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Fuga ao fisco e branqueamento de capitais: da "Operação Furacão" ao "Monte Branco"

A história de uma das maiores operações de fraude fiscal organizada pela banca e apanhada pela justiça arrisca-se a chegar ao fim sem que ninguém seja acusado. Na "Operação Furacão" desencadeada em 2005, os crimes fiscais ou prescrevem ou são perdoados em troca do pagamento do imposto em falta. Muitos voltaram a ser apanhados noutro esquema de branqueamento de capitais. A maioria aproveitou a amnistia oferecida pelo Governo para repatriar as fortunas e escapar às acusações, voltando a transferi-la em seguida para fora do país.
Foto Images of Money/Flickr

Foi no fim de 2005 que o Ministério Público arrancou com a Operação Furacão, iniciando buscas no BES, BCP, Finibanco e BPN. Percebeu-se depois que a visita da polícia e dos magistrados não era propriamente uma surpresa para os alvos das buscas: por exemplo, Oliveira e Costa obrigou alguns funcionários do BPN a passarem todo o fim de semana a empacotar documentos do Banco Insular para ficarem a salvo das buscas. Alguns foram encontrados anos mais tarde numa fábrica desativada na Vila das Aves e outros terão seguido num contentor para Cabo Verde. O Ministério Público abriu um inquérito à fuga de informação, arquivou-o em 2007 e hoje toda a gente admite que se não tivesse acontecido a fuga de informação, o escândalo BPN teria rebentado dois anos mais cedo, evitando-se parte do prejuízo.

O esquema de fraude fiscal era proposto a centenas de empresários pelos bancos, que criavam e controlavam empresas sedeadas em paraísos fiscais, que por sua vez emitiam faturas por transações fictícias, permitindo às empresas escapar ao fisco e cobrando comissões entre 6% e 12% do valor da fraude. O relatório anual de 2011 da Procuradoria Geral da República apontava para 460 arguidos, entre pessoas e empresas, com a perspetiva de o Estado poder vir a arrecadar 185 milhões de euros em impostos não pagos, em troca do perdão dos crimes fiscais de empresários e banqueiros. Na altura, estavam em curso 11 investigações e 74 inquéritos já tinham sido concluídos e suspensos contra o pagamento da dívida, envolvendo 126 pessoas e 91 empresas.  Entre as empresas beneficiárias da fraude estão alguns dos maiores grupos empresariais portugueses, como o grupo Amorim, Mota-Engil, Soares da Costa, Porto Editora, Visabeira, Estoril Sol, Media Capital, entre muitas outras que continuam longe do olhar do resto dos contribuintes que cumprem as suas obrigações. 

Outro aspeto importante deste processo é que já estavam prescritos boa parte dos crimes fiscais descobertos pela polícia e magistrados nas buscas efetuadas aos bancos e empresas em 2005. O roubo aos contribuintes só entre 1998 e 2001 foi avaliado pelo Ministério Público em mais de 200 milhões de euros, mas a banca e as empresas envolvidas no esquema fraudulento não tiveram de devolver um tostão pela sua prática criminosa.

Mega-investigação comprometida por falta de preparação

Reduzida a mera operação de recuperação de imposto não pago, a investigação da "Operação Furacão" foi perdendo fôlego e meios. Em 2010, Maria José Morgado, coordenadora das investigações, justificava os atrasos nas investigações com a falta de meios e de preparação do Ministério público para lidar com a complexidade da criminalidade económica. Também o relatório anual da PGR se queixa da falta de recursos humanos para este processo e o do BPN, por exemplo, chegando a compará-los com os meios dedicados à investigação de crimes semelhantes na Europa. Declarações que confirmam o que toda a gente sabe: em Portugal, os bancos continuam a andar sempre um passo à frente da Justiça.

O fraco resultado da operação foi apontado até pelo advogado de vários arguidos dos inquéritos desta megafraude fiscal. António Lobo Xavier, que entretanto foi nomeado pelo Governo para chefiar a comissão que vai reformar o imposto pago pela banca e pelas empresas, afirmava em 2011 que "os procuradores e os funcionários da administração fiscal têm trabalhado muito mas são poucos" e no caso dos trabalhadores do fisco, "estão sobrecarregados com a dimensão dos processos em que colaboram com o Ministério Público".

Mostrando-se sensibilizado com a situação dos homens e mulheres que investigam os crimes fiscais dos grupos financeiros e económicos que representa, Lobo Xavier disse mesmo que "até faz impressão as condições em que têm de trabalhar" os procuradores e os inspetores tributários. Palavras que dizem quase tudo quanto ao falhanço de mais um megaprocesso anunciado como de combate à criminalidade financeira, mas que não amedrontou nenhum banqueiro e  apenas serviu para cobrar impostos não pagos.

Do Furacão ao Monte Branco, as fortunas repetem-se

A prática de branqueamento de capitais e fuga ao fisco continuou depois da "Operação Furacão" e alguns dos arguidos que viram os seus processos suspensos voltaram a ser apanhados em 2012 na "Operação Monte Branco", que envolve montantes de fuga ao fisco ainda maiores que os detetados em 2005, calculados entre 800 e 1000 milhões de euros. Desta vez, o esquema de fraude fiscal e lavagem de dinheiro sob investigação durou entre 2006 e 2012 e era liderado por Michel Canals, presidente da Akoya Asset Managment e antigo quadro do banco suíço UBS, responsável pela gestão de fortunas acima de 30 milhões de euros. Para além de Canals, os primeiros detidos em maio de 2012 foram os seus sócios na Akoya Nicolas Figueiredo e José Pinto, também ex-UBS, onde foram responsáveis pelos clientes portugueses e brasileiros. Outro arguido é Ricardo Arcos, ex-quadro da UBS em Lisboa e dono da ArcoFinance, empresa semelhante à Akoya.

Em dezembro do ano passado, o gestor angolano Álvaro Sobrinho, presidente do BES Angola, revelou ser acionista da Akoya, através de uma sociedade chamada Coltville. Sobrinho também assumiu deter a propriedade, em parceria com outros quatro familiares, da offshore Pineview Overseas, dona da Newshold (que detém o semanário "Sol", 15% da Cofina, 1,7% da Impresa), que era na altura candidata à privatização da RTP, o que motivou o comunicado de Sobrinho. As ligações da Akoya ao universo financeiro angolano fizeram cruzar as investigações do "Monte Branco" à do Estoril Sol Residence, o empreendimento imobiliário de luxo que é um condomínio da elite político-financeira do regime de Eduardo dos Santos, como revela o jornalista Rafael Marques no site Maka Angola

O percurso da Akoya e do capital angolano cruza-se com a presença de Ana Bruno, advogada que representa dezenas de offshores na administração de várias empresas. Foi a Ana Bruno que Michel Canals fez o telefonema a que teve direito quando foi detido no Porto com os seus sócios, na véspera do torneio de golfe que patrocinava no seleto Oporto Golf Club, em Espinho, onde estavam inscritos empresários de sucesso e ex-governantes de Cavaco Silva.

Duarte Lima e a loja de medalhas onde entravam malas de dinheiro

Logo a seguir às primeiras buscas e detenções, a imprensa divulgou que entre os clientes da Akoya estavam algumas das maiores fortunas do país, como a do presidente do BES, Ricardo Salgado, também ouvido na investigação, Oliveira e Costa, o banqueiro do BPN acusado de vários crimes, ou Duarte Lima. O ex-deputado do PSD detido preventivamente na investigação a uma das fraudes no BPN terá ajudado a polícia com informações sobre a rede e acabou por ir para casa com pulseira eletrónica. Segundo a revista Visão, a relação de Lima com Canals vem de há muitas décadas, tendo ambos gerido parte da fortuna do milionário Feteira em disputa pelos herdeiros. Terá sido através do telemóvel de Duarte Lima registado na Suíça, usado para contactar a rede de forma segura, que o ex-deputado fez a chamada que a polícia brasileira juntou como prova para o incriminar pelo assassinato de Rosalina Ribeiro, a secretária do milionário que era co-titular das suas contas na Suíça.    

Alguns dos clientes da rede usavam os serviços de Francisco Canas, dono de uma loja de medalhas que já fora agência de câmbios na baixa lisboeta, que transferia o dinheiro que lhe entregavam em malas para uma conta em seu nome do BPN IFI, de Cabo Verde, voltando a circular para contas no BPN em Portugal ou para outros bancos no estrangeiro. Francisco Canas, também conhecido por "Zé das Medalhas", cobrava 1% do dinheiro que branqueava. Quando foi detido, estava a levantar 450 mil euros em notas numa agência do BIC (ex-BPN) para entregar a Canals, que o distribuiria pelos seus clientes na sua visita ao Porto. Canas decidiu mostrar uma lista com mais de 400 nomes à polícia, que se calcula sejam responsáveis pela fuga ao fisco de 100 milhões de euros nos últimos cinco anos. Segundo o Expresso, Duarte Lima seria um dos clientes mais importantes, responsável por um terço do total do dinheiro lavado na loja de medalhas. Mas a defesa do advogado admite apenas ter entregue quantias próximas dos 2 milhões.

Investigação anima corrida à nova amnistia para a evasão fiscal 

A operação Monte Branco em maio de 2012 desencadeou uma corrida às regularizações extraordinárias de impostos - o processo RERT III, aberto por este Governo com prazo até julho do mesmo ano. Ricardo Salgado foi um dos beneficiários desta amnistia fiscal, em que os milionários que colocavam as suas fortunas longe do alcance do fisco português passaram a poder trazê-las de volta, pagando uma pequena percentagem e assim obtendo a garantia de não serem importunados pela justiça sobre esses crimes fiscais. Segundo dados das Finanças, foram declarados 3,4 mil milhões de euros, taxados a 7,5%, o que permitiu ao fisco arrecadar 258,4 milhões de euros. O Governo de Sócrates tinha feito duas iniciativas semelhantes e nessa altura arrecadou cerca de metade deste valor.

Uma boa descrição da operação foi feita pelo ex-banqueiro do BPP João Rendeiro, quando afirmou no seu blogue em junho de 2012 que "depois do Blitz mediático, a operação Monte Branco segue o seu curso normal. Já atingiu – e de que maneira – o seu objetivo principal que foi o de “acagaçar” os potenciais alvos levando-os a preventivamente fazerem o RERT III". Para o diretor do Jornal de Negócios, Pedro Santos Guerreiro, o RERT III "é uma fatura comprada de inocência" ou "o imposto do branqueamento legal". "Nas últimas semanas entraram malas de dinheiro em Portugal. Dinheiro que havia saído ilegalmente, passou por cá, foi amnistiado, pagou imposto e voltou, quase todo, a sair. Sem cheiro nem mácula, uma limpeza. Limpando consciências. Limpando até culpas de casos como o Monte Branco, de Michel Canals. O cofre do Fisco é um lavatório", resumiu o jornalista. 

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Neste dossier:

Dez escândalos pagos pelos contribuintes

A promiscuidade entre a política e os negócios tem sido uma constante na vida do país nas últimas décadas. O esquerda.net selecionou dez casos que escandalizaram o país, beneficiando gente poderosa e próxima do círculo do poder às custas dos contribuintes. Dossier organizado por Luís Branco. 

BPN: o assalto laranja ao país

O banco fundado e afundado por ex-governantes do PSD serviu de plataforma para branquear capitais e distribuir dinheiro pelo círculo próximo do partido. A fatura está a ser paga pelos contribuintes e pode chegar aos 7 mil milhões. As investigações e processos arrastam-se na justiça e o BPN acabou entregue ao capital angolano a preço de saldo.

Offshores do BCP: Banqueiros multados por manipulação de mercado

No início de 2013, um tribunal condenou nove ex-administradores do BCP a multas num total de mais de quatro milhões de euros, confirmando a condenação prévia do regulador da bolsa. Entre 1999 e 2007, o banco falseou as contas e escondeu a atividade de dezenas de offshores controladas por testas-de-ferro e usadas para comprar ações próprias. O buraco ronda os 600 milhões de euros e o banco é hoje um dos maiores destinatários do empréstimo da troika a Portugal, ao ficar com 3 mil milhões da linha de apoio à banca.

Fuga ao fisco e branqueamento de capitais: da "Operação Furacão" ao "Monte Branco"

A história de uma das maiores operações de fraude fiscal organizada pela banca e apanhada pela justiça arrisca-se a chegar ao fim sem que ninguém seja acusado. Na "Operação Furacão" desencadeada em 2005, os crimes fiscais ou prescrevem ou são perdoados em troca do pagamento do imposto em falta. Muitos voltaram a ser apanhados noutro esquema de branqueamento de capitais. A maioria aproveitou a amnistia oferecida pelo Governo para repatriar as fortunas e escapar às acusações, voltando a transferi-la em seguida para fora do país.

Quem ganha com as Parcerias Público Privadas?

O relatório preliminar da Auditoria Cidadã à Dívida Pública permite-nos conhecer melhor a gigantesca operação de transferência de capitais para os maiores grupos privados da finança e construção. Selecionámos alguns excertos do relatório que dizem respeito às PPP para este dossier.

Privatização da água seca os cofres das autarquias e aumenta a fatura

Os contratos de concessão de água a privados em Barcelos, Paços de Ferreira e Marco de Canavezes mostram as consequências terríveis da privatização do setor: os consumidores pagam mais e os privados lucram com a água que é de todos. E até recebem pela água que não sai da torneira: se o consumo baixar, o contribuinte paga a diferença.

BPP: Lucros para acionistas, buraco para os contribuintes

O Banco Privado Português foi arruinado pela má gestão dos administradores, que transferiam as perdas dos seus investimentos para as carteiras dos clientes. Um ano antes de falir, o banco pagou milhões em dividendos a acionistas como Balsemão, Saviotti e o próprio João Rendeiro, agora acusado em tribunal.  

Privatização do Totta: o jackpot de Champalimaud

A privatização do banco Totta & Açores em 1989 deu origem a uma grande polémica sobre a passagem da banca nacional para mãos espanholas. Champallimaud, recém-indemnizado pelo Estado, ficou com o banco apelando à proteção dos empresários nacionais, antes de o vender ao Santander. E quem mexeu os cordelinhos deste negócio do lado do Estado aparece depois do lado do banqueiro.

Portucale, submarinos e financiamento partidário

A primeira passagem de Paulo Portas pelo Governo ficou marcada pelas suspeitas de pagamento de luvas em negócios onde o Grupo Espírito Santo marcava presença, quer como parte interessada, quer como intermediário. Os escândalos ficaram impunes e há um milhão de euros depositado na conta do CDS no BES cuja proveniência continua em segredo.

Administração laranja acusada de fraude nos CTT

A história do prédio do CTT que em 2003 foi vendido duas vezes no mesmo dia, denunciada por Marinho Pinto, deu origem a uma investigação à gestão de Horta e Costa, nomeada pelo Governo Durão/Portas. O inquérito ficou três anos na gaveta e só agora onze pessoas sentam-se no banco dos réus, acusadas de  corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais, administração danosa, falsificação de documentos ou participação económica em negócio. O rasto da corrupção nos CTT também passou pelo BPN e abriu um buraco de 13,5 milhões nas contas da empresa pública.

Televisão Digital Terrestre: "Deu-se à raposa o galinheiro"

A Portugal Telecom, através da PT Comunicações, foi a única candidata ao concurso para a licença da TDT. Criou-se assim uma curiosa situação de monopólio, já que a PT, que possui a Meo, não tem qualquer interesse no sucesso da TDT. Milhares de pessoas perderam acesso à tv e muitos tiveram de pagar para ver os mesmos quatro canais que já viam…