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Vivemos uma crise do modelo patrimonialista e neoliberal do mundo árabe

Nesta primeira parte da entrevista de Gilbert Achcar à Marxist Left Review, o autor mostra a especificidade do neoliberalismo autoritário árabe e reflete sobre o caráter estrutural da crise que acontece nesta região do mundo. “As revoluções sobreviventes no Médio Oriente e Norte de África (parte um)”.
Revolta na Praça Tahrir, no Egito, 2012.
Revolta na Praça Tahrir, no Egito, 2012. Foto de AK Rockefeller/Flickr.

Comecemos por regressar ao que parece ser agora uma memória distante: a onda de choque revolucionária que varreu o mundo árabe em 2011. Defendeste no teu livro The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising que estes acontecimentos eram apenas o começo de um processo revolucionário prolongado, dada a natureza específica do capitalismo no Médio Oriente. Podes explicar estas dinâmicas da economia política no mundo Árabe e a sua relação com as formas de governo autoritário?

Para começar com uma consideração geral: é óbvio agora que estamos a testemunhar uma grave crise global do estádio neoliberal do capitalismo. O neoliberalismo desenvolveu-se enquanto estádio capitalista de pleno direito desde a aplicação do seu paradigma económico nos anos 1980. Este estádio atravessa uma crise desde a Grande Recessão de há uma década. Esta crise está a revelar-se sob o nosso olhar, resultando em crescentes revoltas sociais. Se olharmos hoje para o que está a ocorrer no Chile, Equador, Líbano, Iraque, Irão, Hong Kong e vários outros países, parece que o ponto de fervura está a ser atingido por cada vez mais países.

Os acontecimentos na região árabe enquadram-se nesta crise global geral, claro. Mas há algo específico nesta revolta regional. Aqui, as reformas neoliberais foram implementadas num contexto dominado por um tipo específico de capitalismo – um tipo determinado pela natureza específica do sistema estatal regional que é caracterizado pela combinação em várias proporções de rentismo e patrimonialismo ou neopatrimonialismo.

O que é mais específico à região é a alta concentração de Estados plenamente patrimoniais, uma concentração inigualada em qualquer outra parte do mundo. Patrimonialismo significa que as famílias governantes são donas do Estado, quer sejam donas dele através da lei em condições absolutistas quer sejam donas dele apenas de facto. Estas famílias olham para o Estado como sua propriedade privada e para as forças armadas – especialmente os corpos armados de elite – como a sua guarda privada.

Esta característica explica porque é que as reformas neoliberais tiveram os seus piores resultados económicos na região árabe entre todas as partes do mundo. As mudanças inspiradas pelo neoliberalismo na região resultaram nas mais baixas taxas de crescimento económico em qualquer parte do mundo desenvolvido e, consequentemente, nas mais altas taxas de desemprego do mundo – especificamente desemprego jovem.

A razão para isto não é difícil de compreender: o dogma neoliberal é baseado no primado do setor privado, a ideia de que o setor privado deve ser a força motora do desenvolvimento, enquanto que as funções económicas e sociais do Estado devem ser cortadas. O dogma diz resumidamente: introduzam medidas de austeridade, podem o Estado, cortem os gastos sociais, privatizem as empresas do Estado e deixem a porta escancarada para as empresas privadas e o comércio livre e os milagres irão acontecer.

Agora, num contexto de falta de pré-requisitos do capitalismo tipo-ideal, a começar pelo Estado de direito e previsibilidade (sem a qual o investimento privado de longo prazo não pode acontecer), o que se acaba por ter é a maior parte do investimento privado indo para o lucro fácil e a especulação, especialmente no imobiliário junto com a construção, mas não na manufatura e na agricultura, não nos setores-chave da produção.

Isto criou um bloqueio estrutural ao desenvolvimento. Logo, a crise geral da ordem global neoliberal vai, na região árabe, para além da crise do neoliberalismo sendo uma crise estrutural do tipo de capitalismo aí prevalecente. Não há assim nenhuma saída da crise na região através de uma mera alteração de políticas dentro do quadro continuado do tipo de Estados existentes.

É indispensável uma mutação radical de toda a estrutura social e política, sem a qual não haverá fim à vista aguda crise económico-social e à desestabilização que afeta toda a região.

É por isso que uma onda de choque revolucionária tão impressionante sacudiu toda a região em 2011, em vez de apenas protestos de massas. A perspetiva era verdadeiramente insurrecional com o povo a cantar: “O povo quer derrubar o regime!” – o slogan que se tornou ubíquo na região desde 2011. A primeira onde de choque revolucionária desse ano abanou fortemente o sistema regional de Estado, revelando que tinha entrado numa crise terminal. O velho sistema está irreversivelmente a morrer mas o novo ainda não pode nascer – estou-me a referir aqui, claro, à famosa frase de Gramsci – e é então que os “sintomas mórbidos” começam a surgir. Usei esta frase no título da minha sequela de 2016 ao livro de 2013 The People Want.

 

É verdade que as medidas neoliberais no mundo árabe aceleraram apesar da vaga revolucionária? Os preços da comida no Egito estão a aumentar bem como a eletricidade e os preços dos combustíveis e a estimativa conservadora do Banco Mundial diz que cerca de 60% dos egípcios eram “ou pobres ou vulneráveis”, isto enquanto o regime renovava a repressão dos protestos de rua. Podes falar acerca da relação entre a contra-revolução e a aceleração do neoliberalismo?

O Egito proporciona-nos um muito bom exemplo disto, na verdade. Quando a Grande Recessão chegou em 2008, muitos acreditavam que ela anunciava o fim do neoliberalismo e que o pêndulo iria voltar a estar do lado do paradigma Keynesiano. Isto era uma enorme ilusão, contudo, pela simples razão de que as políticas económicas não são determinadas por considerações intelectuais ou empíricas; são determinadas ao invés e acima de tudo pelo equlíbrio de forças de classes.

A viragem neoliberal foi guiada desde os anos 1980 por frações da classe capitalista, as interessadas na financiarização. De forma a trazer uma nova viragem, é necessário haver uma mudança no equilíbrio social de forças, que cause impacto no próprio equilíbrio de forças da classe capitalista, uma mudança pelo menos equivalente à que aconteceu nos anos 1970 e 1980.

Isto ainda não aconteceu e as forças progressistas que se opõem ao neoliberalismo ainda provaram ter força suficiente para impor a mudança. Os neoliberais ainda são os donos da bola: alegam que a razão da crise global não é o neoliberalismo mas a falta de uma implementação completa das suas receitas. Apesar de terem recorrido massivamente em 2008-9 a medidas que contradiziam o seu próprio dogma, tais como um enorme resgate do setor financeiro através de fundos estatais, rapidamente reverteram o caminho para cada vez mais políticas neoliberais levadas cada vez mais longe.

Foi exatamente isso que aconteceu na região árabe, apesar da gigantesca onda de choque revolucionária que abalou toda a região em 2011. Quase todos os países de língua árabe assistiram a uma subida massiva do protesto social em 2011. Seis dos países da região – ou seja mais de um quarto deles – testemunharam levantamentos massivos. E, contudo, a “lição” de acordo com o FMI, o Banco Mundial, esses guardiões da ordem neoliberal, é que tudo aconteceu porque as receitas neoliberais não tinham sido implementadas de forma suficientemente exaustiva! A crise, alegaram, era devida ao desmantelamento insuficiente dos restos das anteriores economias capitalistas de Estado. Concluíram que a solução é o fim de todas as formas de subsídios sociais, ainda mais radicalmente do que já tinha ocorrido.

Contudo, a razão pela qual os governos da região não fizeram mais do mesmo foi porque tiveram medo de o fazer. Isto não é a Europa de Leste depois da queda do muro de Berlim, quando as pessoas engoliram o comprimido muito amargo das mudanças neoliberais massivas com esperança de que isso lhes trouxesse a prosperidade capitalista. No mundo árabe, as pessoas não estão dispostas a pagar o preço disso porque não têm ilusões de que os seus países se venham a parecer à Europa ocidental como os europeus de leste foram levados a acreditar.

Assim, de forma a impor mais medidas neoliberais sobre o povo, é necessária força brutal. O Egito é portanto uma ilustração muito clara do facto de que a implementação do neoliberalismo não vai de par com a democracia como a fantasia do “fim da história” de Fukuyama proclamava há trinta anos.

O Egito mostra claramente que de forma a implementar completamente o programa neoliberal no Sul Global são necessárias ditaduras. Sendo a primeira de tais implementações o Chile de Pinochet, claro.

No Egito, é agora a ditadura pós-2013 dirigida pelo Marechal de Campo – o regime repressivo mais brutal que os egípcios sofreram desde há muitas décadas. Foi o mais longe possível na implementação do programa neoliberal completo advogado pelo FMI com um custo esmagador para a população, com uma subida acentuada do custo de vida, dos preços da alimentação, dos transportes, de tudo. As pessoas têm sido completamente devastadas. A razão pela qual a sua raiva não explodiu nas ruas numa escala massiva é porque têm sido intimidadas pelo terror de Estado. Mas a implementação plena das receitas neoliberais do FMI ainda não produziu um milagre económico. As tensões estão assim a escalar e mais tarde ou mais cedo o país vai entrar em erupção outra vez. Já houve alguma explosão limitada de raiva popular no passado mês de setembro; mais tarde ou mais cedo haverá uma maior muito maior.

 

Gilbert Achcar é professor de Estudos do Desenvolvimento e Relações Internacionais no SOAS da Universidade de Londres. É autor de vários livros sobre o Médio Oriente, incluindo The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising. Esta entrevista, publicada originalmente na Marxist Left Review, foi conduzida por Darren Roso. A tradução é de Carlos Carujo.

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