A reforma das pensões voltou a ser tema quente no Parlamento francês. O grupo centrista Liot (Liberdades, Independentes, Ultramar, Territórios) apresentou uma proposta de lei para revogar pontos essenciais desta reforma a ser votada em plenário no próximo dia 8. Mas em análise na comissão de Assuntos Sociais esteve, nesta quarta-feira, a questão da “admissibilidade” de uma votação revogatória de acordo com a Constituição.
Na verdade, o recurso à Constituição era meramente instrumental. O campo governamental usa o artigo 40 da Constituição que estipula que as iniciativas parlamentares não são admissíveis se levarem a um aumento das despesas públicas ou a um corte nas receitas, norma que não é levada nunca à letra porque impediria a apresentação de quaisquer propostas. Mas tratava-se de uma tentativa dos apoiantes do presidente Macron de impedir que a Assembleia Nacional votasse o ponto que acabaria com a reforma aos 64 anos. Isto apesar das poucas probabilidades de sucesso que teria. É apoiada explicitamente, para além do grupo promotor, pela esquerda, pela União Nacional e por alguns deputados da direita dos Republicanos.
E se o debate propriamente dito estava marcado para esta quarta-feira, a discussão subiu à tribuna parlamentar logo no dia anterior no debate com a primeira-ministra Elisabeth Borne. Esta lançou-se contra o texto revogatório, classificando-o da “maior demagogia” e afirmando que “toda a gente aqui, pertinentemente, sabe que seria censurado pelo Conselho Constitucional”.
No dia seguinte, depois de seis horas de debate e numa sala tão apinhada que vários deputados tiveram que ficar em pé, com 38 votos a favor e 34 contra, conseguiu levar a sua avante, conseguindo a supressão do artigo 1 da proposta que era o seu centro porque era o que revogaria o prolongamento da idade da reforma para os 64 anos em França.
Fundamental para o resultado foi, como se esperava, a posição dos Republicanos, que se dividiram mas não tanto como seria necessário para manter a votação no plenário do artigo em causa: apenas dois em oito votaram naquele sentido. Claro que, convenientemente, a direção da bancada do partido de direita tratou de substituir dois dos seus deputados na comissão por outros que votariam de acordo com a sua orientação. “Soldadinhos obedientes que levantarão a mão quando se lhes pedir”, disparou Sandrine Rousseau, dos Verdes, sobre esta substituição.
O problema para os defensores do aumento do tempo de trabalho necessário para chegar à reforma é que em plenário haverá mais deputados da direita avessos à reforma das pensões e que aí não há substituições, o que deixava em aberto um mínimo de incerteza para o próximo dia 8.
Antes da votação, Charles de Courson, do Liot, falava numa “ocasião para sair por cima da crise social e política” provocada pelo recurso a um expediente constitucional para não votar a reforma das pensões no parlamento e apresentava “numerosas pistas que não foram exploradas” como alternativas, nomeadamente “uma contribuição mais elevada dos rendimentos do património”.
O campo presidencial, em resposta, dramatizava, falando num “golpe” e insistindo na “inconstitucionalidade”, pela voz do deputado da Renascença, Sylvain Maillard, e atacando Éric Coquerel, deputado da França Insubmissa que preside à Comissão Parlamentar de Finanças, que tinha antes considerado a proposta de lei admissível e invocado o direito de oposição.
A contra-resposta da esquerda foi dura: o deputado socialista Boris Vallaud afirmava que o campo presidencial “espezinhou o diálogo social”, “desprezou o debate parlamentar” e que “sem direito, não fazemos política”; François Ruffin, da França Insubmissa, dirigia-se aos deputados favoráveis ao Governo para lhes dizer que “estão a fazer hoje uma secessão de um país que vos disse não”; a líder parlamentar do mesmo partido, Mathilde Panot, subiu a parada acusando-os de uma “deriva mafiosa” e de serem “um perigo para a democracia”.
À esquerda, a NUPES ainda tentou apresentar inúmeras sub-emendas ao texto, chegaram a ser mais de mil, que na prática impediriam a votação em tempo útil de todas as alterações em comissão, fazendo com que fosse a versão original a ser debatida em plenário. Fadila Khattabi, a presidente da mesa da comissão parlamentar, macronista, respondeu que se tratava de uma “vontade de obstrução flagrante” e anunciou que rejeitava a entrada das propostas de emenda em bloco. A esquerda reagiu vincando que o direito à apresentação de propostas tinha sido colocado em causa, Panot classificou o sucedido de “autoritarismo”, um ato “contrário ao direito de emenda que é constitucional” e Rousseau dos Verdes falou em “manipulação” da comissão. O centrista Charles de Courson limitou-se a questionar: “atenção, senhora presidente, com que direito decidiu fazer isto?”
A presidente da mesa da comissão foi assim obrigada a parar os trabalhos. E reuniu o conjunto da mesa da comissão, onde os macronistas estão em maioria, para validar a sua decisão. A esquerda decidiu então abandonar a sala.
É inconstitucional? Basta meter o tabaco…
Apesar do chumbo do artigo sobre a manutenção da idade de reforma no patamar anterior à nova lei, o que acontecerá na próxima quinta-feira continua em aberto. O mais provável é que o grupo Liot faça o que o macronismo planeou com toda esta manobra: tente reintroduzir aquele artigo através de uma proposta de emenda, o que deverá ser aproveitado pela presidente da Assembleia Nacional, Yaël Braun-Pivet, para voltar a invocar a inadmissibilidade por motivos constitucionais e impedir de todo a votação sobre o resto dos artigos. Esta já afirmou: “assumirei as minhas responsabilidades”.
A questão da constitucionalidade é deslindada por Anne-Charlène Bezzina, constitucionalista e especialista em Direito Público na Universidade de Rouen, numa entrevista à France 24. Para ela, a questão política nasce da atmosfera de “pânico” na maioria e as manobras da maioria para evitar um voto em plenário “alimentam o discurso da oposição sobre negação da democracia e o medo do debate sobre as pensões”.
Dito isto, na vertente constitucional garante que há uma diferença entre letra e espírito da lei. Se é verdade que o artigo 40 da Constituição diz literalmente que as propostas não podem agravar as contas públicas e/ou diminuir recursos, isto fica-se pela teoria. Porque, na prática, “o costume é que se aceitem propostas que são “complementadas”, como é o caso desta, que introduz uma compensação dos impostos sobre o tabaco. Isto é extremamente comum. Não há uma única proposta de lei que não tenha sido “complementada” com o tabaco, é de facto uma tradição na prática parlamentar”, explica.
Ou seja, insiste, “se se levasse à letra a Constituição não haveria nunca nenhuma proposta de lei”. Assim, a Mesa da Assembleia Nacional costuma ter um entendimento distendido “para não estrangular a iniciativa parlamentar”.
A constitucionalista pensa que há um mau uso das ferramentas constitucionais por parte dos defensores do Governo, o que “criou um ressentimento ainda maior no seio da população”.