Mia Couto e Sérgio Godinho entre subscritores de Manifesto pela Amazónia

05 de novembro 2019 - 20:17

Esta terça-feira foi apresentado o Manifesto em Defesa da Amazónia, promovido pelo Coletivo Alvito, e que é subscrito por personalidades como Boaventura de Sousa Santos, Sonia Guajajara, Mia Couto, Pilar del Rio, José Fanha, Maria Teresinha, Ondjaki, Sérgio Godinho e Lian Tai.

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Foto de Andre Deak, Flickr.

 

O esquerda.net transcreve, na íntegra, os testemunhos de Boaventura de Sousa Santos, Sonia Guajajara, Mia Couto, Pilar del Rio, José Fanha, Maria Teresinha, Ondjaki, Sérgio Godinho e Lian Tai no manifesto de apoio às causas indígenas, que o Bloco subscreve:

 

Se não formos irmãos indígenas seremos indignos de nós

Representantes dos povos indígenas do Brasil estão de visita a vários países da Europa, entre os quais Portugal, para dar a conhecer ao mundo as atrocidades de que estão a ser vítimas nos últimos tempos, denunciar os autores de tais atrocidades e solicitar a solidariedade activa de todos os democratas. Fazem-no porque a situação é particularmente grave. Mas não o fazem no seu interesse particular, fazem-no no interesse da humanidade no seu todo e, portanto, no nosso próprio interesse. Realmente o que está em causa é sobrevivência da vida humana no planeta. Eles, que têm sido os guardiães da biodiversidade e da estabilidade climática do planeta, vêm-nos avisar que todos e todas corremos perigo com o que está a acontecer na Amazónia. Eles são apenas a guarda avançada da defesa da Amazónia, e vêm-nos avisar que essa defesa será ineficaz se não contarem com uma retaguarda segura. É essa retaguarda segura que nos somos convocados a oferecer como dever.

Todos os relatórios internacionais mostram como uma ação de redes criminosas impulsionam o desmatamento e as queimadas na Amazônia, comprovando que a redução da fiscalização ambiental incentiva a extração ilegal de madeira e resulta em maior pressão sobre os povos da floresta, que sofrem represálias cada vez mais violentas ao defender seus territórios.

Em agosto de 2019, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas sugeriu, pela primeira vez, como solução para a crise climática, o reconhecimento do papel dos povos indígenas como guardiões florestais, pois seus conhecimentos e práticas são importantes contribuições para a resiliência climática. Os povos indígenas vêm ao nosso país para amplificar a visibilidade desses fatos por meio de uma campanha de articulação e comunicação no exterior. O genocídio dos povos indígenas no Brasil é real e eles precisam unir forças e aliados para essa batalha pela vida. Já não nos basta ser solidários com eles. É preciso partilhar activamente a luta deles com todos os meios que estiverem ao nosso alcance. Devemos passar a sentir na nossa pele o sofrimento e a indignação deles. De algum modo, devemo-nos sentir indígenas para sermos dignos de nós.

É nesse espírito de comunhão que os vemos receber.

Boaventura de Sousa Santos (Sociólogo, professor universitário)

Bolsonaro mal nos conhece

Uma personalidade tão contrária aos direitos e à existência dos Povos Originários ocupando esse cargo, exerce papel de vitrine para os comportamentos racistas e preconceituosos embutidos em muitos brasileiros e brasileiras. Assim, não é equívoco algum dizer que, no presente momento, o governo brasileiro mal nos conhece e quer, a todo custo, confundir e invisibilizar nossa luta, cultura e história.

Quando diz que indígenas “querem e merecem usufruir dos mesmos direitos” ou que “teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”, ele não apenas ostenta etnocentrismo ultrapassado, como demonstra desconhecimento sobre a Constituição. Desde 1988, temos os mesmos direitos e deveres de qualquer cidadão. Será que o presidente ainda não leu o documento que jurou defender?

Na Assembleia Geral das Nações Unidas disparou mentiras, paranóias. Envergonhou os brasileiros e colocou o Brasil na história, de maneira negativa, manchando o seu legado no mundo e chocando quase todos os países e líderes do planeta.

Bolsonaro catalisa a grave crise civilizatória em que nos encontramos. E nos coloca diante do dilema do século, que passa necessariamente por reconhecer e encarar o precipício para o qual a humanidade caminha, caso não reconheça, em tempo, a gravidade do perigo que representam as mudanças climáticas.

Sonia Guajajara (coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)

Incêndio sobre a democracia

Nestes últimos dias tombaram sobre todos nós cinzas vindas de um céu brasileiro, um céu suspenso sobre a Amazónia.

Campanhas solidárias deram conta de um mundo atento e disponível. Essas vozes fizeram lembrar que existe um outro Brasil, menos mediatizado, que já há meses está sendo devorado por um outro incêndio que lavra sobre a democracia, as instituições e a dignidade da grande nação brasileira.

Mia Couto (Escritor, poeta, biólogo)

Lugar de vida

Falo da Amazónia porque é território próprio, porque dela depende a saúde do mundo, e quando digo a saúde do mundo, digo de todos.
Deste maravilhoso lugar que deveria ser um lugar de vida, e estão querendo convertê-lo em um lugar de morte.
Porque estou com toda a vida, para todas e para todos.
Porque estou para que tenhamos presente e para que tenhamos futuro.
Porque quero recuperar a melhor herança que temos.
Por isso defendo e ponho tudo o tenho, o que sou e represento para salvar a Amazônia, pelo respeito ao meio ambiente e por todos nós.

Pilar del Rio (Presidente da Fundação Saramago)

Um cravo guardado

Logo a seguir ao 25 de Abril, Chico Buarque de Holanda enviou-os uma canção maravilhosa: “Sei que estás em festa pá, fico contente e enquanto estou ausente guarda um cravo para mim!”

Agora seria a altura de dizer “Sei que tu estás triste, meu irmão, revoltado e triste e vejo o fogo na Amazónia que não para de crescer.”

Nós queremos dar-te força meu irmão brasileiro para que possas impedir o poder de calar essa ferida, essa dor que é de todas mulheres e de todos os homens deste mundo.

Ainda temos cravos, meu irmão brasileiro, cravos guardados para ti, flores capazes de fazer renascer as árvores magoada, as águas naufragadas e os homens destruídos, flores capazes de trazer de novo a liberdade, a igualdade e a solidariedade para todos.

José Fanha (Poeta, escritor, dinamizador cultural)

Árvores

Amo as árvores desde que existo. Sempre me encostei ao seu tronco a acertar pelo seu o meu respirar. Em menina amei as árvores da horta algarvia dos meus avós de Cacela uma por uma: nespereiras, figueiras, laranjeiras, tangerineiras, oliveiras, amendoeiras e uma pereira. Ah! e também várias alfarrobeiras!

Na minha rua, em Faro, não havia nenhuma e eu tinha pena. Depois amei as árvores futuras recém-plantadas na avenida do liceu de Faro. Espreitava todos os dias o seu crescer. Só se fizeram mulheres depois de eu partir para Lisboa. Depois amei as árvores todas das ruas de Lisboa que me compensavam das que não tinha tido na minha rua na minha cidade natal. Não lhes saboreava os frutos mas bastavam-me as flores, sobretudo as dos jacarandás, a inaugurar o Verão.

No meu exílio em Paris conheci novas árvores que comungavam a minha nostalgia e me faziam companhia. Hoje amo todas as árvores do mundo! Sei o bem e a falta que nos fazem. Sei que purificam o ar que respiramos cada vez mais envenenado pelos homens - pela sua ganância de lucro nos negócios. Ah! e como odeio os que destroem o principal pulmão do mundo, a fabricar o ar que respiramos! Um dia destes seremos como esses pobres peixes acabados de pescar, a estrebuchar na areia com falta de ar!

Desmatar a Amazónia é matar o Grande Pulmão do Mundo e, um por um, os pulmões dos pobres seres que somos! Odeio ah sim! esses desmatadores, matadores das nossas indefesas vidas! Quem me dera saber rogar-lhes uma praga a preceito como as das mulheres de Monte Gordo para que lhes desse uma coisa tam ruim tam ruim que ficassem esticadinhos, entrevadinhos de pés e mãos e nunca mais pudessem matar árvore nenhuma!
~

Maria Teresinha (heterónima juvenil de Teresa Rita Lopes - professora universitária, poeta)

Sonhar fora do sonho

“É hora de sonhar fora do sonho, de cuidar da Amazônia e dos seus habitantes, e dos seus filhos e filhas. É hora de chorar sorrindo para ajudar, e de ajudarmos, como for possível, em todas as latitudes, com todo o carinho e muita determinação. Como se nós, humanos, fossemos uma chuva ao contrário: um mar de abraços, uma lágrima gigantesca que chora com o Brasil para fazer caber todos os brasileiros num sertão de grande vereda fraternal."

Ondjaki (Escritor, poeta)

A esperança da terra

A Amazónia é a nossa esperança, uma das esperanças essenciais do salvamento da terra, da salvação de todos nós. O planeta não vai acabar –mas a espécie humana é apenas um acontecimento talvez passageiro na vida da Terra.

A Amazónia é a nossa desesperança, quando ela é repetidamente e laboriosamente agredida, escorraçada da sua riqueza natural, cortada rente como mato inútil, desaparecida em chamas, e o seu solo a ser arado para outras plantações, de lucro rápido em cima de uma morte lenta.

Sim, a Amazónia é do Brasil. E, portanto, de todos nós, que queremos respirar com ela a esperança da Terra.

Sérgio Godinho (Músico, escritor)

Floresta-Mulher

A floresta é Terra-Mãe. Árvore, água, bicho. A floresta é fêmea parideira, que gesta e amamenta. A floresta é úmida e escura, da escuridão que nos conecta com o sagrado. O sagrado é a vida: o útero. A floresta-mulher é portal. E o homem, que vem desse portal-floresta-útero, já há um tempo se desconectou do seu feminino essencial. Esse masculino que não se equilibra no feminino é a ação destrutiva, o capitalismo sem freios, o poder pelo poder. O homem precisa escutar a floresta. A floresta fala mais de escuta do que de fala/falo. Ela acolhe alimenta cuida oferta equilibra. Aqueles que a compreenderam vivem em harmonia: são parte da circularidade que é habitar um planeta em que se recebe e devolve. Há muitas economias possíveis, o que não é possível é ignorar a floresta. Mesmo que se habite longe, se necessita da água, do ar, do fluxo. É isso que os homens dos negócios não entenderam. Os homens do agronegócio, do pasto, da mineração, da especulação, dos bussiness. Não se foge da floresta, porque ela é útero.

Se morre a mãe, morre o filho.

Por aqui impera a lei dos homens. Mas a preservação da vida no planeta urge pela lei das mulheres.

Lian Tai (Escritora, atriz)

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