Mineração em mar profundo

“Somos o primeiro país europeu que tem uma moratória formalizada”. Entrevista a Catarina Abril, ativista da Sciaena

18 de abril 2025 - 14:11

A moratória à mineração em mar profundo, publicada em Diário da República, coloca Portugal na frente da luta pela conservação dos oceanos. Em entrevista ao Esquerda.net, a ativista da Sciaena Catarina Abril fala sobre o percurso de luta de uma das maiores vitórias do movimento ambiental português.

porDaniel Moura Borges

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Catarina Abril
Catarina Abril. Fotografia via Facebook da Sciaena.

Portugal é o primeiro país europeu a aprovar uma moratória à mineração em mar profundo. Num país que tem uma grande Zona Económica Exclusiva, e com uma economia azul particularmente forte nas ilhas, a proibição da mineração em mar profundo até 2050 é uma das maiores vitórias do movimento ambiental das últimas décadas.

A Sciaena é uma organização não-governamental com foco na conservação marinha, que juntamente com outras ONGs portuguesas liderou a luta por uma moratória à mineração em mar profundo. Em entrevista ao Esquerda.net, a ativista da Sciaena, Catarina Abril, faz um balanço deste processo de luta, dos seus atrasos e avanços, e da importância da medida para a proteção dos fundos marinhos.


Como é que se define a mineração em mar profundo, quais são os seus impactos e porquê é que a Sciaena tem lutado contra ela?

A mineração em mar profundo é, como o nome indica, a exploração mineira no fundo do mar, para lá dos 200 metros. Aquilo que nós consideramos o ecossistema do mar profundo. É difícil enumerar exatamente os impactos. Por um lado, porque temos um enorme desconhecimento sobre o que é a biodiversidade e como é que funciona o mar profundo, mas daquilo que sabemos, existem impactos muito graves do ponto de vista do levantamento do subsolo dos fundos marinhos, que têm um papel crucial no armazenamento de carbono. Isto levanta questões também do ponto de vista da ressuspensão de metais pesados que são altamente contaminantes para a biodiversidade marinha no mar profundo. Do ponto de vista da poluição, não só sonora como luminosa, também terá certamente impactos. E um dos grandes perigos é a destruição massiva do fundo do mar, à semelhança de algumas outras atividades, como é o caso da pesca de arrasto.

A luta pela mineração em mar profundo tem uma expressão internacional forte. Foi a partir daí que se traduziu para Portugal?

Foi o que deu sentido de urgência à luta em Portugal. A Sciaena começou a trabalhar nesta área em 2017, quando começou a haver algum interesse nos Açores. Na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) existe uma provisão na Convenção de Direito Marinho Internacional que diz que num período de dois anos, na ausência de regulamentos, um Estado-membro pode fazer uma aplicação para uma licença de exploração. E o que aconteceu em 2021 foi que a nação insular do Pacífico, Nauru – muito motivada por interesses privados de uma empresa em particular, que é a The Metals Company – espoletou esta previsão da convenção, o que deu aqui um sentido de urgência a nível internacional de terminar o chamado Código Mineiro, que é o conjunto de regulamentos que dá o enquadramento legal da mineração em águas internacionais. Em Portugal, já em 2017 havia interesse nos Açores de uma empresa que era a Nautilus, que por razões alheias entrou em falência. Mas soubemos que em 2022 houve também interesse de outra empresa, da Duna Magnata, em realizar esta atividade nos Açores. A nível internacional, existem três licenças neste momento suspensas, da Polónia, da Rússia e da França, que são a cerca de 200 metros do limite da plataforma continental estendida de Portugal. Estes impactos não vão ficar circunscritos e corremos o risco de, realizando-se em mar alto, ter consequências também para a nossa zona económica exclusiva.

A nível europeu, é uma luta que teve avanços significativos?

Sim e não. Do ponto de vista do Parlamento Europeu, existiram muitos esforços em fazer acontecer uma recomendação, que não é legalmente proibitiva, mas houve sim um grande movimento. Sobretudo porque a Noruega em particular começou a posicionar-se mais pró-mineração e inclusive estava a planear abrir a sua Zona Económica Exclusiva a esta atividade. Então houve uma necessidade da União Europeia de se posicionar contra isso, até por questões de partilha de outros recursos que serão afetados por esta atividade, nomeadamente as pescas. França posicionou-se de uma forma muito forte em termos de proibição contra esta atividade, mas aquilo que sabemos é que isto ainda está na esfera da intenção e ainda não tinha sido concretizada até agora recentemente Portugal ter formalizado esta moratória.

Em Portugal, tivemos duas lutas muito expressivas. Uma na costa algarvia contra a prospeção de petróleo, e nos Açores contra a extração de minerais. São esses movimentos que impulsionam uma luta mais nacional contra a mineração em mar profundo?

Sim. Eu acho que o trabalho contra a mineração vem muito na continuação da PALP (Plataforma Algarve Livre de Petróleo), no Algarve. Foi uma luta contra a extração de hidrocarbonetos em Aljezur. O Estado português foi levado a tribunal e nós conseguimos vencer essa luta. Acho que muito do nosso ímpeto também para trabalhar na mineração em mar profunda veio desse momento e desse reconhecimento que com o trabalho em rede e mobilizando a sociedade civil era possível ter uma vitória deste tipo. Para nós, sabendo que os Açores são, do ponto de vista da morfologia do fundo do mar, o local principal de interesse, nunca nos passou pela cabeça que esta discussão poderia iniciar-se em Portugal sem ser por lá. E quando na Conferência dos Oceanos foi lançada a petição nacional para uma moratória à mineração em mar profundo para águas nacionais, foi em paralelo lançada uma petição para o Governo Regional dos Açores, de uma moratória regional a esta atividade. Nós entretanto fomos aos Açores e fizemos um debate na Assembleia Regional, apresentámos a petição e fomos surpreendidos com um largo apoio a esta iniciativa. Até porque tivemos um grande apoio da comunidade piscatória e também da comunidade do turismo, que depende em larga escala nos Açores do bem-estar do oceano, e foi um bocadinho este conjugar de posições que nos fez avançar nesta matéria.

Em ambas as lutas a população local teve um papel importante. Que atores é que havia nessas disputas, de um lado a favor e do outro contra?

É difícil posicionar ao certo quem é que estava contra a moratória. Porque no encadeamento da Conferência do Oceano, houve uma mobilização da sociedade civil e o tema tornou-se tóxico. Sabíamos que havia do ponto de vista industrial algumas empresas que tinham interesse em fazer isto nos Açores. E tínhamos algumas questões do ponto de vista do Governo. Se seria algo que aceitariam, porque uma moratória implica num espaço de tempo a proibição de uma atividade que, a pretexto da crise ecológica tem sido popularizada como uma falsa solução e então sabíamos que iríamos ter alguma resistência. A favor houve mobilização das ONGs e de movimentos locais, e depois começámos a tentar procurar aliados, porque efetivamente quem vai sofrer com isto é quem diretamente depende do bem-estar destes recursos.

Especialmente quando estes projetos de mineração em mar profundo acontecem muito próximo da costa.

Sim, grande parte dos Açores é mar profundo. Estão muito perto do sítio onde estes minérios estão. Os grandes alvos desta mineração são três tipos de minérios, que são as crostas de ferro e de manganês, os sulfuretos polimetálicos e os famosos nódulos polimetálicos. Não é difícil perceber como é que os Açores, com a quantidade de fontes hidrotermais e montes submarinos, é um hotspot destes minérios e muitas vezes parte da biodiversidade está dependente destes recursos.

Que papel é que a comunidade científica teve no processo desta luta?

A comunidade científica, particularmente a comunidade científica açoriana, teve um papel mais do que central. Até porque - isto pode ser algo que as pessoas não sabem - nós temos dos melhores cientistas do mar profundo, mais reconhecidos a nível internacional. E tivemos muita sorte, porque em paralelo com o nosso trabalho estava a ser desenvolvida muita ciência diretamente sobre este tema, sobre os impactos reais que isto vai ter nos ecossistemas de profundidade. E isso veio dar robustez ao nosso argumento de que não devemos iniciar uma atividade porque não estamos a falar de uma atividade que já existe, mas que se iria iniciar a nível comercial. E os argumentos científicos vieram trazer robustez ao nosso argumento de que nós não conhecemos o suficiente.

Há aqui uma tensão com as alterações climáticas. A ideia de que a mineração em mar profundo podia fazer parte da transição. Como é que esse debate está a acontecer a nível internacional e que resultado teve até agora?

Aquilo que nós temos visto como o argumento mais frequente a favor desta atividade tem sido a questão da transição energética, mas para nós é um não-argumento. Em primeiro lugar, porque o próprio remeximento dos subsolos marinhos pode agravar as alterações climáticas. Estamos a falar do maior sumidouro de carbono do planeta. Por outro lado, o argumento de que fazendo isto no mar profundo se deixaria de o fazer em terra é um argumento falacioso. Em nenhum cenário estamos a falar de parar uma para fazer a outra, estamos a falar de duplicar os problemas, neste caso. Estamos também a falar de perpetuar este consumo infinito de matérias finitas, portanto estamos a substituir um problema que neste momento são os combustíveis fósseis, por outro que acarreta enormes impactos que conhecemos e que, como já dissemos, não conhecemos, o que é ainda mais preocupante. Na realidade, não existe indicação sequer de que a tecnologia já lá esteja para isto se poder realizar. E não sabemos sequer se vai ser rentável. Usar este argumento de que a mineração vai ser a solução tecnocrata que nos vai salvar das alterações climáticas para podermos continuar neste business as usual não faz para nós qualquer sentido.

António Lima
António Lima

A porta escancarada à mineração em mar profundo

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É, portanto, um argumento de greenwashing?

É. E existe um elemento muito forte de greenwashing nesta indústria. Ao ponto de aquela empresa que eu referi à pouco, a The Metals Company, inicialmente chamar-se Deep Green. Portanto, há aqui uma ideia de que os minérios do fundo do mar são minérios verdes, são minérios amigos do ambiente.

Não se usou um argumento de desenvolvimento local? Como é que a comunidade reagiu a isso nos Açores? Ou seja, os Açores têm zonas muito desiguais, não terá havido alguma tentação para esse argumento da parte das empresas?

Em 2017 havia alguma retórica em torno disso, de que isto seria uma possível fonte de rendimento, que iria ser para Portugal uma enorme oportunidade. Mas pela forma como a narrativa foi sendo construída, ficou muito claro que estes benefícios não iam ficar em Portugal. É muito claro que os lucros vão ser exportados. Acho que o argumento de que poderiam perder aquilo que é o ganha-pão deles hoje em dia, que é a pesca e o turismo, é bastante mais forte do que qualquer potencial ganho que poderiam ter tido.

Como é que Portugal está em relação ao resto da Europa? Há países, como a Noruega, que estão a tentar abrir-se mais ainda à mineração em mar profundo...

A nível europeu somos o primeiro país que tem em lei esta moratória. Existem intenções declaradas, por exemplo, a nível de França e da Alemanha, que já se posicionaram e transportam esta mensagem para o nível internacional, mas nunca foi formalizada a nível legal em nenhum destes países. Existiram algumas tentativas de o fazer a nível regional em Espanha, mas ficou-se por uma recomendação. Ou seja, a nível jurídico, nós somos o primeiro país europeu que tem uma moratória formalizada.

Que lições tiras então desta vitória? Porque é que Portugal foi o primeiro a avançar?

Foi este conjugar da pressão do público com a ciência e os compromissos que foram tomados pelos governos que tornou impossível não avançar com esta moratória.

Mas há casos de mineração terrestre, como as Covas do Barroso, que apesar da resistência local continuam a avançar. 

Estamos a falar de um país que usa a sua biodiversidade marinha e a sua pesca como galardão internacional. Os Açores, e Portugal em geral, têm-se posicionado muito numa ótica da conservação marinha, da promoção das redes de áreas marinhas protegidas, e temos inclusive a maior rede de áreas marinhas protegidas da Europa, que agora é a rede de áreas marinhas protegidas dos Açores. E já tínhamos as selvagens na Madeira. Para nós não fazia sentido avançar com uma coisa que era diametralmente oposta a este caminho que Portugal tem vindo a fazer no caso da conservação do oceano. E este fator de desconhecimento e precaução, sobretudo, foi o que motivou esta moratória e é aquilo que se calhar não é aplicável em terra, porque temos outra visão daquilo que é esta atividade.

Que outras urgências existem na conservação marinha em Portugal?

Temos três grandes bandeiras na conservação marinha neste momento. Em primeiro lugar, a ratificação do Tratado de Alto Mar é uma prioridade máxima, até porque nós temos compromissos até 2030 para cumprir, de 30% de áreas marinhas protegidas e 10% estritamente protegidas. Existe agora uma conversa que está a começar a iniciar-se a seguir à mineração, que é a questão da geoengenharia marinha, que é esta questão da captura e armazenamento de carbono no mar, e preocupa-nos bastante. E é preciso atacar a sobrepesca e garantir o fim do arrasto nas áreas marinhas protegidas, que para nós é uma atividade que não se coaduna com a conservação marinha neste momento.

Como é que a Sciaena tem lidado com esses problemas?

A geoengenharia é um tópico que estamos ainda a começar a estudar. Temos acompanhado mais um pouco de longe o que é que vão ser os argumentos a favor e contra esta atividade. Nós vemos esta atividade muito na ótica de: se não conhecemos, não vamos estar a brincar aos deuses e a tocar em algo que não conhecemos. Na ótica do arraste e da sobrepesca, nós temos falado muito de uma transição na pesca, de um phasing out destas atividades mais restritivas e, em conjunto com isto, uma melhor monitorização e fiscalização da pesca. Seja, por um lado, através da inclusão de câmaras nas embarcações para sabermos exatamente o que é que está a ser apanhado, seja no caso das áreas marinhas protegidas, garantir que existe um plano de gestão para estas áreas.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.