Dizem-nos, desde pequenos, que a mentira não compensa. Que a verdade é uma virtude, um valor moral a preservar. Mas basta crescer para perceber que, no mundo real, a mentira não só compensa como frequentemente é premiada. Uma criança mente para evitar o castigo, a vergonha ou a culpa. Mente para escapar da punição. Um adulto mente para manter a paz. Um político mente para manter o poder. Parte do eleitorado apoia porque no fundo há mentiras que podem ser um alívio.
A sociedade diz que devemos ser honestos, mas quem diz a verdade muitas vezes sofre com a falta de empatia e simpatia dos outros. Quem mente bem, a maior parte das vezes, é recompensado: vence eleições, sobe em empresas, ganha admiração. Isso gera uma hipocrisia estrutural, uma moral que ninguém realmente segue, mas que todos fingem sustentar.
A verdade, muitas vezes dói. Preferimos as versões que nos aliviam, mesmo que sejam falsas. É por isso que há quem veja em Ventura que grita, acusa, que se contradiz e mente um “salvador”. Porque ele oferece algo mais importante que factos: ele oferece (in)certezas. Mesmo que essas (in)certezas sejam ocas, mesmo que mudem todos os dias, isso não importa. A mentira reforça uma identidade emocional (nacionalismo, raiva, ressentimento). A verdade destrói essa ilusão.
É irónico que ele se afirme enviado de Deus, quando se se cruzasse com Jesus Cristo, um homem pobre, de tez escura, perseguido pelo poder, provavelmente o escorraçaria. Essa contradição não tem interesse para quem quer, à força toda, manter-se iludido.
Portanto, quando alguém aponta as incoerências, os erros, as contradições, a reação é raivosa, quase religiosa e muitas vezes violenta. Já não se trata de política. Trata-se de fé e o que é preciso é continuar a acreditar, mesmo sabendo que é mentira.
Cheguei à triste conclusão de que o negacionismo não é ignorância. É uma escolha. Uma escolha por um mundo onde tudo é simples e o inimigo está sempre do outro lado. Onde não precisamos pensar muito nem mudar de ideias, porque a preguiça nos convém.
Esse paradoxo entre a mentira útil e a verdade desconfortável é um terreno fértil para o crescimento de líderes populistas como André Ventura. Um populista entende bem, que mentiras bem contadas mobilizam, e que os factos importam menos do que a emoção que provocam. As pessoas preferem um mito confortável a uma realidade frustrante. A verdade assusta. A mentira consola.
Mas há uma faceta ainda mais perversa neste fenómeno: a memória curta ou talvez, a memória conveniente.
O partido que mais lucra com o ódio aos imigrantes é muitas vezes alimentado pelo voto daqueles que, não há tanto tempo, também eram “os de fora”. Os que foram a salto para fugir da guerra e da fome. Os que viveram em bairros de lata sem saneamento, os que trabalharam como pedreiros, empregadas, porteiros e operários em países que os viam como pouco mais do que animais. Esquecem-se que antes de Mário Soares assinar a adesão à CEE, eram todos ilegais - porque quem ia a salto não levava papéis legais.
Hoje, esses mesmos votam em quem promete “fechar a porta”. Julgam-se herdeiros do país onde chegaram há não muito tempo. Fecham os olhos à realidade de que os novos imigrantes passam pelas mesmas humilhações. E porque são de outra cor, ou outra fé, ou falam outra língua, acham-se no direito de lhes negar o que um dia também lhes foi negado.
Negam-lhes a entrada como se nunca tivessem estado do lado de fora. Como se tivessem nascido patrões, esquecendo-se que são filhos de quem foi tratado como escravo.
O desprezo pela verdade não é um acidente. É o sintoma de um conflito interno, profundo, que nos divide entre aquilo que somos e aquilo que queremos parecer.
Infelizmente, muitos preferem abrigar-se na mentira. Mas ela prejudica sempre alguém. Um dia seremos nós.