemplo, com uma pequena minoria da população de Donbass a ser evacuada. Mas será que o facto dos meios de comunicação social russos não estarem já a fazer mais para preparar a população para uma guerra mais vasta não sugere que tal guerra não está a ser preparada?
Não sei se podemos dizer isso – eles em agosto de 2008 trabalharam a situação de guerra com bastante rapidez não a tendo esperado previamente. Podemos recordar-nos que Putin estava em Pequim quando a guerra rebentou e teve de voltar de modo algo apressado a Vladikavkaz para se reunir com os comandantes e ajudar a coordenar a resposta russa.
Por isso, penso que estamos num momento muito perigoso. Se algum incidente ocorrer, a situação poderá tornar-se explosiva.
A motivação para esta guerra no círculo interno do Kremlin é geopolítica. É militar e também punitiva. Há uma história emocional e psicológica de Putin e a Ucrânia está envolvida nela. Não penso que isso tenha pernas para ser convincente para a população russa em geral. Talvez se venha a demonstrar que estou errado. Depende como tudo se desenrolar mas penso que é uma guerra arriscada para o governo de Putin.
Haverá alguma radicalização aqui? A fraqueza económica russa, a guerra de 2014 e as sanções, significarão que a estabilidade do governo de Putin se tornou mais dependente das suas mostras de poder militar e de força geopolítica?
Num período longo de tempo, sim. É bastante claro que à volta de 2012–13 a popularidade de Putin estava em declínio e depois houve o espetáculo de 2014. Mas daquilo que posso observar isto não é algo que o governo de Putin precise para fins internos.
Há muitas pessoas que defendem que são as razões internas que estão a levar o regime a fazer isto. Mas Putin tem a sua posição muito resguardada: tem um cadeado no poder. Perseguiu brutalmente Alexei Navalny e marginalizou ainda mais os meios de comunicação social dissidentes. A população foi basicamente desmobilizada. Por isso, não se vê qualquer necessidade disto. Penso que é uma escolha, uma questão de legado para Putin: parte do que é e do que é o grupo à sua volta. São pensadores clássicos da geopolítica estratégica que se veem numa competição geopolítica ou até civilizacional com o Ocidente.
Veem que a Ucrânia está vulnerável, que têm uma dominância naquele espaço. Estão a aproveitar o momento para demonstrar isso, resistindo contra o que pensam ser uma estrutura de segurança injusta criada quando a Rússia estava fraca.
Desde 2014 que tens feito inquéritos com os teus colegas no sudeste da Ucrânia. Que sentes sobre a identificação das populações nas zonas de fronteira com os líderes das auto-proclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk (DNR/LNR) ou com Putin e até que ponto aceitam o seu enquadramento do conflito como uma suposta ameaça ucraniana?
Em primeiro lugar, há muito a dizer sobre as dificuldades de realizar inquéritos em zonas de conflito. Estamos a inquirir pessoas que continuam em Donbass mas também muitas outras que se deslocaram para a Rússia ou para outras partes da Ucrânia. Isto abrange os dois mihões e meio ou três milhões de pessoas que ainda lá estão (na zona dos oblasts de Luhansk e Donetsk de antes da guerra) que teriam entre cinco ou seis milhões; apesar de não termos a certeza porque a Ucrânia não tinha um censo há mais de vinte anos.
Uma das descobertas que discutimos no nosso artigo de 12 de fevereiro no Washington Post é o condicionamento material massivo das atitudes nas aéreas abrangidas. A área de Donbass é uma região industrial deprimida que sofreu um declínio tremendo mesmo antes da guerra de 2014 que também rebentou com a economia local.
A população nas partes de Donbass ainda controladas pela Ucrânia são mais críticas das suas autoridades locais e do governo de Kiev do que as da LNR e DNR são das autoridades apoiadas basicamente por Moscovo. Isto não quer dizer que estas sejam populares. Há sentimentos muito contraditórios.
Uma das questões é sobre se estas autoridades constituem uma boa equipa ou se são corruptas e gerem as coisas em seu benefício – também se pode recusar responder ou selecionar que não se sabe – e uma quantidade razoável de pessoas diz que estas autoridades são corruptas.
Isto também se revela quando perguntamos acerca do estatuto político futuro da região. Não há quase nenhum apoio à independência da DNR e da LNR: a maioria das pessoas que conseguimos inquirir quer juntar-se à Rússia, apesar de não serem todas, claro. Mas esta pergunta geopolítica é imposta a pessoas cujas preocupações prementes são económicas.
Se deixarmos de lado as questões de autonomia, juntar-se à Rússia é a preferência mais elevada e – isto é importante de compreender – por razões económicas. A Rússia é muito mais próspera do que a Ucrânia e estas pessoas têm vivido numa Ucrânia pós-soviética que as tem defraudado. O país atinge apenas 80% do PIB que tinha na altura do colapso da URSS e, ainda assim, este número é agregado, ou seja diz respeito ao país inteiro.
Donbass era uma potência industrial na União Soviética e ainda tinha um desempenho relativamente bem sucedido na altura do colapso da URSS: os mineiros de Donetsk foram muito importantes para forçar Gorbachev a iniciar reformas. Agora a economia está destruída.
Apesar das populações não quererem que estes estados se tornem independentes, até que ponto a DNR e a LNR têm uma agenda própria? Podemo-nos lembrar de outros exemplos em que grupos paramilitares que juravam fidelidade a um estado maior agiram de formas que, de facto, eram contrárias aos interesses destes. Poderão escalar a situação de uma forma que os seus patronos não queiram como já aconteceu em alguma medida no caso da Ossétia?
A Abkhazia será talvez o melhor exemplo disso porque a população que aí vive tem interesses divergentes dos do Kremlin e de Moscovo. Da mesma forma, os ossetianos do sul estão interessados em juntar-se à Rússia mas não estão interessados em juntar-se à Ossétia do Norte.
Em Donbass acho que é diferente. Ao contrário destas áreas em que existiam populações étnicas mais pequenas que cresceram com uma identidade particular na União Soviética, a identidade de Donbass é mais económica. Há uma identidade que a distingue: um orgulho nela enquanto potência industrial na era soviética, um lugar que providenciava riquezas para o resto da Ucrânia. Mas esta é uma identidade diferente da identidade etno-nacionalista.
Como é que isso se traduz na autonomia relativa dos grupos aí? Agora há aí uma economia de guerra. Há pessoas que investiram na guerra e que investiram nos abastecimentos para a travar. Há uma estrutura de poder associada a isso que é institucionalizada e tem um certo peso. Mas estou razoavelmente confiante de que se o Kremlin quisesse desligar a guerra o conseguiria fazer de forma razoavelmente rápida. Desde 2014 há um número de atores independentes que eram basicamente capangas mafiosos e psicopatas de vários tipos e vários foram afastados através de assassinatos misteriosos. Por isso, penso que DNR e LNR têm uma capacidade de ação muito limitada. São servos do Kremlin. (...)
Gerard Toal é professor na School of Public and International Affairs da Virginia Tech e autor de Near Abroad: Putin, the West and the Contest for Ukraine and the Caucasus.
Extrato da entrevista publicada originalmente na Jacobin. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.