No início de fevereiro, a astrofísica molecular Clara Sousa-Silva descobriu algo alarmante: dados científicos cruciais de que necessitava para a sua investigação tinham desaparecido dos servidores do governo federal. Como cientista que estuda as atmosferas de outros planetas e luas utilizando telescópios terrestres, Sousa-Silva depende de dados de monitorização do clima da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) para filtrar os efeitos atmosféricos da Terra das suas observações. O que começou por ser um obstáculo pessoal à investigação rapidamente revelou uma crise muito maior que está a afetar cientistas de todas as disciplinas.
Este desaparecimento de dados coincide com a implementação agressiva de duas iniciativas interligadas da administração Trump: o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk, e a campanha do Presidente Donald Trump para expurgar o governo federal de tudo o que considere “woke" [1], incluindo os esforços para combater as alterações climáticas. O DOGE colocou um alvo nas costas da NOAA, juntamente com outras agências que reúnem e administram dados científicos cruciais, como a Agência de Proteção Ambiental (EPA). Entretanto, os decretos de Trump desmantelaram inúmeras iniciativas climáticas, juntando-as à sua definição cada vez mais nebulosa e alargada de “wokeness”.
As consequências foram rápidas e graves. O financiamento da investigação sobre as alterações climáticas foi retirado ou alterado, enquanto os cientistas das agências federais foram transferidos ou afastados. Os dados e informações sobre o clima foram sistematicamente retirados dos sítios Web do governo, enquanto o acesso às bases de dados científicas se tornou cada vez mais restrito - tudo isto sob o pretexto de combater o “wokeness” e melhorar a “eficiência do governo”.
Nesta entrevista, Sousa-Silva, professora de física no Bard College, especializada em atmosferas extraterrestres, detalha o colapso das bases de dados mantidas pelo governo federal nas semanas que se seguiram à tomada de posse de Trump. A situação revela dois desenvolvimentos preocupantes: a remoção direcionada de informações sobre ciência climática e danos mais amplos na infraestrutura causados por interrupções de pessoal em agências federais. Como explica Sousa-Silva, as consequências vão muito além da sua investigação sobre outros planetas, podendo prejudicar a capacidade de previsão meteorológica e apagar décadas de registos científicos insubstituíveis.
Entrevista realizada por Meagan Day para a revista Jacobin
Pode começar por explicar a natureza da sua investigação?
Estudo as atmosferas de outros planetas e luas, principalmente através da observação da nossa própria atmosfera com telescópios terrestres.
Qual é a relação entre o seu trabalho e a ciência do clima?
Como utilizo principalmente telescópios terrestres, se quiser analisar dados que pertencem a planetas extraterrestres do nosso sistema solar ou de outros sistemas, tenho de ser capaz de subtrair o efeito da atmosfera da Terra. Por isso, preciso de o saber muito bem.
Pode explicar-nos como descobriu as supressões de dados e o que é que desapareceu especificamente?
Há algumas semanas, fui ver os dados de monitorização do clima recolhidos em estações terrestres de monitorização, incluindo uma em Mauna Loa, no Havai. Mauna Loa é a montanha ao lado de Mauna Kea, onde estão os meus telescópios. Utilizamos os dados de Mauna Loa, que são dados do programa de registo de dados climáticos da NOAA, para obter informações sobre o aspeto do céu, de modo a podermos removê-las dos nossos próprios dados.
Mas todos os dados tinham desaparecido. Por isso, contactei os meus colegas cientistas do clima, que basicamente fazem o mesmo trabalho que eu, mas em vez de o fazerem para atmosferas fora da Terra, fazem-no para a Terra. Começaram a entrar em pânico porque faltavam muitos dados, nomeadamente todos os dados sobre o CO₂.
Depois ficámos a saber que tinha havido uma manutenção programada de algumas bases de dados, mas mesmo depois de as bases de dados terem voltado a estar online, continuavam a faltar coisas de forma intermitente. A certa altura, muitos dos dados sobre gases com efeito de estufa estavam em falta. Depois voltaram, mas não o CO₂. Depois, o CO₂ voltou.
Contactei os meus colegas que utilizam os dados da Agência de Proteção do Ambiente (EPA) e eles relataram a mesma coisa - os seus repositórios não estavam acessíveis. Descobri através dos meus colegas que trabalham na NOAA que não tinha havido um esforço centralizado para salvaguardar estes dados, o que significa que o único acesso que as pessoas têm é através de bases de dados online. Se estas forem desligadas, mesmo que os dados não sejam apagados, tornam-se basicamente inúteis.
Quando viu os dados em falta, apercebeu-se imediatamente de que isto tinha alguma coisa a ver com a mudança de administração presidencial?
Calculei que sim. Mas só soube mesmo quando vi que tinha havido uma presença do DOGE na NOAA. Sei, pela minha experiência neste tipo de trabalho, que muitas vezes é um ou dois funcionários que ninguém valoriza muito que estão a manter estas bases de dados. Se eles forem afastados por qualquer razão, isto não significa necessariamente que estas bases de dados continuem a funcionar. Deixarão de funcionar e ninguém saberá como as reativar.
Eu sabia que muitas pessoas estavam provavelmente a perder os seus empregos ou a ser suspensas ou desincentivadas a ficar. O acesso a estes dados tornar-se-ia necessariamente precário. Por isso, comecei a tentar salvá-los. Só mais tarde é que me apercebi que não se tratava apenas de dados sobre o clima.
Muitos dos meus dados do espaço - Vénus e outras estrelas na nossa vizinhança galática - que eu pensava realmente que não seriam alvo de qualquer tipo de ataque, começaram a desaparecer. Os dados de um colega sobre Júpiter começaram a desaparecer. A minha única premissa é que se trata de dados financiados pelo governo federal, pelo que as perturbações nas agências federais estão a causar os desaparecimentos.
Os contribuintes são donos desses dados. Espero que ninguém esteja a apagar os dados, mas não importa se não se apagam os dados se os tornarem inacessíveis. É quase como se o fizessem, porque ninguém se lembrará dos nomes dos ficheiros ou das estruturas de diretórios para os recuperar.
Parece que há dois níveis nesta questão: ataques politicamente motivados aos dados da ciência do clima e também uma perturbação mais ampla dos trabalhadores federais e das infra-estruturas através do DOGE, que causou problemas de manutenção dos dados. Está correto?
Exatamente. No mínimo, estes dados estão em perigo. Para ser justa, têm estado intermitentemente online e offline nas últimas semanas. Eu própria tentei guardar o máximo que pude, mas nem sequer consigo utilizar plenamente os dados, porque alguns deles precisam de especialistas para nos encaminharem para os scripts necessários para os ler, e esses especialistas não respondem na maioria das vezes.
A questão do pessoal tem consequências para o acesso a coisas que se pensaria serem passivas - ou seja, os dados já foram obtidos, já foram pagos, estão apenas num repositório. Mas, na verdade, a manutenção da acessibilidade dos dados requer pessoas. Se as pessoas estão a ser despedidas ou a dar prioridade a outro trabalho, então é como se os dados nunca tivessem existido.
O que é que você e os seus colegas estão a fazer para resolver este problema?
Estou a trabalhar para guardar o máximo de dados possível, uma vez que estes voltam a aparecer de forma intermitente. Mas gostava que houvesse um esforço centralizado para os disponibilizar de outra forma. Bem, na verdade, havia - era o governo federal! É assim que deve ser.
Eu não tenho o poder técnico para disponibilizar até mesmo os meus backups para o resto do mundo como o governo federal costumava fazer. Quase me sinto como se agora tivesse um pequeno monte egoísta de dados climáticos que não sei bem como distribuir sem colocar um alvo nas minhas costas. Espero não ser a única a salvaguardar todos os dados históricos de CO₂ sobre as estações de monitorização americanas. De certeza que mais alguém também o está a fazer, mas isso não está claro para mim.
Qual será o impacto na sua investigação se eles desaparecerem e quais serão os efeitos em cascata em toda a comunidade científica?
As consequências para a minha investigação sobre Vénus são muito más. Serei uma astrofísica pior. Mas isso parece-me muito pouco tendo em conta a importância de poder monitorizar a forma como o nosso clima está a mudar. Para a ciência climática, isto é absolutamente desastroso.
Entrevista
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Estas moléculas não são apenas importantes para monitorizar as alterações climáticas. São importantes para prever o tempo. Mesmo que não se pense que a ciência climática é um esforço que vale a pena, tenho quase a certeza de que todos concordamos na questão bipartidária de que é bom poder prever o tempo. É por isso que isto é tão mau. Se perdermos o acesso a estes dados, a nossa capacidade de prever tanto a chuva comum como os fenómenos meteorológicos extremos fica comprometida para sempre, porque o registo histórico é a forma como modelamos as tendências.
É muito difícil não nos sentirmos desesperados, porque são precisas décadas para criar um sistema funcional de acesso a estes dados. Demora tanto tempo a criar um sistema como o da acessibilidade dos dados, mas é tão rápido deitá-lo abaixo. Basta despedir algumas pessoas cruciais ou desligar um servidor e já está. Está tudo perdido.
Acha que Trump e a sua administração têm noção do impacto que estão a ter na ciência em nome do “anti-wokeness” e da chamada eficiência governamental?
Acho que eles estão a dizer a si próprios, e até certo ponto a nós, que o plano é deitar abaixo uma série de coisas, ver quem se queixa, e depois consertar essas coisas. Em princípio, consigo perceber como é que eles pensam que isso funcionaria. O problema é que o pessoal necessário para avariar alguma coisa é uma pessoa. O pessoal necessário para consertar algo é uma ordem de grandeza maior do que isso.
A menos que estejam a planear contratar astrofísicos e cientistas do clima em número cem vezes superior ao de cada um dos seus destruidores DOGE, não conseguem reparar nem mesmo as coisas que descobrem que devem ser reparadas. Esse rácio de pessoal simplesmente não existe.
Meagan Day é editora associada da Jacobin. Artigo publicado na Jacobin. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.
Nota:
[1] NT: Termo inicialmente usado para designar alguém atento contra as injustiças e a discriminação, sobretudo racial. Na sua "batalha cultural", a extrema-direita dos EUA passou a usá-lo pejorativamente para designar pessoas que supostamente procuram impor as suas ideias progressistas ao conjunto da sociedade.