A 15 de Maio conheci o Tibúrcio. Ele cometeu um dos crimes mais odiosos que conheço – violou uma rapariga. Por causa disso apanhou sete anos. Faltam-lhe agora dois para sair. O Tibúrcio é angolano e tem, aliás, ordem de expulsão do país quando expirar a pena. Conheci-o na penitenciária de Coimbra, uma cadeia antiga onde as alas dos reclusos convergem num hexágono central. Ele foi um dos que me chamou por trás das grades. Naquela prisão, onde moram algumas das penas mais pesadas do país, a juventude e os cabelos rasta daquele detido eram singulares. Mais rara é, contudo, a sua história. O Tibúrcio é seropositivo, tem os dias contados. A meio da pena solicitou ao Tribunal autorização para ir morrer na sua terra. A direcção da penitenciária atestou o comportamento exemplar do detido e sustentou o pedido. Mas um Juiz indeferiu. Com cinco anos de grades, o prisioneiro continua a pensar que tem direito a escolher o lugar dos seus últimos dias. Quer morrer junto da família. O obstáculo é um «justiceiro» Num país com pena de morte, aquele juiz negaria ao condenado até o direito a um último cigarro. Este caso podia ter-me surgido no desempenho da profissão de jornalista. Mas foi como candidato às Europeias que me confronteí com ele. É diferente? É e não é. Como jornalista teria denunciado o caso e arriscaria mesmo um comentário sobre a Justiça que temos, tantas vezes desumana, exactamente porque feita por homens e mulheres concretos. Como político denunciei a situação à saída da Penitenciária, ou seja, cumpri o meu papel para os jornalistas... Mas a história ficou-me atravessada. Apeteceu-me abrir desalmadamente a voz contra as polémicas institucionais à volta da Justiça, as que enchem as cabeças de advogados, Ministério Público e juízes. Como elas são risíveis em face dos dramas humanos! Depois contive-me, porque a demagogia espreitava por detrás da verdade anterior.
O que ficou da desgraçada infelicidade do Tibúrcio? A convicção reforçada de que a vida e a política divergem a cada dia que passa, que as polémicas à volta dos poderes deixaram de ter como alvo os problemas reais e se concentram sobre o próprio exercício desses poderes. A política que existe é autista, alimenta-se de si mesma. É possível fizer diferente?
É essa a aposta que gostaria de ver no Bloco de Esquerda. Mas é verdade que a política que vem ainda sabe pouco como fazer e, mais difícil ainda, só o poderá descobrir experimentando.
Cheguei à praia da Leirosa, perto da Figueira da Foz, pelas quatro da tarde, no exacto dia em que a greve dos pescadores do arrasto fazia 60 dias. No dia anterior Pacheco Pereira havia saboreado o cheiro a maresia, algures para Matosinhos e o meu irmão ainda não tinha tido a peregrina ideia de dizer que, além de lavrador, também era pescador...
Eu ia para um pequeno encontro com duas dezenas de grevistas. Afinal, no armazém que servia também de pequeno bar da aldeia, estavam uns 50. Falei pouco. Falo sempre pouco quando quero ouvir. Eles é que falaram. Falaram e exaltaram-se e enraiveceram-se. Explicaram que quando não saem para o mar o seu salário é de 25 contos e qualquer coisa, que a sua margem sobre o pescado não é revista vai para 30 anos e, principalmente, que os armadores haviam tido a desfaçatez de lhes oferecer os aumentos exigidos à custa da redução dos descontos patronais para a segurança social. Isto já eu sabia. Não sabia era de outras coisas bem mais importantes. Aqueles homens, rudes por defeito e feitio, tinham uma «password» obrigatória - não queremos ser portugueses de segunda. Senti naquela tarde que a greve já não era por aumentos salariais. Era uma greve pela dignidade. Foi na Leirosa que pela segunda vez alguém me forçava a regressar à vida como princípio e fim de qualquer nova política. Por dignidade aquela gente aguentava-se há 60 dias sem paga ou trabalho, fiando-se uns aos outros. A greve do arrasto foi a realidade mais dura com que me confrontei na campanha eleitoral. No final do encontro, discutiu-se a atitude de um pescador presente: deveria ele embarcar num barco que o mestre garantia ir apenas da Leirosa até Aveiro, quando a intenção real do armador era fazê-lo sair de um lugar onde a greve decorria a 100 por cento, para um porto muito maior, onde já haviam «furado» quatro embarcações? O homem não sabia onde se meter. Queria embarcar e não queria trair.
Aquela greve confrontou as pessoas com os seus limites e, diga-se em abono da verdade, os piquetes de greve foram tudo menos mansos.
No final do século XX, aquela foi uma greve do século XIX. A questão está em saber se a queremos para o século XXI. Se o Estado pode ficar impávido ante um conflito que opõe pescadores sem saída a armadores bárbaros, alegremente financiados pela União Europeia para abates de frota e reconversão das sobras, e dotados, por isso, de um poder de resistência à greve muito superior aos de baixo. Nunca mais deixei de falar naqueles pescadores. Mas, para o público do Bloco de Esquerda, devo ter falado de modo bem estranho. Muitos «bloquistas» são gente de forte formação ideológica, pessoas que vibram com o facto de os pescadores estarem a levar por diante a mais longa greve dos últimos 20 anos em Portugal. Imaginem, por isso, intervenções onde eu explicava que aqueles homens apenas pretendiam regressar ao trabalho mas de cabeça erguida, sem terem sido vergados. Quem entendia? Os que sabem na pele quanto custa uma greve e os que sabem que as grandes lutas se fazem com pessoas normais e não com heróis. O futuro de uma nova política à esquerda tem tudo a ver com o regresso às fundações do humanismo. É por aqui, e não tanto pela imposição de representações deformadas da realidade, que a esquerda que vem de longe poderá ir para longe.
À entrada do primeiro hangar, o das prensas, deram-nos óculos e auriculares. O responsável de produção ia explicando o que os nossos olhos viam. Enormes sistemas robotizados, insonorizados, transformavam as chapas em chassis; tectos, «capots» e portas ao toque de botão de um ou outro operário. Depois, cada peça era passada à primeira linha de montagem. Sob carris, outros robots juntam-nas e perfuram-nas A imagem que vem à memória é a dos filmes de ficção científica de James Cameron. Nos hangares, o chão está impecavelmente limpo, praticamente não se vêem sobresselentes e os operários trabalham em grupo. Basicamente, eles preparam as coisas para que as máquinas trabalhem sem descanso. No último dos hangares, tudo se complica.
A mesma carroçaria dá para quatro marcas de automóvel e aí para umas trinta variantes, da cor ao tipo de motor, ao airbag, aos estofos ou ao ar condicionado. A cadência acelera porque cada veículo, que continua sob carris, já não pára até estar pronto. Ali, cada grupo de operários tem a sua sala de reuniões a dois ou três metros do local onde trabalha e quando alguém precisa de WC é ele, sob a forma de cabine, que desce do tecto ao seu encontro. A fábrica cospe uma nova viatura de 90 em 90 segundos. Candidato que se preze tem de visitar a Autoeuropa, a fábrica modelo da nossa modernidade, que pesa 2,8% no PIB nacional e gera 12% das exportações. Aqueles 4 mil trabalhadores, do porteiro ao director fardados por igual, valem o seu peso em ouro. Confesso que o meu interesse na visita era um pouco egoísta. Queria ver o pós-fordismo ao vivo. Seria muito diferente do Chaplin dos Tempos Modernos, saindo da fábrica ainda aparafusando porcas imaginárias? É e não é. É, porque o trabalho mais duro é feito agora por robots. É, porque a segurança e a higiene são incomparavelmente maiores. E é, porque o trabalho na cadeia de montagem já não dispensa a inteligência, é o próprio grupo que estabelece em cada momento as funções de cada operário. E não é. Afinal, o salário que antes pagava apenas a força de braços, paga hoje, pelo mesmo preço, o braço e a cabeça. E conquistas tão importantes para as famílias, como o descanso ao sábado e ao domingo, podem hoje ser postos em causa pela produção «just in time». Ali trabalha-se em «flextime». O almoço com a Comissão de Trabalhadores (CT) foi muito instrutivo. Os operários têm, em média, 23 anos. O seu universo mental não tem nada a ver com amigos que tenho, por exemplo, numa Setenave. Da Autoeuropa saem 30 trabalhadores por mês. Devido às cadências, seguramente. Mas também porque entre os mais novos o horizonte de vida não se esgota na fábrica. Alguns saem para comprar uma boa cilindrada depois de alguns meses de poupança. Heresias? Não sei. Apenas sei que o panfleto do Bloco de Esquerda sobre trabalho, que tão bem funcionou em fábricas de contratados a prazo, não podia ali ser distribuído. Na fábrica do próximo século ele é tão inútil como entre os tele-trabalhadores, e estes já são mais de 100 mil no nosso país.
Uma vez mais, o que está em causa é o regresso à realidade. Classes operárias há muitas. Há a dos pescadores do arrasto que, apesar da coragem de 60 dias de greve, pensavam boicotar as eleições para furar o bloqueio informativo; há a da TAP ou a dos estaleiros de Viana, com CT de meia idade, e onde o diálogo é utilitário, centrado no que se pode, em escala europeia, fazer pelas empresas; e houve a CT da Autoeuropa com um forte peso de jovens, onde, pasme-se, eles quiseram saber do que nós pensávamos sobre os assuntos da vida. Onde mora afinal, o futuro? E, enquanto ele não chega, como renovar o arco da aliança do Trabalho? Estas perguntas não têm resposta numa campanha. Mas uma campanha pode revelar muito para lá do que são os holofotes e os cenários do espectáculo da política.
A decisão tinha todas as condições para ser difícil no interior do Bloco. Existia, é certo, uma posição comum sobre a política de combate à droga, que incluía a despenalização de todos os consumos. Mas uma coisa é o texto e o discurso, outra a passagem à acção. Depois, em termos de comunicação, era enorme o risco de uma interpretação superficial. Afinal, a decisão foi pacífica. Na noite seguinte iríamos para o Bairro Alto distribuir o panfleto sobre a despenalização e mortalhas com a inscrição «é proibido proibir». Engoli em seco e até pensei com os meus botões, «se o meu irmão já é conhecido como o Paulinho das feiras, eu ainda acabo como o Miguelinho das mortalhas»... mas adiante. A recepção foi excelente. Claro que houve quem perguntasse «então e o produto?», mas para essa já eu tinha um «não sustento vícios», como resposta de algibeira. A operação repetir-se-ia, ainda com maior sucesso, na Ribeira do Porto e nem foram precisas mortalhas. O tan-tan da noite funcionava às mil maravilhas. A noite passou a ser para o Bloco de Esquerda o que são para outros partidos as feiras e os mercados. Mesmo entre bloquistas houve reacções de desagrado. Havia que transpor uma acção polémica para um novo discurso sobre a toxicodependência. Durante a última semana dediquei parte substancial das intervenções ao tema. Foi o tempo mais bem empregue da campanha. As plateias do Bloco eram muito heterogéneas. Mais de metade das pessoas estavam na dúvida, queriam ouvir para formarem o seu julgamento. Cheguei a apanhar hesitantes, acreditem, entre o PP e o Bloco (no género «quero saber qual a convicção que me convém mais») ou entre o Bloco e o PSD (os não populistas). Sempre que falei de droga não o fiz, por exemplo, para activistas do PSR, mas para pessoas de extractos sociais e graus de abertura cultural muito variados. Ataquei a questão social que se esconde por detrás das políticas de combate à toxicodependência. Expliquei a vantagem da separação de mercados entre drogas leves e duras e passei à questão da heroína de modo simples. Um heroinómano pode ser filho de gente pobre, rica ou remediada. Ele precisa diariamente de cinco a seis contos, quando não de 10 ou 11, para comprar o produto que o oprime. Se não tem emprego, primeiro vai às pratas da casa e quando estas acabam - e numa família pobre acabam rápido - passa ao esticão e depois ao roubo ou ao assalto. O Governo descriminalizou mas não tocou no quotidiano das famílias. E o toxicodependente continuará a acabar na prisão, não por se drogar, mas por crimes contra a propriedade... Critiquei depois a política de tratamento. Os programas de metadona são necessários para prevenir riscos, mas não curam. Tratamento, só conheço o que é livre de drogas, seja em acompanhamento ambulatório, seja em comunidade terapêutica. Mas o Estado tem apenas 34 camas em duas comunidades terapêuticas. Para lá delas, financia 750 camas privadas ao preço que lhe custam as suas próprias camas... Por cima desse financiamento, qualquer família com um toxicodependente que se queira recuperar gasta 100, 120 ou 150 contos mensais. Filho ou filha de pobre não tem como. Não houve quem não compreendesse. E concluía, generalizando só precisamos de políticas igualitárias para que cada um não seja privado da sua liberdade por falta de meios. A haver chave para uma nova política ela é, decididamente, a do regresso à vida.
No sábado anterior ao voto não pensei em política. No domingo sim. Estive com o meu irmão. Como podem imaginar, a campanha que ele fez encontra-se nos antípodas do que eu penso que deve ser a política. Mas como ele se bateu! Creio mesmo que só não foi buscar votos às vaquinhas e às ovelhas porque não se tinham recenseado a tempo... E pensei um pouco na opção que fizera três meses antes. Durante 100 dias vi os meus filhos muito pouco e não namorei nada a mulher com quem vivo. Percebi porque há tão poucas mulheres na política. Nesta sociedade elas teriam de fazer campanhas com os filhos e foi por isso que no último dia levei o mais novo a votar comigo. Como sinal. Mas nada disto toca o dilema pessoal. O divórcio entre vida e política não é apenas público, começa no domínio privado. Dar o rosto tem um preço em desumanidade. Não duvidem que ela marca os políticos que temos, sem excepção. Porque o fiz, apesar do preço? Talvez porque não tivesse alternativa. Porque contraí, ao longo da vida, responsabilidades com terceiros. O dever é o mérito e o limite da matriz comunista em que me formei e que não renego. Mas isto não chega. As atitudes têm de servir para algo mais do que conquistar votos ou justificar passados. Têm de ajudar a inventar um futuro onde as pessoas possam crescer não em função do que têm mas do que podem ser. E isso depende de você: Felizmente, não depende de mim...
Julho de 1999