“Pérolas” competentes na governação – em Madrid como em Lisboa
Em 13 de setembro de 1923, Miguel Primo de Rivera – um militar e aristocrata andaluz, filho de pais e avós militares e oriundo de uma família de latifundiários do Sul – juntou a si a vontade dos generais ditos “africanistas” que há muito se queixavam da falta de armas para combater no Atlas a rebeldia marroquina, muito ressabiados também com as derrotas que lhes foram impostas em Cuba e nas Filipinas, e decidiu impor a Afonso XIII, através de golpe militar, um interregno moralizante da Governação Constitucional.
Seria coisa para 90 dias, uma interrupção indispensável para afastar para a Província os “políticos” corruptos e, através de uma escolha patriótica, entregar o governo da nação às “pérolas” impolutas e competentes que haviam de conduzir Espanha à modernidade desejada, ao mesmo tempo desenvolvida e nacionalista, sob uma política protecionista e antiliberal, se necessário fosse. Os políticos “profissionais”, venais e antipatriotas, haviam destruído Espanha; um patriota, “amador” estava destinado a salvá-la do descalabro.
Nas palavras do “Manifesto” populista de Primo de Rivera oiço, sem grande esforço, a Declaração não menos “patriótica” (embora menos aristocrática devido à extração do velho “cabo de guerra”, filho do sargento Carlos Dias da Costa) do general português Gomes da Costa; aliás, oiço todas as suas declarações e aliciamentos dos descontentes, a partir, justamente, desse ano fatídico de 1923, tanto para Portugal como para Espanha. Dizia Primo de Rivera em 1923, na primeira “Proclamação” ao povo, que a sua intenção era “a de abrir um breve parêntesis na vida constitucional de Espanha de modo a poder restabelecê-la tão cedo quanto possível, logo que a nação possa oferecer-nos homens que não estejam contaminados com os vícios da organização política”. Dirigindo-se ao rei, prometia apresentar esses homens “não contaminados” com a política, de modo que “a normalidade [pudesse] ser estabelecida tão cedo quanto possível”. Também Gomes da Costa – três anos depois – declararia à saída de Braga que “o [seu] propósito [era] ir contra a ação nefasta de todos os políticos e dos partidos e de pôr fim a uma Ditadura de políticos irresponsáveis”. Ideologicamente, tinham seguido um percurso em tudo semelhante: tinham progredido rapidamente na carreira militar em façanhas mais ou menos bárbaras contra a resistência anticolonialista – na Índia e Moçambique no primeiro caso, em Marrocos no segundo -, não eram fascistas, mas olhavam para a Itália de Mussolini como uma boa fonte de inspiração. Perante a enorme crise económica, social e política trazida pelo pós-guerra na Europa, defendiam uma solução conservadora e autoritária, destinada a realizar a “grande reforma” do seu país “a partir de cima”: um líder forte - de preferência “apolítico”, por ser mais favorável aos apelos do populismo anti-parlamentar -, acompanhado de uma governação tecnocrática, realizada pelos mais “competentes”. E, em simultâneo, um caminho limpo das liberdades da “rua” contaminada pelos “excessos” da imprensa, perturbada com as reivindicações exacerbadas dos sindicatos e dos partidos operários (PSOE, CGT, CNT) e amedrontada com os avanços sociais e culturais que reduziam a Igreja e as crenças a resquícios das sociedades atrasadas de Antigo Regime. Em Espanha – como em Portugal – a modernidade política e social, defensora de uma democracia avançada e de massas, tanto amedrontou a oligarquia parlamentar como as elites mais abertas à modernidade económica e social. Primo de Rivera encabeçava esse movimento reformador, mais aberto à modernidade, mas que não aceitava, de nenhum modo, a “revolução social”, “à russa” ou à medida de uma qualquer ideia ou prática semelhantes. A existir, a modernidade, havia de ocorrer com ordem e dirigida de cima, com mão de ferro. Quem melhor que os generais para dirigir a “tropa” intermédia de tenentes e capitães que haviam de substituir os “políticos” na administração pública, nas empresas, na administração colonial, na aplicação da censura e na exigência da ordem nas ruas? E nesta tarefa, Rivera pôde mesmo ter o apoio de homens da intelectualidade, como o filósofo Ortega Y Gasset: “O alfa e ómega do papel da Ditadura Militar foi o de pôr fim aos velhos políticos. A proposta é tão interessante, que não há lugar para objeções. Os velhos políticos têm de acabar”. Talvez esta rejeição muito generalizada dos “políticos” possa mais facilmente ajudar a explicar as primeiras medidas políticas ditatoriais: a imposição de uma lei marcial, a dissolução do Parlamento, a demissão do Governo Constitucional, o afastamento para a província dos “políticos” – alguns com “residência fixada” -, e a suspensão da Constituição de 1876. Numa primeira fase, a governação foi garantida por um Diretório de 8 generais, com Primo de Rivera na Presidência.
Apoio do PSOE e da UGT
Perante os efeitos devastadores da crise económica que se aproximava a passos largos, os partidos e os sindicatos operários apoiaram muitas das medidas de intervenção estatal da Ditadura, algumas de efeitos terríveis para o futuro do movimento operário, como a proibição da greve, a proibição da CNT, ou a colaboração na organização corporativa do Estado, com a neutralização da luta de classes. São criadas 27 Corporações e imposta uma acomodação social das reivindicações operárias com o contributo de mediadores do Estado, encarregados de promover a negociação entre patrões e trabalhadores. Esta participação do PSOE e da UGT no acordo corporativo não terá sido alheia à luta inter-sindical que opunha estas organizações à CNT, de orientação anarquista, acusada da promoção de “greves selvagens” e da revolução social.
O que é um facto é que o programa económico e financeiro da Ditadura, conduzido por José Calvo Sotelo, trouxe, numa primeira fase, inquestionáveis benefícios económicos, mercê da promoção de grandes infra-estruturas e da promoção de obras públicas: estradas, conclusão da obra do Metro de Barcelona (inaugurado em 1924), grandes obras hidroelétricas (no Douro e no Ebro) destinadas à produção de energia elétrica e à irrigação. Entre 1923 e 1927, o comércio externo cresceu na ordem dos 300%.
Tal não impediu, no entanto, um crescente isolamento da governação da Ditadura que se vê obrigada a promover um plebiscito em 1926, por modo a garantir apoio à situação ditatorial, com a Constituição suspensa desde 1923 e crescentes pressões dos “políticos” com vista à reposição da legalidade constitucional. Pressionado pelos “políticos” e por uma situação social explosiva, com inflação crescente, Rivera promoveu em 1927 a elaboração de um novo texto Constitucional e chegou a proceder à abertura de uma Assembleia Nacional, constituída, exclusivamente por apoiantes seus, oriundos do partido único – a União Patriótica. Este partido, a União Patriótica, mostrou-se, contudo, incapaz de agregar todas as discordâncias, inclusive entre o grupo de generais que o apoiou em 1923. Uma inflação galopante, provocada pela Grande Depressão de 1929, acabará por ser atribuída aos encargos da dívida pública que resultou do programa económico e financeiro de grandes obras públicas, lançado logo a partir do início da governação ditatorial. Isolado, sem apoio do Rei e do grupo dos generais que o apoiaram no início da Ditadura, Primo de Rivera resigna em dezembro de 1930 e morre no exílio parisiense, um mês e meio depois da sua resignação.
1923, Portugal
Em setembro de 1923, a imprensa portuguesa é quase unânime: a resolução do problema da revolução espanhola é de um interesse fulcral para Portugal. Lá como cá, a situação era idênticos: mercê dos problemas decorrentes da falta de solução para a Guerra de Marrocos, o “partido militar” há muito combatia os partidos políticos, acusando-os de falta de patriotismo, de desonestidade e de corrupção. Por outro lado, a incapacidade dos políticos estendia-se à incapacidade para lidar com a violência sindicalista e o radicalismo dos partidos extremistas e anti-sistémicos. Ora, em Portugal como em Espanha, apesar de não haver organizações fascistas, como em Itália – as direitas apresentavam uma melhor organização, apoiadas por Exércitos fortíssimos. De modo que, perante a “burla do parlamentarismo”, a Espanha (na sua esmagadora maioria) estaria disposta a seguir uma orientação de direita, com a colaboração do Exército, empenhado em “castigar” os políticos, o mesmo acontecendo em Portugal.
Em Portugal, o protagonista do Golpe que implantou a Ditadura Militar em 28 de maio de 1926 movia-se na imprensa e na preparação dessa conspiração pelo menos desde os finais de 1922. A imprensa de direita apontava-o como a solução do futuro: “Chefe de partido [militar], ditador de amanhã, comandante de uma revolução?” (O Tempo, 18.11. 1921). As motivações de Gomes da Costa pareciam ser semelhantes às apresentadas pelos generais espanhóis: a incompetência e a venalidade dos políticos e o sacrifício inglório dos militares nas várias frentes de combate em que participaram. Afrontou o poder político instituído nos jornais, participou em intentonas para o seu derrube, aliciou oficiais e políticos do mundo extra-parlamentar e, depois de várias condenações disciplinares, preparou-se para lançar mão aos regimentos e generais que lhe eram favoráveis, com a finalidade de derrubar o Governo e com ele o regime republicano.
Cunha Leal, um político arguto, líder da União Liberal Republicana, um partido criado nos últimos meses do regime democrático republicano, em Conferência pronunciada em Braga um mês antes do movimento conspiratório, prenunciava ele próprio o golpe: “O Exército move-se. O Exército está inquieto. O Exército não quer assistir ao afundar da Nação, e prepara-se para intervir. Será um crime aquilo que os militares pretendem fazer? Não! As suas intenções são as mais nobres e as mais levantadas, quando querem substituir pela sua força a fraqueza das pobres elites que nos governam”. Se não se pode dizer que o político Cunha Leal (deputado e ministro da República) estivesse a apoiar diretamente o golpe militar, pode pelo menos dizer-se que o anuncia como inevitável. Cá, como em Espanha, as elites liberais abdicaram das liberdades para defenderem, com recurso à força militar, um estado de exceção, temporário segundo elas, mas na verdade um estado de exceção tão longo quanto o necessário para anularem as liberdades fundamentais da livre escolha, do debate e da livre decisão dos cidadãos dos seus países.
Foi sempre paralela (e muito semelhante) a história política dos dois países peninsulares na época contemporânea. Por esta altura, a Ditadura de Primo de Rivera apenas precedeu de uns escassos três anos o que viria a ser a Ditadura Militar em Portugal, implantada em 1926.
E a seguir?
A seguir o caminho também seguiu por duas vias paralelas, em tudo semelhantes. Em Espanha, Afonso XIII encarregou Berenguer de restabelecer o regime constitucional parlamentar. Falhou, como falhou em Portugal o general Ivens Ferraz, um Primeiro Ministro isolado na disposição de promover eleições. Num e noutro lado da fronteira sucedem-se tentativas de eleições democráticas (1930-1931). Em Espanha, essas eleições ocorrem e dão vitória aos partidos populares. O confronto ficou adiado até à Guerra Civil de 1936-39. Em Portugal a Guerra Civil larvar já havia começado com a Revolta de 3 de Fevereiro de 1927 e, por isso, os ditadores nem sequer ousaram promover eleições, porque sabiam da derrota antecipadamente. A República da Madeira, que durou um mês (de 8 abril a 4 de maio de 1931) foi um ato fortuito e isolado e resultante da ação ousada dos republicanos ali deportados.
Seguiu-se o calvário das Ditaduras ibéricas, longas e retrógradas. Em Portugal ou em Espanha, as elites nunca estiveram disponíveis para uma modernização que pusesse em causa a sua situação de relativo privilégio: experiências tecnocráticas, ditatoriais e modernizadoras – como a de Primo de Rivera – esbarraram no conservadorismo destas sociedades. As soluções encontradas foram outras, como bem sabemos – violentas, repressivas e tão duradoiras quanto o tempo quisesse (ou fosse preciso).