É complicado medir o êxito ou o fracasso de uma greve geral pela via quantitativa. E a avaliação muda se levamos em consideração o contexto da greve e a forma em que foi produzida. A avaliação quantitativa é difícil porque não existe maneira de contar quem aderiu à greve, quem trabalhou para cumprir a cota mínima de serviços essenciais ou por coação direta do empresariado, quem não trabalhou devido à ação coletiva e quem foi ao trabalho apelando para alguma justificação individual. A única possibilidade de paralisar totalmente um país é fazendo um lock-out patronal, uma espécie de greve dos empresários, apoiada pelo governo. As verdadeiras greves gerais são sempre paralisações parciais, que permitem medir o grau de mal-estar, de mobilização e de apoio que a proposta dos sindicatos conseguiu alcançar entre as classes trabalhadoras.
Porém, se colocamos a nossa atenção nas condições em que ocorreu a greve e no seu processo de construção, fica claro que a mobilização ocorrida na Espanha no dia 29 de março foi um enorme sucesso. Não só porque os índices de paralisação foram altos entre os setores que tradicionalmente se mobilizam — indústria, transporte público etc. —, mas também porque se repercutiu bastante na administração pública. O coletivo Economistas frente a la Crisis avaliou que o consumo elétrico nas atividades económicas espanholas experimentou uma queda de 87,7% no dia da greve, em comparação com dias normais de trabalho e também com feriados previstos pelo calendário. O dado é bastante significativo daquilo que muitas pessoas perceberam: foi uma mobilização importante. Os meios de comunicação dizem que o sucesso da greve foi parcial, pois o comércio abriu as portas generalizadamente — o que mostra o baixo impacto da paralisação. Mas é bem conhecido que no comércio coexistem empresas familiares, pequenas empresas e grandes companhias que praticam sistematicamente atividades antissindicais. São lojas como El Corte Inglés ou Caprabo, que acumulam uma série de condenações por violações de direitos dos trabalhadores e coletivos, e que assumiram o boicote à greve como um objetivo irredutível.
A greve geral do dia 29 de março foi convocada com com pouco tempo para “aquecer os motores”, e sofreu com novos episódios de perseguição aos sindicatos na imprensa reacionária e um autêntico apagão informativo nos meios “liberais”. Teve que enfrentar o insistente argumento de que a greve é inútil, vencer a pressão política e simbólica das autoridades europeias, confrontar-se com o insistente discurso que diz que “não há alternativas” e que devemos assumir as medidas de austeridade com bom humor… Apesar de tudo isso — e das desconfianças que os sindicatos maioritários provocam numa parte expressiva da cidadania ativa —, a mobilização foi impressionante.
O tom definitivo da greve foi dado pelas massivas manifestações que ocorreram à tarde, não só em Madrid e Barcelona, mas em muitas cidades menores onde a convocatória teve um êxito notável. Qualquer um que se lembre de greves anteriores recordará que a manifestação da tarde era só o encontro dos ativistas mais mobilizados. No dia 29, porém, o protesto vespertino serviu para calar as vozes de todos os que pretendiam afirmar que a greve havia fracassado. Não foi casualidade. Os manifestantes que participaram nas atividades ao longo do dia diziam que as ações da manhã, os piquetes informativos nos bairros e as concentrações locais já tinham reunido muita gente e superado as expectativas. As manifestações da tarde de 29 de março de 2012 mostram a continuidade de um processo mobilizador que começou em maio do ano passado e que — convocadas pelos Indignados ou sindicatos e organizações sociais tradicionais — levaram às ruas centenas de milhares de pessoas. Se, por um lado, passamos da crise financeira à depressão generalizada e ao roubo de direitos sociais, por outro produziu-se uma mudança: o povo deixou de esperar e partiu para a mobilização ativa.
II
Essa mudança deu-sepela soma de muitos fatores. Ao lado da mobilização oriunda das organizações tradicionais, especialmente dos sindicatos, houve um ganho de consciência por parte da população, que percebeu que as políticas neoliberais adotadas por diversos governos constituem um ataque aos direitos dos trabalhadores e aos direitos sociais, às condições de vida dos cidadãos e ao próprio papel organizacional e institucional do Estado. O cinismo com que o patronato firmou um pacto pelo emprego poucos dias antes da aprovação de uma reforma laboral que não criaria novos postos de trabalho, mereceria por si mesmo uma resposta contundente. A reforma fecha muitas portas aos sindicatos, e é em si mesma uma declaração de guerra à ação sindical e uma ameaça ao resto dos direitos dos trabalhadores ainda vigentes. Pode-se criticar a atuação dos sindicatos como excessivamente ziguezagueante, contraditória, mas não há dúvida de que nos últimos meses os sindicalistas promoveram uma série de mobilizações (contra a reforma da Constituição, os cortes de verba, o emprego público) e iniciativas que elevaram a participação pública e a ação coletiva. Além disso, é preciso lembrar — e não é pouco — que se uniram à convocatória geral todos os sindicatos minoritários, o que permitiu olhar para a greve como uma resposta autêntica de classe.
Por outro lado, o surgimento dos Indignados — com todas as suas contradições e discursos ambíguos, mas com nível notável de ativismo social — constituiu um importante sopro de energia, de renovação e de politização para setores desencantados ou alheios à ação coletiva. As suas mobilizações tiveram momentos de êxito, e a persistência de grupos locais gerou uma nova rede organizacional que às vezes compete e às vezes coopera com as velhas estruturas de mobilização. Em Barcelona, essa rede foi a principal condutora dos piquetes de greve nos bairros, ainda que, em muitos deles, tenham contado com a participação de associações de bairro e, nuns poucos, onde já existe uma velha tradição de ativismo organizado, se tenham incorporado a comités unitários mais amplos.
Existe um processo social que favorece a mobilização massiva e a heterogeneidade social que se percebe nas grandes manifestações. Até há pouco tempo atrás, a segmentação social que divide a população assalariada refletia-se numa forte diferenciação de comportamentos frente às grandes convocações. A maior parte das greves gerais anteriores eram, fundamentalmente, greves dos trabalhadores manuais, greves “operárias”, com pouca participação de empregados públicos e empregados de colarinho branco. Os ataques às condições de trabalho dos funcionários públicos e os cortes de gastos em saúde e educação estão a contribuir para gerar outra perceção social, assim como a brutal falta de expectativa de trabalho para a juventude educada e a extensão de empregos precários. As políticas neoliberais estão a atingir muito mais gente, estão a mostrar de forma mais forte a diferença radical entre capital e trabalho, e estão a destruir parte das estruturas que sustentavam as classes médias assalariadas. Ainda que incipiente, a brutalidade da crise abre as portas para uma reconstrução do sujeito coletivo, da autorrepresentação da classe operária como um grupo social diferenciado. É, sem dúvida, um processo em andamento (por exemplo, destaca-se a maior presença dos professores em relação a profissionais de saúde nas mobilizações mais recentes) e contraditório, mas que deve ser considerado seriamente na hora de elaborar propostas, mobilizações e discurso social.
III
O resultado do processodepende da inteligência e da capacidade de seus atores para desenvolver um novo processo social. A curto e médio prazo, a questão fundamental é como prosseguir com a mobilização. Parece claro que as elites no poder, em todos os níveis, estão dispostas a sustentar com intransigência as suas propostas. E que não vão ceder por causa de umas poucas manifestações — nesse sentido, a Grécia mostra o caminho. Os poderosos contam com o esgotamento e desânimo do povo para conduzi-lo à rendição final. Por isso é tão crucial saber escolher um caminho de mobilização que seja capaz de resistir ao desgaste, mas que mantenha a tensão. Não há solução fácil para este dilema. E é possível que floresçam as respostas dispersivas, desagregadoras.
A insistente exigência dos sindicatos em pedir espaços de negociação com o governo parece mais dirigida a neutralizar as bases sociais que estão de acordo com a ordem das coisas — e não a mobilizar os trabalhadores. São incompreensíveis quando é evidente que as elites não estão nem um pouco dispostas a negociar nada seriamente. Geram ressentimento nos aliados mais distantes e não esclarecem o que parece crucial ao movimento: explicar bem à sociedade quais são as linhas que nenhum país decente pode ultrapassar; explicar muito bem quais são as contradições, as injustiças, as incoerências das políticas atuais; explicar bem as propostas básicas de regulação que devem ser impostas. Os sindicatos só poderão ampliar a sua legitimidade em setores sociais que devem ser seus aliados naturais gerando propostas claras nas suas próprias bases, especialmente numa conjuntura em que a negociação à porta fechada parece mais uma via aberta à concessão sem contrapartidas.
Porém, o sucesso da greve geral não pode fazer-nos pensar que a ideia de uma mobilização permanente é um caminho possível. A greve geral é uma ação custosa, difícil. É optar sempre pela ofensiva geral. Os ativistas mais decididos estão sempre a correr o risco de ignorar os custos, de esquecer-se do desgaste que se produz entre as pessoas que não concordam totalmente com as suas propostas. Deixam de se lembrar, também, que a própria classe trabalhadora está num nível tal de vulnerabilidade (desemprego, endividamento, precariedade) que as suas forças se veem limitadas. Seria bom que todas as partes prejudicadas pela crise reconhecessem pelo menos um máximo denominador comum e se dedicassem a elaborar propostas para levar a cabo uma campanha de mobilização sustentável, que avancem no estabelecimento de propostas compartilhadas e que abram espaços de confiança e unidade. Essa é uma tarefa urgente e necessária para todas as pessoas que lideram, promovem e animam organizações e campanhas, que continuam a pensar que é necessário opor-se à barbárie atual. Começando pelos principais líderes sindicais e seguindo por toda o conjunto de ativistas dos diversos movimentos sociais.
IV
O único ponto negativoque a direita conseguiu explorar foram as ações violentas que ocorreram em Barcelona — uma violência mais simbólica que real, mas totalmente gratuita e injustificada. Queimar lixeiras é um ato que nem sequer possui o simbolismo que poderia ter o incêndio de carros ou o ataque a lojas de luxo que ocorreram noutros tempos. Trata-se simplesmente de pensar que o conflito com a polícia tem significado em si mesmo. Tampouco tem a ver com os piquetes de greve, que agem como força coletiva que estende e dá visibilidade a si mesma. Infelizmente, alguns grupelhos frequentemente aparecem nas grandes mobilizações e provocam distorções. Permitem, assim, a criação de uma cortina de fumo que não apenas oculta a violência patronal, a coação individual praticada contra milhares de trabalhadores para que não aderissem à greve, mas também impede observar os excessos cometidos pela polícia.
Com certeza, muitos manifestantes pacíficos ficaram indignados ao ver as lixeiras em chamas. Porém, muitos também sofreram com os cassetetes metálicos e gases lacrimogéneos utilizados pelas forças de ordem catalãs — que, mais uma vez, mostraram impreparação para lidar com esse tipo de situação. E muitos ainda nos perguntamos: como é possível que a polícia não realize uma ação preventiva eficaz, se tais grupos estão tão identificados como diz o governo da Catalunha? Em todo caso, o agravamento das condições sociais dá asas a novas respostas violentas e obriga a pensar alternativas que impeçam que as imagens apelativas sirvam para ocultar o debate necessário.
V
A greve geral de29 de março foi um sucesso. E deveríamos começar por dar os parabéns a todas as pessoas que trabalharam para isso, que demonstraram que a diferença pode conviver com a unidade, que as políticas neoliberais merecem uma rejeição massiva, que somos milhões de pessoas que acreditamos numa sociedade mais justa. O êxito da greve deve fazer com que continuemos a lutar para construir um amplo movimento de resposta, para fortalecer a unidade contra a minoria social que continua a ver o mundo como uma propriedade particular e as pessoas, como escravos dos seus interesses. Sindicalistas e ativistas trabalhámos lado a lado para que a greve acontecesse. Devemos considerá-la um estímulo para dar novos passos, produzir consensos e encontrar novos caminhos de transformação social.
Artigo de Albert Recio1, publicado em Sin Permiso. Tradução de Daniela Frabasile e Tadeu Bredapara Outras Palavras
1 Albert Recioé professor de economia aplicada na Universidade Autónoma de Barcelona