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A precariedade, “um dos fatores mais eficazes de controlo social”

Sofrimento, sensação de insegurança permanente, ameaça à saúde mental, ética do sacrifício. A precariedade está longe de ser o “esforça-te e conseguirás” prometido nos discursos dominantes, conclui o projeto Precarity Lab. Por Sara Montero no Cuarto Poder.
Roda de hamster humana. Foto de Lee/Flickr.
Roda de hamster humana. Foto de Lee/Flickr.

O sacrifício como uma virtude, regras entendidas como inevitáveis e quase naturais e uma meta aspiracional que não se atinge. Não é a descrição de uma religião monoteísta, mas de alguns dos discursos quotidianos que crescem à volta da precariedade. Encontramo-los nas empresas, nos meios de comunicação social, nos filmes e nas alegações políticas. O projeto Precarity Lab da Universidade Complutense de Madrid procura oferecer um estudo integral das “causas e impactos éticos, sociais e políticos da insegurança laboral” que envolve o mundo do trabalho e tem impacto nos sujeitos.

“Houve uma mutação neoliberal do trabalhador. A precariedade traduz-se por múltiplos danos no plano social e subjetivo”, explica Nuria Sánchez Madrid, professora titular do departamento de Filosofia e Sociedade. A primeira paragem de 2021 é um seminário que vai de fevereiro a junho. O projeto “PrecarityLab. Precariedade laboral, corpo e vida danificada. Uma investigação de Filosofia Social”, financiado pelo Ministério da Ciência e Inovação espanhol. O objetivo é dotar de “ferramentas conceptuais” para pensar sobre este problema crescente de forma a “reverter o sofrimento social”. Os investigadores querem analisar também as repercussões sobre a saúde e o corpo dos cidadãos: “Na sua forma atual, o trabalho é uma ameaça à saúde mental e à identidade do sujeito. A estabilidade pessoal conquista-se contra as exigências do trabalho. Há fatores como o tempo, o espaço ou o trabalho doméstico que podemos estudar”, assegura Pablo López Álvarez, professor titular do departamento de Filosofia e Sociedade. Por isso, nos próximos meses tratarão de analisar estas dinâmicas produtoras “de medo e sofrimento” nas suas sessões.

Se durante estes anos se multiplicaram as investigações sobre temas como o espetro sexual, os investigadores acreditam que também é preciso atualizar o discurso sobre o trabalho contemporâneo para atender a novas problemáticas. Observar a estrutura ajuda a clarificar as exigências políticas: “há um embaçamento conceptual na atualidade que facilita a naturalização da precariedade, assim os governos podem ignorar estas situações tão extremas de sofrimento. Os cidadãos acreditam que a precariedade acontece porque é simplesmente assim que as coisas são”, explica Sánchez.

Mas o andaime da precariedade é tão concreto e político quanto as reformas laborais, as externalizações das empresas, os falsos trabalhadores independentes ou os contratos temporários, com os quais Espanha tem um problema estrutural. Tem também consequências concretas na vida dos cidadãos: instabilidade, sensação de insegurança e uma permanente necessidade de sacrifício que se expandem para questões tão transcendentais como a vida familiar ou, inclusive, a própria democracia. “O indivíduo não pode especular sobre o seu horizonte prático mas impõe uma configuração política que o converte numa espécie de hamster que corre permanentemente na sua roda”, argumenta a professora.

Esta investigadora tem um discurso muito diferente do da meritocracia ou do clássico “esforça-te e vais conseguir” com que têm crescido as crianças nas últimas décadas: “Por muito que te esforcces para que as tuas competências sejam as que requer o mercado, este vai sempre castigar-te e sentir-te-ás sempre sem assistência das políticas públicas”. Sánchez Madrid refere o professor José Luis Villacañas, que coloca “o neoliberalismo como uma teologia política” na qual o indivíduo se “acostuma a sofrer” e a “sacrificar-se com vista a um além que nunca consegue alcançar”. E também César Rendueles, que publicou análises recentes críticas sobre a meritocracia.

Uma nova ética do trabalho

Nos últimos anos multiplicaram-se as investigações e os livros que tentam abordar a precariedade social. Em Espanha, abordaram esta problemática desde autores como Remedios Zafra ou Javier López Alós até outros como José Luis Moreno Pestaña, uma referência para estes.

Contudo, a revisão do Precarity Lab começa nos anos 1970: “É um fenómeno que se arrasta do passado. Durante todo o século XX, nos países desenvolvidos, houve pequenas tréguas das quais Espanha e o sul da Europa não tiveram grandes notícias. A precariedade tem sido um dos fatores mais eficazes de controlo social.”

O que criou raízes profundas é a “ideia do esforço” que se expande a todos os terrenos, desde as fotos que vemos no Instagram até às relações sentimentais. Com esforço pode-se alcançar tudo, até o corpo que desejas. Essa ideia também se entranhou no emprego. “A qualidade do trabalho mede-se individualmente, mediante processos constantes de interação e avaliação”, explica López Álvarez. Isto é mais importante do que parece: os problemas de organização do trabalho esfumam-se e carrega-se a responsabilidade sobre cada trabalhador.

O professor da Faculdade de Filosofia adverte que o neoliberalismo “não é exclusivamente um programa de dominação de classe, ainda que também o seja, mas vem igualmente dotado de um discurso que gravita à volta da liberdade face a um Estado forte que se apresenta como uma limitação aos indivíduos”.

Isto permeia os discursos políticos mais neoliberais mas também se estende a toda a população. Por exemplo, a ideia de trabalho independente vende-se como tendo vantagens face aos postos de trabalho fixo e à rotina. O empreendedor é um “herói”, contrastando com as críticas aos funcionários, aos que se apresentam como acomodados num lugar enquanto funcionários públicos. Nesta ética neoliberal, o risco torna-se positivo mas o fracasso é individual.

López assegura que este discurso não é apenas apelativo para a direita mas também para a esquerda que propõe alternativas aos patrões tradicionais.

Uma difícil organização

O neoliberalismo impôs fragmentação, uma “elevada individualização” e “corrosão dos laços sociais”. Isto resulta, segundo a professora, em “posições sociais contraditórias, embaçadas para o sujeito e que não ajudam a criar posições de resistências homogéneas e efetivas que possamos unir às ações emancipatórias do passado”. Assim, o estudo científico é um primeiro passo para dissipar a desesperança: “não temos de mandar a toalha ao chão”.

Ambos os investigadores concordam que a partir de 2008 houve uma alteração de discurso. “A crise trouxe para primeiro plano a questão da vida. Nos finais do século XX não era tão comum destacar essa relação entre capitalismo e vida. O feminismo também colocou esta questão no centro”, indica Pablo López Álvarez. Esta ideia fez com que tenha aumentado o interesse em temas como a conciliação dos usos do tempo”. Sánchez Madrid compartilha esta ideia: “A precariedade é biopolítica no sentido mais negativo do termo”.


Sara Montero é jornalista escrevendo no Cuarto Poder, no Público de Espanha e no Tinta Libre

Artigo publicado no Cuarto Poder. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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