João Tordo: "Tenho esperança que a nova geração de políticos consiga mudar o país"

02 de janeiro 2016 - 21:21

Quando era criança, o escritor João Tordo ficava em casa a ler, a escrever ou a fazer desenhos enquanto os outros miúdos andavam na rua entretidos com uma bola de futebol.

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"A austeridade imposta de uma forma brutal foi terrível e deixou muitas marcas", afirma João Tordo.

Hoje, aos 40 anos, faz parte de uma geração de escritores que, nascidos após o 25 de Abril, abrem novos horizontes no panorama literário português.Em entrevista ao esquerda.net, fala-nos dos seu último livro, das sua vivências, da solidão e também da esperança num país que começa a sarar as feridas causadas por políticas impostas de uma forma cruel e que puseram à prova a capacidade de resistência das pessoas.

Quando é que despertaste para a literatura?

Concretamente não sei dizer. Quando era criança passava o tempo em casa a ler, a escrever contos ou a fazer desenhos, uma espécie de BD, enquanto os outros miúdos iam para a rua brincar.

E era por timidez que evitavas a rua?

Eu prefiro chamar-lhe introspeção que era resultante de uma falta, ou melhor, de uma característica de personalidade. Devo dizer que lamento este facto, porque o meu processo de socialização enquanto fui criança quase não existiu, mas só mais tarde percebi as razões que estavam por detrás disso.

Foi uma imposição familiar?

Acima de tudo, tinha a ver comigo. Talvez devesse ter brincado mais.

Mas foi esse isolamento que desbravou o caminho que mais tarde te levou à escrita, que acabou por se tornar o teu modo de vida?

Nessa altura, ainda não pensava nisso, mas admito que, desde muito cedo, o universo da literatura tomou conta de mim.

Mas tiveste outras atividades antes de ser escritor.

Tive e continuo a ter porque viver da escrita em Portugal é muito difícil, para não dizer impossível, uma vez que o mercado é muito pequeno. Hoje editam-se muito livros, as pessoas leem mais, mas estamos ainda muito longe dos níveis de literacia da Escandinávia, por exemplo.

E achas que conseguiremos chegar a esse patamar?

Não sei. É preciso não esquecer que, há 40 anos, Portugal era um país de analfabetos, fechado sobre si próprio, onde não se passava nada. Hoje não é assim, mas ainda há estrangulamentos difíceis de ultrapassar. Talvez seja necessário esperar ainda algum tempo.

Mesmo agora que temos a geração mais qualificada de sempre?

É sobretudo uma questão de hábito. E ainda não chegámos lá.

Fazes parte de uma geração de escritores que está a mudar o panorama literário português. Sem censura, sem ideias preconcebidas sobre determinados assuntos e que goza ainda da possibilidade de cruzar fronteiras e ganhar mundo através do contacto com outras culturas. Valorizas essas “mais valias” do tempo presente?

Sem dúvida. Aliás, quando acabei Filosofia, vivi no estrangeiro e isso deu-me uma visão mais ampla da realidade. Ainda hoje, acho extraordinário que os meus livros sejam publicados em países onde a língua e a cultura portuguesas são praticamente desconhecidas.

Os teu livros estão traduzidos no Brasil, em França, na Alemanha e Itália onde Portugal não é propriamente desconhecido, até porque vivem lá muitos portugueses.

Mas também estão traduzidos na Sérvia, na Polónia e na Hungria e aí é diferente porque o desconhecimento do país, da língua e da nossa literatura é quase total. Por isso, o estabelecimento dessas pontes é importante porque os livros são peças fundamentais para conhecermos outras realidades.

Consideras-te um embaixador de Portugal?

Não. Sou um escritor que está grato aos seus editores por desbravarem estes caminhos que se vão percorrendo num processo que visa afirmar a literatura para além das nossas fronteiras. Apenas isso.

Viveste em Londres, onde estudaste jornalismo, e também em Nova Iorque, onde estiveste envolvido em vários workshops de escrita criativa. Paralelamente e para sobreviver, trabalhavas em cafés e restaurantes. O que te levou a sair?

Acima de tudo, a vontade de conhecer outros locais, ter experiências diferentes, o que, aliás, é comum a muitos jovens. Foi um tempo muito interessante.

Não saíste magoado pelo facto de já teres entregue o manuscrito de um livro a várias editoras e não teres respostas positivas?

Eu enviei o livro para nove ou dez editoras e, de facto, confrontei-me com duas situações: ausência de respostas ou um não. O que é normal porque a edição do primeiro livro é sempre muito difícil.

Se tivesses tido uma resposta positiva tinhas saído na mesma?

Eu estava em Nova Iorque quando a Maria do Rosário Pedreira (editora) me contactou propondo-me a edição do meu primeiro livro cujo manuscrito lhe tinha sido entregue pelo José Luís Peixoto. Decidi regressar a Portugal acima de tudo porque pretendia que a escrita fosse central na minha vida. A escolha estava feita e por isso admiti sempre que era uma questão de tempo.

E não quiseste ficar à espera?

Ficar à espera significaria não fazer nada. O José Luís (Peixoto) editou o Morreste-me, o seu primeiro livro, em edição de autor e eu nem passei por isso.

Também foste jornalista.

Sim. É uma área onde a escrita também é determinante. Além disso fui coautor do guião do filme “Amália, a Voz do Povo” e de séries televisivas como “Pai à Força” e “Liberdade XXI".

Recentemente, publicaste um livro a que deste o título O paraíso segundo Lars D. e que é uma novamente um romance que nos fala sobre a solidão, que é um tema recorrente na tua obra. És um solitário?

De alguma maneira, somos todos solitários.

Mas não no sentido mais comum porque a defines como “uma presença fortíssima de nós próprios nas coisas que nos rodeiam”.

Para mim, a solidão não é estarmos afastados fisicamente dos outros. É algo mais profundo, uma membrana que pode ser uma fronteira onde, apesar de estarmos cheios de nós, há melancolia e derrota.

Não é muito filosófico?

Como escrevi neste último livro, a solidão é tudo aquilo que respira a nossa respiração e é dotado dos nossos sentimentos e onde pode haver objetos e pessoas, mas onde não há espaço para dotar as coisas de uma outra cor.

Em 2008, ganhaste o Prémio Saramago com o romance As três Vidas. Que importância têm os prémios na tua carreira?

São muito importantes, porque potenciam as vendas dos livros e são o reconhecimento do nosso trabalho. Não os renego, antes pelo contrário.

Não alinhas com aqueles que dizem desprezar os prémios porque a escrita não é uma competição?

Cada um tem a sua opinião. Eu não assumo essa postura de arrogância. Não me sinto um escritor menor por receber prémios, antes pelo contrário.

Mas sentes-te condicionado por eles quando escreves?

Obviamente que não. Não tenho controlo sobre isso, logo, essa obsessão não existe; mas reafirmo que gosto de ser distinguido pelo trabalho que faço.

Portugal atravessa um momento difícil. Como é que viveste este tempo?

Passei por dificuldades, como a maioria dos portugueses. A austeridade imposta de uma forma brutal foi terrível e deixou muitas marcas. Mas nós também tivemos algumas responsabilidades por tudo aquilo que se passou.

Mas esse é o discurso da direita para justificar tudo aquilo que tem sido feito.

O sentido é completamente diferente porque esta responsabilidade coletiva está relacionada com o facto de termos adormecido durante décadas e embarcado no canto da sereia do consumismo, do jogo da banca que nos empurrou para o endividamento.

E consideras que as políticas de austeridade eram inevitáveis?

A única inevitabilidade era travar a espiral consumista, o entorpecimento de uma população que virou as costas à realidade quotidiana e esqueceu-se que é ténue a fronteira que nos separa da pobreza. A responsabilidade é, acima de tudo, de um punhado de políticos que, de uma forma irresponsável, atirou o país para o precipício.

E essa correção tinha ser feita sacrificando as pessoas?

As políticas de natureza neoliberal não são, ao contrário do que alguns dizem, cegas. O setor financeiro foi salvo e as pessoas estranguladas. Mas sobrevivemos e, mais do que isso, com vontade de mudar o estado das coisas.

As políticas de natureza neoliberal não são, ao contrário do que alguns dizem, cegas. O setor financeiro foi salvo e as pessoas estranguladas. Mas sobrevivemos e, mais do que isso, com vontade de mudar o estado das coisas.

O teu pai (o músico Fernando Tordo) viu-se obrigado a emigrar.

Sobre isso, não quero falar. É uma questão de natureza pessoal que foi aproveitada. Quando a carta que lhe escrevi foi publicada sem a minha autorização, posso dizer que fiquei a conhecer o lado negro das redes sociais.

Com é que olhas para a realidade saída das últimas eleições?

Com enorme esperança. Há agora um governo que tem um posicionamento à esquerda e que se propõe recuperar o país. E há igualmente uma geração de políticos com cerca de quarenta anos mas já com maturidade suficiente que, estou certo, levará de novo as pessoas a interessar-se pelos destinos do país. Creio que muito irá mudar a partir daqui.

E há igualmente uma geração de políticos com cerca de quarenta anos, mas já com maturidade suficiente que, estou certo, levará de novo as pessoas a interessar-se pelos destinos do país. Creio que muito irá mudar a partir daqui.

Mas a nível global, os tempos estão muito complicados.

Sim, o terrorismo, os refugiados, a ascensão da extrema-direita, o racismo são problemas muito graves e por isso é importante que reflitamos sobre eles sem adotar uma visão extremista, aquela postura maniqueísta que divide a realidade em dois campos: o bom e o mau. Sou contra as visões parcelares e, em relação ao horror do terrorismo, interrogo-me muitas vezes sobre as razões que levam certas pessoas a entrar num café para matar indiscriminadamente. As razões mais profundas que estão na origem da sua ação.

Estás a referir-te aos atentados de Paris?

Apenas por serem os mais recentes. Às vezes, por facilitismo de análise, esquecemos que aqueles indivíduos que matam em nome de Alá são seres humanos.

Isso significa da tua parte algum sentimento de desculpabilização em relação a essas práticas de terrorismo?

Nunca! São crimes terríveis que devem ser punidos. Mas é o medo que os leva a fazer aquilo. Um medo fanatizado de serem castigados pela sua entidade divina ou de não serem considerados heróis se não se entregarem ao sacrifício de purificarem o mundo castigando os infiéis. Por isso, onde muitos vêm loucura, eu vejo medo. É essa a diferença

Pensas escrever sobre isso?

Não. Já muitos o fizeram e, além disso, a minha ficção não segue essa linha. Pelo menos de uma forma explícita.

Entrevista conduzida por Pedro Ferreira. Texto revisto por Ana Bárbara Pedrosa.